domingo, 22 de março de 2015

Realidade das ideias

"Os super-heróis são reais quando desenhados à tinta", escreve David Mazzucchelli em seu posfácio ilustrado a Batman: Ano Um.

Se o psiquiatra F. Wertham vê em Batman e Robin uma metáfora para o homossexualismo, é porque os levou a sério demais, é porque os leu como um adulto os leria. E o leitor de Batman - assim como o Robin, assim como o próprio Batman, criança mimada e traumatizada - não é um adulto. Selina Kyle é a maturidade para a qual os meninos do batclubinho não estão preparados ("Que foi? Nunca viram uma garota bonita?", brinca Mazzucchelli).

Colocar realidade demais num super-herói é uma batalha sobre corda-bamba. 

As constantes crises de consciência, os dramas morais, os problemas no casamento, as contas sempre a pagar e uma tia doente e viúva pra cuidar são aspectos tão característicos do Homem-Aranha quanto o seu lançador de teias; a história mais famosa do Arqueiro Verde é a luta de Roy Harper, seu parceiro 'Ricardito', contra o vício em heroína; o Demolidor sabe que socar capangas e meliantes vestido de um colant vermelho é apenas a ponta do iceberg para o trabalho de enxugar gelo do advogado e burocrata Murdock; a própria Ano Um nos apresenta uma recontagem da origem do herói de uma maneira reticente e trôpega, temerosa, indecisa, mas, ao mesmo tempo, menos arraigada nos monstros anti-heroicos da vingança e do trauma que tanto caracterizam Bruce Wayne. É esse resquício de humanidade que tanto seduz nas super-narrativas, bem mais que a capacidade de voar, uma ultra-percepção ou a posse de engenhocarias tecnológicas.

As fagulhas de real que um roteirista, um artista e um editor são capazes de injetar num personagem, numa história e num cenário, porém, não podem ultrapassar o limite da superdosagem, sob pena de overdose para o personagem e seu leitor. Se, por um lado, é a realidade no irreal do herói que cose o leitor na trama do personagem, o excesso do mesmo mata tanto o herói quanto o leitor de super-narrativas.

Há algo no super-herói que não o deixa ser reduzido a um aglomerado de poderes (e a suas motivações para usá-los). Construir a super-realidade do herói, como dito, é corda-bambear, mas também investir num cenário de ficção e ciência que não é conceitual, categórico.

Há como que pedaços de sociologia, antropologia, política, ética, psicologia, economia etc. no mito, mas a abordagem do mito sobre os problemas que nos constituem é pré-discursiva, pré-conceitual.

O herói é um mito, uma mitologia, antes de uma filosofia, e a mitologia, antes de mobilizar jornadas arquetípicas (J. Campbell), acende fagulhas de afeto e possibilita novos modos de percepção.

É já sabido que o mito articula uma compreensão pré-racional do real; se, com isto, queremos dizer que o mito ainda não é razão, razoabilidade e logicismo, então pouco entendemos do mito. O mito não é uma razão ainda por vir, assim como a alquimia não é uma pré-química, ou a astrologia uma astronomia em sua infância, ou a feira de rua um embrião de supermercado. A razão produz conceitos; o mito agencia narrativas, e a narrativa, ao invés de pretender representar e corresponder ponto por ponto um real estável e reificado, intenta ser uma manifestação do invisível, um mitologema.

Razão e mito não se sucedem num desenvolvimentismo progressista; razão e mito são modos distintos para o entendimento do real. Melhor: a razão entende; o mito encarna.

Injustice, videojogo ambientado no Universo DC, narra um mundo no qual o Coringa, munido de algumas drogas e uma bomba nuclear, impele o Superman a matar Lois Lane, grávida de seu filho, e a destruir Metrópolis, convencido de que está num combate contra Apokalypse; ao perceber o que fez, Superman é tomado pela fúria, mata o Coringa e instaura uma espécie de tirania a nível global; não há mais liberdade de expressão, imprensa desvinculada do Estado ou mesmo atos de heroísmo não registrados e legitimados pelo Superman, ao mesmo tempo em que a pobreza, o crime e a corrupção foram praticamente banidos da Terra; duas frentes heroicas se formam: as forças do Regime, aliadas ao Superman, e a Insurgência, grupo de heróis rebeldes que se recusam a pactuar com essa sinistra Ordem Mundial, liderados pelo Batman. Uma questão ético-política está aí instaurada. A narrativa, porém, cai num moralismo irreversível, ao fazer do Superman, capítulo após capítulo, uma criatura raivosa, ressentida e arbitrária. Mas... e se o Super não enlouquecesse? E se permanecesse sereno e lúcido em sua governamentalidade tirana? O problema estaria colocado: qual a legitimidade - e, em filosofia, é sempre de verdade e de legitimidade que se trata - de um governo dessa natureza? O problema é colocado, sim, mas não enunciado; a enunciação do problema e a sua resposta são coisas de filósofo; para o mito, basta fazer o seu leitor-ouvinte tornar-se personagem, tornar-se a questão, vivê-la de espírito e de carne.

