sábado, 24 de maio de 2014

Duas lógicas, a religiosa e a política

Corre solta e descontroladamente, pelo Facebook, a imagem de um feto ensanguentado com letras garrafais em seu entorno. A Vida não tem preço, abre de maneira poética o meme-arte; mas para Dilma e o PT ela vale R$443,40 por bebê abortado. 

Na parte de baixo do cartaz digital, as seguintes desinformações: 01/08/2013 - Dilma sanciona o aborto - Lei 12.845; 21/05/2013 - Dilma sanciona Portaria nº 415 que libera o aborto no Brasil; Dilma, mãe do aborto no Brasil. 

Ao lado, uma outra montagem da presidenta, toda sorridente, com um pronunciamento seu ao jornal O Estadão, dizendo que não pensava em propor alterações sobre a legislação do aborto no país durante o seu mandato. Abaixo, em letras garrafais, uma tarja com o dizer "FALSO".

Uma rápida busca em qualquer mecanismo de pesquisa me revela a quantidade de inverdades contidas na imagem acima descrita. O Google, mesmo, nos mostra algumas matérias que desmentem a quase totalidade da montagem já em sua primeira página de buscas.

O que o Governo Federal sancionou, isto sim, é a obrigação, para os hospitais, de atenderem de maneira humana as vítimas de estupro (ou cujo feto seja anencéfalo), oferecendo às mulheres em estado de sofrimento todo o necessário para o tratamento de sua saúde integral (física, psíquica, social). Dentro desse tratamento, está a possibilidade de a mulher ingerir, se for de seu interesse, a chamada "pílula do dia seguinte", que a impede de engravidar de seu violentador.

É isto que está sendo chamado de "aprovação do aborto"?

Compartilhar uma informação dessa natureza, sem averiguar se a mesma é ou não verdadeira, é no mínimo um ato de má-fé; não a do Sartre, que consiste na justificativa do sujeito que se desimplica existencialmente das suas escolhas, mas a do senso-comum, a do sujeito que justifica a sua falta de escolhas se implicando com pautas que não são, efetivamente, escolhas. A baixaria se torna a forma e a norma do debate, sendo este sujeito-do-senso-comum o alvo e o motor privilegiados da desinformação viral, versão digital da stultitia estoica e de um jornalismo já contaminado de propaganda.

Além disso, o tal valor de 443,40 reais não é uma "bolsa estupro" a ser recebida pela mulher, como está sendo diabolicamente propagado, mas é o dinheiro investido pelo Governo para o SUS realizar todos os procedimentos de cuidado e acolhimento de maneira digna para a mulher que deseja, dentro dos critérios estabelecidos, interromper a sua gravidez.

Aborto, mesmo considerado como um pecado para muitas designações religiosas, não pode ser considerado um crime nestes termos, já que o feto, em todas as formas jurídicas que constituem o aparato legal brasileiro, não é considerado um sujeito de direitos. Logo, o aborto não é um crime por ser considerado "assassinato" (lógica religiosa), mas por ser um problema estrutural para o próprio Estado; o aborto é considerado um crime, isso sim, por não ser regularizado e normatizado pelo próprio Estado. E só!

É muito necessário separar aqui duas lógicas, a religiosa e a política. Quando dizemos que o nosso Estado é laico, queremos dizer com isso que essas duas lógicas nunca podem se misturar.

O aborto é um assassínio para a lógica religiosa, já que se trata de um sujeito - uma alma que carrega em si uma centelha do deus - que impede o desenvolvimento de outro sujeito, de outra alma, um sujeito que impede mais uma manifestação por excelência do espírito divino ao interromper um aglomerado de células de alcançar o seu amadurecimento previsto. Tudo bem. Mas dentro da lógica política, ou seja, dentro de uma lógica que tenta criar tecnologias e aparelhos de governo para o nosso bem viver, isso não interessa. O que a política deve pensar é se a aprovação do aborto, em termos políticos, é um avanço ou não para nossa vida em comum enquanto Estado. Em países nos quais o aborto foi regularizado, por exemplo, ouve uma queda gradativa e longitudinal da criminalidade juvenil, e uma diminuição progressiva dos gastos do Estado para com problemas de saúde relativos à maternidade e à primeira infância. Ou seja, para esses países, em termos políticos, repito, a aprovação legal do aborto foi uma coisa boa, uma coisa politicamente efetiva, o que nada, nada, nada!, tem de ver com a aprovação moral do ato pelos dirigentes. O argumento acima é um argumento político para se defender uma nova legislação para o aborto, e é apenas em termos políticos que a política deve ser debatida.

