domingo, 13 de dezembro de 2015

Uatu

Há pouco mais de dois anos, o presidente Rafael Correa tornou pública uma carta-conferência, resumo de uma fala sua proferida na Sorbonne. Mesmo a temática sendo datada ("conselhos" de um político equatoriano aos dirigentes europeus quanto à gestão da crise financeira), algo na estrutura de seu texto ainda interessa: sempre que as discussões tomam ares de dualidade, um sábio aparece do recanto de sua montanha e entoa cânticos heraclitianos, enuncia que devemos deixar de lado esse lance pendular de esquerda e direita, liberalismo e estatismo, idealismo e realismo, empirismo e racionalismo, Dilma e Cunha, Marvel e DC etc. etc., e apenas compreender as regras e condições que produzem um e outro lado de um mesmo jogo.

O fogo e o raio de Heráclito fizeram escola, e outros pensadores, como Spinoza, pavimentam a mesma estrada que nos ensina a "não julgar, mas compreender". Praticamente todo o academicismo do século XX segue essa mesma esteira anti-dualista: marxismo, fenomenologia, bergsonismo, vitalismo, behaviorismo, existencialismo, estruturalismo, cada um, a sua maneira, uma recusa à postura intelectual que equivale pensar a escolher um lado de uma trincheira. Palmas. Essa estrada possui um atalho, no entanto, a que chamarei de emcimadomurismo.

O emcimadomurismo é um pseudo-posicionamento que, recusando ocupar um e outro dos lados de um conflito, passa a equivaler pensar a não escolher nada, a não atualizar nenhum esquema de ação, real ou possível. O pensamento, ao se efetivar, vira o seu contrário: Winston e seu duplipensar se atualizam. Correa falava, à época do artigo, do neoliberalismo (resolução intelectual do conflito liberal v estadista) como um emcimadomurismo, um lobo político disfarçado de cordeiro neutro, suspenso das mundanidades, uma "ideologia disfarçada de ciência", pra usar uma expressão do próprio texto.

O emcimadomurista equivale ocupar escolas pelo direito à educação a invadir o patrimônio público, defender minorias a buscar privilégios, sustentar uma posição a ser imparcial e, portanto, falso. Ter um corpo, ocupar um lugar no mundo, dialogar com a tradição e com o outro tornam-se o falso, o ilusório e o erro para o emcimadomurista. Sua posição, ao se revelar, anuncia uma não-posição. Ser real e verdadeiro, para o emcimadomurista, é ser uma aparição sem aparição, um fantasma, uma cabeça acima do mundo. E o conflito se resolve, sem se resolver.

Heráclito, o ermitão, hesitava em falar: sabia que a diferença entre o sábio e o idiota nunca foi muito clara...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"É comunista? E esse iPhone, aí!?"

Marx objetaria, já no Manifesto..., dizendo que o comunismo "não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação".

Uma contra-objeção, no entanto, é bastante salutar: vez e outra nos deparamos com denúncias de emprego de mão-de-obra infantil, da manutenção de jornadas excessivas de trabalho e, mesmo, do uso de trabalho escravo por parte da Apple. Comprando um iPhone o comunista estaria patrocinando tal produção, não?

Excelente questão.

Curiosamente, a contra-objeção é, ela mesma, tributária de Marx, ao deslocar a análise do objeto, da mercadoria, para o seu modo de produzir e distribuir. Nada mais materialista-histórico do que isto e, com isto, podemos reconhecer a honestidade da contra-objeção ao permanecer no mesmo plano discursivo colocado pelos termos e conceitos do Manifesto... A questão central, creio, reside exatamente em não equivaler produto com modo de produção, e não identificar, na esteira, marxismo com franciscanismo (uma renúncia pessoal) ou com primitivismo (uma abstenção tecnológica coletiva).

O sujeito que compra o iPhone financia um determinado modo de produzir, distribuir e explorar trabalho? Com certeza! Mas uma tal perspectiva nos impede de focar apenas o produto (com ou sem ele, a ou não-a, o plano da lógica) e pensar no próprio modo de agenciá-lo e consumi-lo (o plano dialético). Se saímos de uma análise objetal, individual, e focamos o sistema produtivo, abster-se de consumir um ou outro dos precipitados desse sistema não seria coerente, visto que cada um desses precipitados envolveria, em algum momento de sua cadeia de produção, algum nível de exploração do trabalho (um iPhone, um filme, um game, uma roupa, um rolo de papel higiênico etc. etc.). Como diria o profeta de K. Gibran, "somos todos culpados". Mas "culpa" é termo por demais cristão - ainda permanece no plano da moralidade e do ascetismo pessoal. É de outra palavra que precisamos.