O filme O Soldado Invernal faz o personagem Capitão América (e o espectador-narrador) vivenciar um problema similar: vale a pena resguardar a segurança nacional, e mesmo mundial, com um super-programa de espionagem instaurado pela S.H.I.E.L.D., ou essa cultura da vigilância é apenas o outro lado de um Estado controlador e regulador dos mínimos aspectos da vida individual? A discussão é interessantíssima, mas também acaba num moralismo, já que descobre-se que a S.H.I.E.L.D. está profundamente tomada e corrompida pela Hydra, facção nazista criada pelo Barão Von Strucker, antigo inimigo do Capitão. A escolha de lados pelo espectador-narrador é óbvia. O mesmo se daria sem o envolvimento da vilânica Hydra? Ainda ficaríamos tão prontamente ao lado de Steve Rogers!?

Guerra Civil, de Mark Millar e Steve McNiven, parece esclarecer isto, já havendo utilizado o recurso do "embate de heróis" antes de Injustice, e de uma maneira ainda mais interessante. As linhas de frente encabeçadas pelo Homem de Ferro (defensor e ativista do alistamento e registro de todos os heróis pelo Estado, lhes sendo reconhecido, inclusive, diversos direitos trabalhistas e de previdência) e pelo Capitão América (que se recusa, através da defesa criminosa da "identidade secreta", a equivaler a ética do heroísmo com um funcionalismo público). Não há escolhas claras na história (embora pontos específicos da narrativa apontem que a própria história está do lado do Capitão; vale a pena não me delongar muito nisto e produzir um texto só sobre a Guerra Civil numa outra oportunidade).

O mito - e a narrativa super-heroica retoma parte da estilística do mito - não possui um tema ou uma moral. O leitor-ouvinte é um narrador, e o narrador não se resume a um consumidor da história, ou um entendedor de uma temática específica trabalhada pela história. O narrador é a condição sem a qual não há narrativa nem mito, é o seu personagem principal, é a personificação e encarnação privilegiadas da narrativa. O mito personifica e encarna uma experiência.

Em sua análise da 'Gradiva' de Jensen, Freud colocou a poesia ao lado do pensamento: quando um filósofo organiza um problema em conceitos, um poeta já o intuiu de há muito - Marcel Proust personifica o ciúme de Swann por Odette num polvo de um, dois, três, muitos tentáculos; H. P. Lovecraft personifica o medo e a loucura em figuras monstruosas, em deuses de horror tão ou mais antigos que a própria humanidade (é interessante ler Horror em Red Hook e ver que a visão assombrosa do detetive Malone no porão de uma das casas de Robert Suydam não são necessariamente reais, mas figurações do seu medo; ao mesmo tempo, o que vê não é falso, não é simples delírio; o medo é real enquanto experiência do medo, independente dos objetos que o referenciam, a ponto de, no final de sua trajetória, que é o ponto no qual a narrativa se inicia, a simples visão de prédios antigos de tijolos ou de imigrantes lhe causarem acessos de pânico). Os gregos e sua escrita mitologia, neste aspecto, são muito fascinantes: Sócrates, no Fedro de Platão (e este, mesmo sendo o pai da filosofia escrita, possui muito da estilística do mito e da tragédia em seus textos), é incentivado por um daemon a retornar a seu interlocutor e mudar sua opinião anteriormente emitida (o daemon é um espírito mensageiro ou a consciência do indivíduo Sócrates?); na Ilíada de Homero, Aquiles é tomado de ódio por uma ofensa que Agamêmnon lhe ofereceu e, prestes a matar o rei micênico, recua, visto a própria Atena lhe tocar a mão e impedir que desembainhe sua espada (Atena é uma deusa da sabedoria ou a própria prudência do herói em não matar um rei diante de seu exército? A ira de Aquiles também poderia passar por esse crivo. Troia, na Ilíada, é uma cidade caracterizada pelo cerco dos gregos devido ao sequestro de Helena pelo príncipe Páris; daí, é quase imediata a questão: Afrodite é a divindade protetora da cidade no sentido de que uma mulher superpoderosa resolveu patronar esta cidade ou apenas simboliza uma cidade constituída por uma história de amor? O próprio Homero encarna a questão homérica por excelência: é um autor, uma pessoa que realmente existiu, ou é a personificação de uma coletânea minimamente organizada de textos que relatam histórias já conhecidas da tradição oral?).

Se os deuses antigos são personificados, não é porque são, necessariamente, pessoas individuais (realismo ingênuo); não se deve cair, contudo, no outro extremo, o de que a personificação é o símbolo de um conceito ou de uma ideia, um arquétipo (idealismo filosófico). O mesmo para o Superman, o Capitão América, o Batman ou o Homem de Ferro.

A binaridade centenária entre realismo e idealismo é substituída pela realidade das ideias.

A realidade no irreal que o mito e as narrativas super-heroicas trazem é 1) um método de leitura, por instrumentalizar o seu leitor a tomar o texto, qualquer que seja, como pré-significante, pré-conceitual, e não como algo a ser "interpretado", embora também passível de interpretação, 2) uma ontologia, por considerar 'texto' como um fragmento de realidade, podendo tal método ser aplicado a quaisquer aspectos da existência, e 3) uma ética, visto que a postura assumida em se considerar a realidade das ideias, a realidade no irreal, é um oficio em tempo integral, não podendo ser "desligado".

Os super-heróis são reais, de fato, mas apenas quando desenhados à tinta.