sábado, 5 de abril de 2014

Conectar, representar, falar

Curva normal alguma (e a margem de erro correlata a esta curva) permitiria à IPEA ter confundido 65% com 26%. Os dados produzidos por duas perguntas consequentes foram trocados, diz-se. Mas ainda é algo surpreendente que, grosso modo, 26 pessoas dentre 100 com que eu venha a cruzar o caminho achem realmente que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas".

Não é isso que mais me interessa, contudo.

Não se fala, a despeito do erro, que o 65% de aceitação, agora, pertence ao enunciado "mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar".

Também não é isso que me interessa.

A despeito da troca de dados, muita discussão interessante foi levantada, muita conversa dita como ultrapassada foi recolocada e muito da militância feminista - tida como rançosa, imperativa e cheia de "mi-mi-mi" para muitos intelectuais internautas - ganhou sentido e mostrou a razão-de-ser de suas lutas com esse episódio.

Mas ainda não é aí que reside a minha surpresa e interesse.

Minha atenção é atraída pelo discurso, singelo, da ameba-internauta e dos seus amiguinhos sensórios-motores em olhar para o resultado (o inicial) da pesquisa e dizer: "mas tem de ser assim, mesmo!"; "mulher tem de se dar o respeito"; "mulher que se veste assim 'tá pedindo' pra ser estuprada" e variações sobre o mesmo tema dignas de um Paganini.

É já conhecimento geral que a internet reúne e congrega as pessoas - "connect with your 'friends'" é o mote de uma de suas redes sociais. O que essa condição cibernética parece possibilitar ao internauta-sensório-motor e a seus amiguinhos é que muitas de suas opiniões tacanhas - como chamar o Golpe de 64 de "Revolução"; ou apontar como solução para a criminalidade o reforço do aparato policial repressor sobre os criminosos ("e quem achar ruim, que leve pra casa!"); ou sugerir como uma solução séria para a criminalidade infantil a redução da maioridade penal; ou, ainda, fazer equivaler a corrupção estrutural da política com a simples soma aritmética de um e outro político corrupto etc. etc.; poderia ficar o dia todo, aqui, ilustrando as opiniões da ameba-internauta -, opiniões antes guardadas para si mesmo, agora encontram respaldo e rebotam no seu amiguinho de ideias.

O resultado? O que antes era senso comum agora se transveste de análise séria. Na rede, somos todos antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, economistas, filósofos.

Para a construção de uma ideia, não mais se precisa de leitura, estudo, discussão entre pares, embates maduros e sinceros com os díspares, escrita orientada, ocupação de espaços legitimados e a construção de zonas para o fazer e o saber que não tem lugar nesses espaços; para a concepção de uma ideia, agora, basta ser alfabetizado, ter acesso à internet, uma conta no Facebook, e alguns amiguinhos que se identifiquem com a opinião antes recalcada e agora infinitamente rebotada pelos meandros da rede. Não se precisa mais ter vergonha de achar que "bom era no tempo da ditadura" (ainda que você, sujeito enunciador desta frase, seja mais novo que a Constituição de 88); seu amiguinho, antes também envergonhado do seu fascismo cotidiano, agora irá ter a "coragem" em validar esta frase junto com você.

É de Platão que se tratou até aqui. Mas "Platão em Siracusa não se transformou em Maomé", diz Foucault. Seu livro não respeitou a fala, não soube "marcar a singularidade dos acontecimentos". A conexão da ameba-internauta também não.

A mesma internet, a mesma lógica da conexão que serve de condição material para que se ocupe os espaços já consolidados pela cultura da representação e para a produção de um novo modo de se produzir saberes, relações e subjetividades ainda mais intensos e interessantes que os já vivenciados em nossa história também dá infraestrutura para o surgimento da ameba-internauta e suas verdades sensório-motoras (o elfo e o troll são composições de um mesmo cenário, e tanto a música dos Ainur quanto a dissonância de Melkor são, ambos, prolongamentos do mesmo bom Eru).

O mesmo livro que faz com que o seu leitor ocupe uma zona de pensamento em que ele jamais esteve - e que talvez sem o livro jamais ocuparia - cria também um intelectualóide sabichão que confunde pensar com representar e a posse do pensamento com as titulações curriculares que acumula.

Se antes fingíamos estar de posse do pensamento pelo fato simples de possuirmos uma titulação (o modelo do livro e da representação), agora escamoteamos a "ascese" necessária no processo de pensamento através do "rebote de opiniões", que ilusoriamente dá estatuto de verdade ao enunciado sensório-motor (o modelo das tecnologias do virtual e da conexão).

Cada um com a sua tática para escamotear a fala e se escamotear enquanto sujeito que pensa e que se conecta (e que acha que fala...).