O leitor poderia dizer que eu apenas encaminhei as colocações em um plano teórico, e você teria razão. Eu, mesmo, não saberia como sair dessa querela de maneira absoluta. Em todo caso, é curioso enxergar as diferentes estratégias da esquerda, partidária ou não, como diferentes (e mesmo contraditórias) soluções para esse problema que estamos discutindo. 

Rende conversa.

domingo, 22 de março de 2015

Realidade das ideias

"Os super-heróis são reais quando desenhados à tinta", escreve David Mazzucchelli em seu posfácio ilustrado a Batman: Ano Um.

Se o psiquiatra F. Wertham vê em Batman e Robin uma metáfora para o homossexualismo, é porque os levou a sério demais, é porque os leu como um adulto os leria. E o leitor de Batman - assim como o Robin, assim como o próprio Batman, criança mimada e traumatizada - não é um adulto. Selina Kyle é a maturidade para a qual os meninos do batclubinho não estão preparados ("Que foi? Nunca viram uma garota bonita?", brinca Mazzucchelli).

Colocar realidade demais num super-herói é uma batalha sobre corda-bamba. 

As constantes crises de consciência, os dramas morais, os problemas no casamento, as contas sempre a pagar e uma tia doente e viúva pra cuidar são aspectos tão característicos do Homem-Aranha quanto o seu lançador de teias; a história mais famosa do Arqueiro Verde é a luta de Roy Harper, seu parceiro 'Ricardito', contra o vício em heroína; o Demolidor sabe que socar capangas e meliantes vestido de um colant vermelho é apenas a ponta do iceberg para o trabalho de enxugar gelo do advogado e burocrata Murdock; a própria Ano Um nos apresenta uma recontagem da origem do herói de uma maneira reticente e trôpega, temerosa, indecisa, mas, ao mesmo tempo, menos arraigada nos monstros anti-heroicos da vingança e do trauma que tanto caracterizam Bruce Wayne. É esse resquício de humanidade que tanto seduz nas super-narrativas, bem mais que a capacidade de voar, uma ultra-percepção ou a posse de engenhocarias tecnológicas.

As fagulhas de real que um roteirista, um artista e um editor são capazes de injetar num personagem, numa história e num cenário, porém, não podem ultrapassar o limite da superdosagem, sob pena de overdose para o personagem e seu leitor. Se, por um lado, é a realidade no irreal do herói que cose o leitor na trama do personagem, o excesso do mesmo mata tanto o herói quanto o leitor de super-narrativas.

Há algo no super-herói que não o deixa ser reduzido a um aglomerado de poderes (e a suas motivações para usá-los). Construir a super-realidade do herói, como dito, é corda-bambear, mas também investir num cenário de ficção e ciência que não é conceitual, categórico.

Há como que pedaços de sociologia, antropologia, política, ética, psicologia, economia etc. no mito, mas a abordagem do mito sobre os problemas que nos constituem é pré-discursiva, pré-conceitual.

O herói é um mito, uma mitologia, antes de uma filosofia, e a mitologia, antes de mobilizar jornadas arquetípicas (J. Campbell), acende fagulhas de afeto e possibilita novos modos de percepção.

É já sabido que o mito articula uma compreensão pré-racional do real; se, com isto, queremos dizer que o mito ainda não é razão, razoabilidade e logicismo, então pouco entendemos do mito. O mito não é uma razão ainda por vir, assim como a alquimia não é uma pré-química, ou a astrologia uma astronomia em sua infância, ou a feira de rua um embrião de supermercado. A razão produz conceitos; o mito agencia narrativas, e a narrativa, ao invés de pretender representar e corresponder ponto por ponto um real estável e reificado, intenta ser uma manifestação do invisível, um mitologema.

Razão e mito não se sucedem num desenvolvimentismo progressista; razão e mito são modos distintos para o entendimento do real. Melhor: a razão entende; o mito encarna.

