sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"É comunista? E esse iPhone, aí!?"

Marx objetaria, já no Manifesto..., dizendo que o comunismo "não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação".

Uma contra-objeção, no entanto, é bastante salutar: vez e outra nos deparamos com denúncias de emprego de mão-de-obra infantil, da manutenção de jornadas excessivas de trabalho e, mesmo, do uso de trabalho escravo por parte da Apple. Comprando um iPhone o comunista estaria patrocinando tal produção, não?

Excelente questão.

Curiosamente, a contra-objeção é, ela mesma, tributária de Marx, ao deslocar a análise do objeto, da mercadoria, para o seu modo de produzir e distribuir. Nada mais materialista-histórico do que isto e, com isto, podemos reconhecer a honestidade da contra-objeção ao permanecer no mesmo plano discursivo colocado pelos termos e conceitos do Manifesto... A questão central, creio, reside exatamente em não equivaler produto com modo de produção, e não identificar, na esteira, marxismo com franciscanismo (uma renúncia pessoal) ou com primitivismo (uma abstenção tecnológica coletiva).

O sujeito que compra o iPhone financia um determinado modo de produzir, distribuir e explorar trabalho? Com certeza! Mas uma tal perspectiva nos impede de focar apenas o produto (com ou sem ele, a ou não-a, o plano da lógica) e pensar no próprio modo de agenciá-lo e consumi-lo (o plano dialético). Se saímos de uma análise objetal, individual, e focamos o sistema produtivo, abster-se de consumir um ou outro dos precipitados desse sistema não seria coerente, visto que cada um desses precipitados envolveria, em algum momento de sua cadeia de produção, algum nível de exploração do trabalho (um iPhone, um filme, um game, uma roupa, um rolo de papel higiênico etc. etc.). Como diria o profeta de K. Gibran, "somos todos culpados". Mas "culpa" é termo por demais cristão - ainda permanece no plano da moralidade e do ascetismo pessoal. É de outra palavra que precisamos.

O leitor poderia dizer que eu apenas encaminhei as colocações em um plano teórico, e você teria razão. Eu, mesmo, não saberia como sair dessa querela de maneira absoluta. Em todo caso, é curioso enxergar as diferentes estratégias da esquerda, partidária ou não, como diferentes (e mesmo contraditórias) soluções para esse problema que estamos discutindo. 

Rende conversa.