E isso, ponto importante, não exclui a lógica religiosa, uma lógica que visa intervir na vida de todos, idem, mas não enquanto Estado; interfere e modula a vida, sim, mas fazendo com que cada um crie uma comunidade melhor cuidando de si mesmo e de seu próprio espírito (designação cristã da religião). A aprovação de uma lei que regularize, normatize e aprove o aborto não forçará as pessoas a abortarem contra a vontade delas, mas apenas permitirá a diversas outras interromperem a sua gravidez sem que esta prática, já muito dolorida para a mãe em questão, ainda seja criminalizada. Neste sentido, não é só "o esquerdista", "Dilma" ou "o PT" que querem discutir a não-criminalização do aborto, mas qualquer um, seja de direita ou de esquerda, que não confunde essas duas lógicas.

Um Estado Laico de Direito não pode basear as suas formas jurídicas na forma de pensar da religião ou, melhor dizendo, a forma da lei num Estado de Direitos não pode ser equivalente às práticas ascéticas espirituais de uma religião específica (o cristianismo romano). Já tivemos um período de nossa história no qual isso aconteceu - chama-se Idade Média - e sabemos bem que coisa boa não saiu daí...

Note, amigo leitor: quando falo de "duas lógicas", uma religiosa e uma política, não digo que uma está certa e outra errada, ou que uma é melhor do que a outra (esse é o modo de pensar de uma terceira lógica, inclusive, que hoje podemos chamar de ciência). Quero dizer, com isso, que são dois modos de pensar distintos, com objetos e objetivos também distintos. Como eu já disse anteriormente, a política visa criar formas jurídicas para regular e normatizar a vida de todos (leis, constituições, impostos, direitos, deveres etc.), enquanto a religião (a cristã, neste caso) tem outro projeto, que é o de salvar a alma do sujeito através de práticas e rituais específicos exercidos deliberadamente por este mesmo sujeito. Percebe que são duas lógicas distintas, amigo? Uma coisa é você, eu, dona Mariazinha, Seu Zé e outro punhado de gentes serem contra o aborto e não aprovarmos esse tipo de atitude para com nós mesmos e com nossos espíritos; mas uma outra coisa, total e radicalmente diferente, é querermos que o Estado criminalize essa prática que um determinado grupo, o nosso, considera nociva. Mesmo na hipotética legalização plena da prática do aborto, não somos obrigados, eu, você, ninguém!, a abortar ou fazer abortar contra a nossa vontade. Assim como a religião não pode invadir a política, a política também deve continuar "na dela" e deixar cada um praticar a sua espiritualidade na paz que lhe convém.

Uma coisa é a lógica da religião (prática do espírito pelo próprio espírito), outra, a lógica da política (criação de normas e regulações para a vida comum). A laicidade do Estado, como já dito, aponta exatamente para a dissociação brutal entre esses dois modos de exercer o pensamento. Se argumentarmos, por exemplo, que o aborto deve ser proibido por lei pois "é um pecado", pois "macula a alma" e "nos afasta da salvação", isso não é um argumento político, mas um argumento religioso. 

Ao mesmo tempo, não quer dizer que todo argumento político vai ser a favor do aborto, mas nenhum argumento político pode mobilizar noções como pecado, alma, salvação etc. Não é disso que se trata na política. Um argumento político contra a legalização do aborto, por exemplo, é dizer que ela só produziu melhoras concretas noutros países pois junto dessa legalização foram criados programas assistencialistas para as mães em situação de pobreza que tiveram de abortar, o que não funcionaria por aqui caso toda uma reestruturação no modo como a sociedade civil encara tal prática seja realizada. Pronto, este é um argumento político contra a aprovação (legalista, não moral) do aborto! 