Injustice, videojogo ambientado no Universo DC, narra um mundo no qual o Coringa, munido de algumas drogas e uma bomba nuclear, impele o Superman a matar Lois Lane, grávida de seu filho, e a destruir Metrópolis, convencido de que está num combate contra Apokalypse; ao perceber o que fez, Superman é tomado pela fúria, mata o Coringa e instaura uma espécie de tirania a nível global; não há mais liberdade de expressão, imprensa desvinculada do Estado ou mesmo atos de heroísmo não registrados e legitimados pelo Superman, ao mesmo tempo em que a pobreza, o crime e a corrupção foram praticamente banidos da Terra; duas frentes heroicas se formam: as forças do Regime, aliadas ao Superman, e a Insurgência, grupo de heróis rebeldes que se recusam a pactuar com essa sinistra Ordem Mundial, liderados pelo Batman. Uma questão ético-política está aí instaurada. A narrativa, porém, cai num moralismo irreversível, ao fazer do Superman, capítulo após capítulo, uma criatura raivosa, ressentida e arbitrária. Mas... e se o Super não enlouquecesse? E se permanecesse sereno e lúcido em sua governamentalidade tirana? O problema estaria colocado: qual a legitimidade - e, em filosofia, é sempre de verdade e de legitimidade que se trata - de um governo dessa natureza? O problema é colocado, sim, mas não enunciado; a enunciação do problema e a sua resposta são coisas de filósofo; para o mito, basta fazer o seu leitor-ouvinte tornar-se personagem, tornar-se a questão, vivê-la de espírito e de carne.

O filme O Soldado Invernal faz o personagem Capitão América (e o espectador-narrador) vivenciar um problema similar: vale a pena resguardar a segurança nacional, e mesmo mundial, com um super-programa de espionagem instaurado pela S.H.I.E.L.D., ou essa cultura da vigilância é apenas o outro lado de um Estado controlador e regulador dos mínimos aspectos da vida individual? A discussão é interessantíssima, mas também acaba num moralismo, já que descobre-se que a S.H.I.E.L.D. está profundamente tomada e corrompida pela Hydra, facção nazista criada pelo Barão Von Strucker, antigo inimigo do Capitão. A escolha de lados pelo espectador-narrador é óbvia. O mesmo se daria sem o envolvimento da vilânica Hydra? Ainda ficaríamos tão prontamente ao lado de Steve Rogers!?

Guerra Civil, de Mark Millar e Steve McNiven, parece esclarecer isto, já havendo utilizado o recurso do "embate de heróis" antes de Injustice, e de uma maneira ainda mais interessante. As linhas de frente encabeçadas pelo Homem de Ferro (defensor e ativista do alistamento e registro de todos os heróis pelo Estado, lhes sendo reconhecido, inclusive, diversos direitos trabalhistas e de previdência) e pelo Capitão América (que se recusa, através da defesa criminosa da "identidade secreta", a equivaler a ética do heroísmo com um funcionalismo público). Não há escolhas claras na história (embora pontos específicos da narrativa apontem que a própria história está do lado do Capitão; vale a pena não me delongar muito nisto e produzir um texto só sobre a Guerra Civil numa outra oportunidade).

O mito - e a narrativa super-heroica retoma parte da estilística do mito - não possui um tema ou uma moral. O leitor-ouvinte é um narrador, e o narrador não se resume a um consumidor da história, ou um entendedor de uma temática específica trabalhada pela história. O narrador é a condição sem a qual não há narrativa nem mito, é o seu personagem principal, é a personificação e encarnação privilegiadas da narrativa. O mito personifica e encarna uma experiência.

Em sua análise da 'Gradiva' de Jensen, Freud colocou a poesia ao lado do pensamento: quando um filósofo organiza um problema em conceitos, um poeta já o intuiu de há muito - Marcel Proust personifica o ciúme de Swann por Odette num polvo de um, dois, três, muitos tentáculos; H. P. Lovecraft personifica o medo e a loucura em figuras monstruosas, em deuses de horror tão ou mais antigos que a própria humanidade (é interessante ler Horror em Red Hook e ver que a visão assombrosa do detetive Malone no porão de uma das casas de Robert Suydam não são necessariamente reais, mas figurações do seu medo; ao mesmo tempo, o que vê não é falso, não é simples delírio; o medo é real enquanto experiência do medo, independente dos objetos que o referenciam, a ponto de, no final de sua trajetória, que é o ponto no qual a narrativa se inicia, a simples visão de prédios antigos de tijolos ou de imigrantes lhe causarem acessos de pânico). Os gregos e sua escrita mitologia, neste aspecto, são muito fascinantes: Sócrates, no Fedro de Platão (e este, mesmo sendo o pai da filosofia escrita, possui muito da estilística do mito e da tragédia em seus textos), é incentivado por um daemon a retornar a seu interlocutor e mudar sua opinião anteriormente emitida (o daemon é um espírito mensageiro ou a consciência do indivíduo Sócrates?); na Ilíada de Homero, Aquiles é tomado de ódio por uma ofensa que Agamêmnon lhe ofereceu e, prestes a matar o rei micênico, recua, visto a própria Atena lhe tocar a mão e impedir que desembainhe sua espada (Atena é uma deusa da sabedoria ou a própria prudência do herói em não matar um rei diante de seu exército? A ira de Aquiles também poderia passar por esse crivo. Troia, na Ilíada, é uma cidade caracterizada pelo cerco dos gregos devido ao sequestro de Helena pelo príncipe Páris; daí, é quase imediata a questão: Afrodite é a divindade protetora da cidade no sentido de que uma mulher superpoderosa resolveu patronar esta cidade ou apenas simboliza uma cidade constituída por uma história de amor? O próprio Homero encarna a questão homérica por excelência: é um autor, uma pessoa que realmente existiu, ou é a personificação de uma coletânea minimamente organizada de textos que relatam histórias já conhecidas da tradição oral?).

Se os deuses antigos são personificados, não é porque são, necessariamente, pessoas individuais (realismo ingênuo); não se deve cair, contudo, no outro extremo, o de que a personificação é o símbolo de um conceito ou de uma ideia, um arquétipo (idealismo filosófico). O mesmo para o Superman, o Capitão América, o Batman ou o Homem de Ferro.

A binaridade centenária entre realismo e idealismo é substituída pela realidade das ideias.

A realidade no irreal que o mito e as narrativas super-heroicas trazem é 1) um método de leitura, por instrumentalizar o seu leitor a tomar o texto, qualquer que seja, como pré-significante, pré-conceitual, e não como algo a ser "interpretado", embora também passível de interpretação, 2) uma ontologia, por considerar 'texto' como um fragmento de realidade, podendo tal método ser aplicado a quaisquer aspectos da existência, e 3) uma ética, visto que a postura assumida em se considerar a realidade das ideias, a realidade no irreal, é um oficio em tempo integral, não podendo ser "desligado".

Os super-heróis são reais, de fato, mas apenas quando desenhados à tinta.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Je (ne) suis (pas) Charlie

Pensar é o exercício de legitimar uma vida alheia à vida do senso comum.

O que todos os pensadores tem em comum é o compromisso com uma ética distinta da ética banal e cotidiana; pensar é superar a condição humana. Neste sentido, somos todos devedores de Platão.

Toda a filosofia não passa de uma série de notas de rodapé ao platonismo, diria A. N. Whitehead.

Platão, ao dialogar com a Assembleia ateniense, ou quando desafia o tirano de Siracusa frente a sua corte, instaura uma discursividade longe das performances dos jogos da retórica e da escolha política. A doxa é seu alvo privilegiado - a opinião do homem que diz tudo e nada ao mesmo tempo, que diz o que quer e quando quer, que fala sem vínculo algum com o que foi falado, a opinião de qualquer um e de todo o mundo. A crítica platônica à democracia, antes de cair num elitismo aristocrático, reside aí: não há, na democracia, uma marcação institucional para a verdade e para aquele que a carrega; ou a verdade se dissolve na efervescência dos múltiplos discursos que caracterizam o demos, ou ela toma a forma do escândalo e da impiedade; ou ninguém lhe dará ouvidos ou, lhe dando alguma atenção que seja, acarretará riscos para o sujeito que a enuncia; em todo caso, não há lugar para o dizer-a-verdade na democracia, e democracia, inversamente, se define para o platonismo como a impossibilidade institucional para a prática da verdade.