Quando o religiosista fica triste e chora e ora e lamenta quando vê outras almas defendendo a aprovação do aborto, o mesmo ignora que ninguém, em sã consciência, defenderia um mandato político dizendo que "a vida não tem valor" ou que "matar criancinhas é o que há". Mas, repito até a exaustão, essas almas souberam não misturar as duas lógicas, religião e política, numa só.

P.S.: existem, ainda, outros modos de exercer o pensar, como a arte (que nos mostra outros modos de perceber, nos dota de "novos órgãos", e produz diversas obras na esteira desse exercício) e a ciência (que nos ensina a melhor observar, experimentar, prever e controlar o mundo, transformando-o numa série de coisas e nos dotando de diversas tecnologias nesta empreitada). Um outro texto, mobilizando esses quatro modos de pensar, já está na minha to do list faz tempo...

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Thomas Piketty e seu cavalo de Troia

O "Capital no século XXI" discute as agruras do capitalismo não via produção - como fez Marx, por exemplo - mas focando a distribuição desta e a correlata produção de desigualdade imanente ao próprio desenvolvimento capitalista. É uma senhora pesquisa, a do livro, e colocou no seio de muitos espaços acadêmicos estadunidenses, inclusive os mais conservadores, a necessidade de se discutir questões que eram sempre deixadas à parte na prática da economia. Seu texto não repete aquela já velha trincheira ideológica entre liberalismo econômico e regulação via estado; pode-se sempre argumentar que as crises do Mercado se deram, justamente, por excesso de intervenção estatal, e é aí que reside a novidade de Piketty: ele não se resume a argumentar e defender a taxação progressiva e a tributação da riqueza (e isto a nível global, num imposto que alcançaria até os paraísos fiscais; a conclusão do seu livro), mas o faz com base em dados, dados, muitos dados, com base no "vamos aos fatos". O primeiro mérito do seu livro está em compilar mais de 100 anos de estatísticas sobre como o capitalismo, em seu modo de distribuição, é inegavelmente produtor de desigualdade. É exatamente por isso que Piketty sai da seara ideológica do Fla-Flu econômico, já que mesmo o defensor do livre mercado, em todas as suas vertentes, se vê sem argumentos lógicos contra a dureza dos gráficos e tabelas. O segundo mérito do livro de Piketty é que essa retórica tecnicista é, em geral, usada pra defender o Mercado (o neoliberalismo, em geral, é apresentado não como uma ideologia, mas como uma ciência); ou seja, o francês demoliu a argumentação contrária dentro da própria argumentação, e usando os termos e procedimentos do próprio argumentador. Neste sentido, ele (e sua equipe de trabalho, já que não se pesquisa sozinho) foi estrategicamente genial. Piketty, como já dito, desloca o foco da crítica ao capitalismo da produção para a distribuição, mas com isso não está dito, obviamente, que Marx não discute distribuição em seu próprio "Capital"; o foco da análise de Marx parece estar mais em como o modo de produção capitalista, produtor constante de mais-valia, seria a crise e o termo final do próprio capitalismo (um leitura 'grosso modo' do marxismo); o ponto focal, o campo de pesquisa da análise de Piketty não é no modo de produzir, hoje, mas no modo como a riqueza e a renda são distribuídas. Neste sentido, é uma análise bem mais singela e pouco radical no que toca a uma crítica ao capitalismo, mas essa mudança de foco é, ao meu ver, também estratégica, já que coloca um "cavalo de Troia" nos ambientes acadêmicos e políticos que tem apreço excessivo pela quantificação e uma "aversão natural" a todo criticismo revolucionário. Onde os críticos e marxistas veem pouca proposição e apenas remendos no modo de produção capitalista por parte de Piketty, eu vejo tática. É aí que reside o seu ouro. Duplo xeque: ao usar de números e mais números produzidos por pesquisa extensiva, o livro sai do duplo ideológico Estado-Mercado e de sua correlata predileção econômica entre liberalismo (sendo o anarco-capitalismo o seu extremo) e intervencionismo (sendo um Estado Comunista o seu extremo), inserindo uma discussão política num espaço liberal que a entende (ou finge entendê-la) apenas como uma discussão técnica, o único tipo de discussão que os acadêmicos economistas aceitam (ou fingem aceitar).

O xeque-mate vem na sua escrita: Piketty proseia como um não-especialista.