A parrhésia é, necessariamente e ao mesmo tempo, uma epistéme e uma asebeía.

Esse saber e essa impiedade que caracterizam a prática da verdade é um rompante das possibilidades já estabelecidas e dadas de antemão para a escolha por parte do sujeito democrático. Laques e Nícias, embedidos numa discussão política, dual, sobre a educação dos filhos, jogam a querela para Sócrates: "pra quem vai o seu voto?", perguntam; Sócrates extrapola o jogo da política e se recusa a pactuar com uma discussão posta em termos de voto, de escolhas possíveis. Sócrates, o filósofo, não é o que sabe escolher, não é o que sabe a melhor resposta para o problema colocado, mas é o que, assumindo não saber, se abstém de ocupar um dos lados de uma guerrilha retórica e política, se abstém de jogar inteiramente o jogo binarista das escolhas e se abstém mesmo de pactuar com o modo discursivo do homem comum. Sua função no diálogo é, em especial, operar essa transformação discursiva, mesmo que não se chegue a posição alguma ao cabo da discussão, e principalmente quando não se chega.

Nous sommes Charlie, ainda que nenhum de nós tenha sido alvejado por Kalashnikovs no dia 7 de Janeiro, ainda que nenhum de nós tenha presenciado o fato, ainda que nenhum de nós tenha estado em território francês à época do massacre, ainda que nenhum de nós tenha lido uma página sequer do semanário francês antes de aderir à causa. Se se é ou não, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão a ela? Poucos conheceram o trabalho pregresso do Charlie Hebdo, ou mesmo de alguns dos vitimados, umzinho que seja, no massacre ocorrido em Janeiro; nenhum cartum erótico de Wolinski, nenhuma análise do keynesiano Bernard Maris, nenhum artigo da psicanalista Elsa Cayat, nenhum material, texto, imagem ou que seja foi consultado ou levado em conta pelo partidário que se identifica com isto ou aquilo. O homem de bem, ao se vincular à discussão, também parece se tornar especialista no islamismo e em questões do Oriente Médio, ainda que nunca tenha ouvido falar em Edward Said ou Alain Gresh. O voto já está feito, o jogo do voto já está colocado e a política das escolhas já está estruturada.

Esse batalhão de indivíduos que se identificam com Charlie equivale "não ser Charlie" com "pactuar com o massacre"; na esteira dessas identificações sensório-motoras, todos os islamitas se tornam terroristas, os já marginalizados estrangeiros em territórios franceses passam a ser alvo violento de segregação social, a imprensa livre e a liberdade de exprimir toda e qualquer opinião se tornam prioridade pública e a religião como um todo torna a figurar como força de alienação e signo da ignorância na modernidade.

Tupiniquins escolhem seu lado e se tornam Charlie; passam a se mobilizar apaixonadamente por temas e pautas que, dias antes, ignoravam; exigem extradição dos muçulmanos imigrantes, a suspensão do direito de acesso a políticas públicas por parte dos descendentes islamitas, o reforço do aparato policial no patrulhamento das favelas e zonas habitadas por muçulmanos, a conivência com programas de espionagem que, ora bolas, só querem garantir a segurança do cidadão que nada de ruim tem a esconder.

O soldado compra uma guerra que, assim como todas as guerras, não pertence a ele.

Contra o imediatismo da escolha, é comum um segundo pelotão tomar de assalto o campo de batalha - com a melhor das intenções - para, em seguida, apenas reforçar a política e a retórica dos binarismos. Se o primeiro comando confere a alcunha de terrorista a todo moi que não é Charlie, o segundo pelotão equivale sê-lo com reforçar as relações de exclusão que os islamitas e seus descendentes sofrem em território francês. Há alguma verdade, aí, mas não de todo.

O segundo grupo, o grupo dos que gritam je ne suis pas Charlie, parece bem mais informado (epistéme) e engajado (asebeía) que o seu antípoda, e de fato o é. Tentam entender o atentado, mapear suas origens e relativizá-lo. Os que não são Charlie trazem à baila o terrorismo de Estado sofrido pela Palestina por Israel, o massacre de dezenas de milhares de muçulmanos durante a Guerra do Iraque, a marcha hipócrita de dezenas de dirigentes na Place de la République, a legitimidade da sátira a um grupo social já marginalizado, a prisão - uma semana depois do massacre - do humorista francês Dieudonné M'bala por antissemitismo e apologia ao terrorismo ("papai, por que Charlie Hebdo é liberdade de expressão e não Dieudonné?"), os mal midiatizados atentados do Boko Haram na Nigéria etc.

É de se perguntar, também, por quê não houve manifestações cá no Brasil a despeito de Millôr, mas houve para o hebdomadaire: num humor semelhante, porém menos vulgar, ao do semanário, Millôr brinca sobre a origem de Jesus, filho de Maria com um centurião romano; a CNBB protesta oficialmente e Millôr é despedido do jornal 'O Cruzeiro'.

Ziraldo e Jaguar possuem histórias semelhantes.

Em caso mais recente, os irmãos Lino e Mario Bocchini, ao criarem o 'Falha de São Paulo', blog-sátira do Grupo Folha e do "jornalismo de esgoto" produzido por este, foram processados por criação explícita e intencional de confusão para com o leitor consumidor que, desavisado, poderia confundir o blog com material oficial do Grupo. O juiz conivente (cúmplice?) com a censura condenou os réus a uma multa de 1.000 reais por dia em que o blog esteve online. A única mobilização digna de nota foi um tumblr criado pelos leitores do blog para "impedir que a Folha, com sua liminar absurda, tirasse do ar toda referência a ele; e pra mostrar para quem não conhecia que a reação do jornaleco é completamente despropositada". Je suis Falha?

Os "blogueiros sujos" também se viram desassistidos pela opinião pública em sua própria batalha contra um gigante midiático.

* * *

"Uma tia ninfomaníaca e suas sobrinhas estão de luto por causa da morte de um cachorro. Diretor de famosa rede de TV e seu amigo pilantra fingem que são primos e vão consolá-las" – escreve o Sr. Cloaca, pseudônimo do editor do blog ‘Cloaca News – as últimas do jornalismo de esgoto’, como sinopse ao filme ‘Solar das Taras Proibidas’; abaixo do texto, o vídeo em questão extraído do ‘Youtube’. A piada estava pronta: o nome do ator principal da película pornô é Ali Kamel. O Diretor Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo, homônimo do ator, mobiliza um processo contra o titular do blog por "campanha difamatória". Oito advogados trabalham no processo. Rodrigo Vianna, do blog ‘O Escrevinhador’, aproveita a tirada do ‘Cloaca News’ e escreve uma série de textos sobre a homonímia, afirmando que "pornográfico, sim, é o jornalismo que Ali Kamel pratica tantas vezes à frente da Globo". Munindo-se de um "furor processório" – termo cunhado por Rodrigo – Kamel (o diretor, não o ator) iniciou ações judiciais contra o Sr. Cloaca, contra o próprio Rodrigo, e mais um punhado de blogueiros empenhados em "difamá-lo" (Luiz Carlos Azenha, do ‘Viomundo’; Marco Aurélio, do ‘Doladodelá’, Luiz Nassif, Paulo Henrique Amorim e outros).

Rodrigo Vianna teoriza que a estratégia de Kamel é o contra-ataque, mas fora do debate público, de conteúdo, como foi iniciado, partindo para a revanche judicial e o sufoco financeiro.

O Sr. Cloaca, acima da coluna lateral de sites amigos do seu, sites "por quem botamos a mão no fogo", dispõe o seu IP – 201.37.94.163 – e, acima do seu IP, uma chamada em letras garrafais: PROCESSE O CLOACA NEWS.

Miguel do Rosário, do blog ‘O Cafezinho’, sugere algum tipo de associação organizada para que os blogueiros progressistas possam se defender de ataques como esse; e coloca que Ali Kamel, o ator, "é que deveria nos processar por compará-lo a um sacripanta".

Somos todos blogueiros sujos?

Mais uma vez, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão pessoal a ela?

O problema do segundo pelotão em sua batalha contra o batalhão do imediatismo é transformar sua epistéme e sua asebeía em performance retórica e política, em mais uma opção a ser escolhida no jogo do voto, criando um intelectual sabichão, um sophos, um sophisté que entendeu as minúcias, detalhes e meandros do jogo da palavra e se resume a bem escolher, a bem falar e a convencer a opinião pública do que considera como mais verdadeiro. O sofista é o maior inimigo do filósofo pois é o seu fac-símile, seu duplo. O essencialismo e a identificação, por vezes, são estratégicos, mas não quando se afiguram como tática única para resistir à mediocridade de uma doxa sem espírito crítico algum.

O massacre no prédio do semanário Charlie, a demissão de Millôr, as perseguições ao Pasquim, o processo dos autores da 'Falha...' e dos blogueiros sujos não são possibilidades de escolha, de aceitação ou de concordância, de repulsa ou de discordância; são acontecimentos. Todas as coisas são, antes de coisas, acontecimentos.

"Que importa escolher?" é uma questão de método. À título de exemplo, o cristianismo.

* * *

Para além do ser ou não ser cristão (com todas as implicações de época que o não-Ser carrega; não-cristão é pagão? é ateu? é judeu? é islamita?), o cristianismo é um acontecimento, e pouco importa - para o acontecimento e para o sujeito que a ele tenta se vincular - se se concorda com o mesmo ou não, se se pactua com o mesmo ou não. Em pleno século I, vários grupos judaicos se reuniam e montavam estratégias de resistência contra o parasitismo de Estado perpetrado por Roma; um desses grupos terroristas, o cristianismo, pensava uma resistência não-militarizada ao poderio romano, já que seu reino, diziam os cristãos, "não é deste mundo".

Quando se considera o cristianismo um acontecimento, pouco importa se, dois mil anos depois, um qualquer brada aos quatro ventos je suis chrétien ou je suis athée. Não se trata de escolher os lados de uma querela historicamente constituída (ser cristão ou ateu? cristão ou pagão?) nem tampouco retomar e tentar reatualizar a sua origem perdida (o "verdadeiro cristianismo"), mas, ao contrário, interpretá-la e reconhecê-la em seu tempo, trazendo instrumentos para a nossa própria prática, nossa própria produção de acontecimentos.

Na mesma esteira, não faz sentido um qualquer dizer-se liberal ou estadista, defensor do livre mercado ou de um estado de bem-estar social; essa questão - sou isso ou aquilo - não faz sentido para a maioria dos sujeitos que com ela se metem. Um ministro ou chefe do Executivo se vê diante de um documento; se pergunta se deve autorizar o financiamento de diversos bancos privados para evitar uma quebra no sistema financeiro ou se deve abster-se, enquanto cargo público, de intervir na economia; o dualismo 'liberal ou estadista' só faz sentido, pragmática e estrategicamente, para ele, e apenas neste momento. A maioria dos demais cidadãos escolherá um ou outro lado da fronteira apenas de maneira performática, sem qualquer implicação ou ganho tanto para a questão quanto para o sujeito que se mete com ela. A este sujeito, abstraído da ação imediata e sem uma caneta em punho para assinar (ou não) um documento, cabe a liberdade para pensar o liberalismo e o estatismo, pensar as condições que os tornam legítimos e, nessa interpretação, sempre relativa (já que se relaciona às condições do próprio sujeito-que-pensa), produzir novos conceitos, novas noções que colem perfeitamente a demandas atuais.

Agostinho lê Platão e produz uma irreversibilidade paradoxal: ao mesmo tempo em que Agostinho, justamente por tentar aproximar o seu tempo do tempo de Platão, por tentar trazê-lo ao tempo presente, cria História, cria aquilo que visava abolir; além disso, nunca mais se lerá Platão do mesmo jeito.

Depois de Tomás de Aquino, jamais se leu Aristóteles do mesmo jeito.

Depois de Descartes, Hegel e Kant, jamais se leu filosofia do mesmo jeito etc.

Cada pensador visa legitimar uma vida diferente da vida e dos esquemas de escolhas atuais, e se tanto diferem entre si nas propostas e decisões tomadas, ao menos nisto concordam: pensar é sempre mais, bem mais, é o ir além.

Interpretar é sempre superar a condição de leitura e entendimento atual e trazê-la para seu próprio tempo, tornando-a potente, ativa, e não mais um simples esmeril, lembrança de museu ou ornamento intelectual.

Chega de doxa; mas chega, também, de um saber e de uma impiedade transformados em simples retórica e performance política.

Pensar é produzir acontecimentos.