sábado, 8 de março de 2014

O fantasma da percepção, a percepção do fantasma

Car je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène."
Arthur Rimbaud 


Perceber, para nós, é um ato de distinção e clareza. Percebemos bem quando percebemos coisas, e percebemos a coisa quando a percebemos como uma coisa, e uma coisa que, necessariamente, não é uma outra coisa. Disto, desse ato de reificar, de "coisificar", nossa percepção não consegue se livrar. É isso mesmo que a define e, por tabela, o que nos define. Percebemos coisas e, lidando com coisas, somos, nós mesmos, uma coisa privilegiada que as percebe.

Essa coisa que somos, coisa que percebe coisas, a chamamos de muitos nomes. Somos sujeitos de direitos, somos pessoas jurídicas, somos mentes, somos almas, únicos em nossa indivisibilidade. Somos indivíduos e percebemos indivíduos.

Perceber é um ato de distinção e clareza; para nós, repito e friso.

Sempre que imaginamos outras dimensões do mundo físico imaginamos, com isso, outros planos de existência, outros lugares, outros mundos com outras coisas neles inseridos. E as coisas privilegiadas - sujeitos desses mundos - que percebem outras coisas as imaginamos como simples variantes de nós, simples coisas que percebem coisas. Alienígenas, demônios, anjos, versões de nós mesmos num mundo paralelo, fantasmas, que seja. O que ignoramos é que as tais "dimensões" que as teorias sobre o mundo físico nos apresentam só podem ser pensadas como "mundos paralelos" quando insistimos em percebê-las, repito, como coisas - ou seja, como uma coisa que é idêntica a ela mesma e diferente, por princípio, de uma outra coisa. A lógica, aí, se faz, mas aí, também, constrói engôdos. Tanto a ciência quanto o senso comum partilham dessa "atitude natural", desse "ato coisificador" do real.

As três dimensões da física clássica, embora facilmente identificadas como coordenadas distintas num plano cartesiano - largura, altura, comprimento -, não são três coisas, ao menos se por "coisa" entendermos, insisto, algo que é e permanece idêntico a si mesmo enquanto dele falamos, e é e permanece distinto de outro algo que não ele mesmo; não são três "coisas" pois nenhum deles existe, in re, como substâncias isoladas e independentes umas às outras. Um corpo que se desloca no espaço ocupa, necessariamente, essas três coordenadas e, se podemos medir o quanto tal corpo igualmente altera o valor de um dos eixos em questão (x, y, z), sabemos, intuitiva e diretamente, que essa independência entre um eixo e outro é puramente intelectual, abstrata, é uma ilusão com fins metodológicos. As "três dimensões" são recortes de um mesmo real, de um mesmo todo, uma omnitudi realitatis

Se trouxermos a quarta dimensão de Einstein e de Poincaré para o balaio, tornamos ainda mais difícil equivaler o espaço e o tempo do vivido com o espaço-tempo dos matemáticos e físicos, já que até podemos manipular coisas (e manipular esse objeto privilegiado a que chamamos de "meu corpo") através das tais "três dimensões", mas lidamos com o tempo da mesma maneira que lidamos com um rio que flui, vendo-o necessariamente correr num sentido único e inviolável (a represa é a matematização do tempo). O tempo, pois, pode inclusive ser pensado como a nossa própria experiência - a nossa percepção - do espaço que o nosso corpo ocupa, e pensá-lo em termos de "quarta dimensão" é "espacializá-lo", é colocá-lo no mesmo plano de algo de natureza distinta da sua. Num mesmo instante em que "percebemos", em que temos a experiência do tempo (o correr fluido do real), nós o escamoteamos, o transformamos numa coordenada espacial e matematizável, numa coisa. Eis a percepção: é a experiência do tempo, é o próprio tempo e, num mesmo instante, ao mesmo "tempo", é a negação do tempo.

Perceber é um ato de distinção e clareza, verdade, mas também e igualmente uma experiência direta. Esse é o fantasma da percepção.

Façamos um exercício de imaginação.

* * *

Imaginar, faço notar, é perceber na ausência de um objeto material que suscite no meu corpo a experiência da sua percepção. Imaginar é perceber uma imagem sem objeto.

Bergson já dizia que a lembrança é a experiência que o meu corpo tem de um objeto que não mais está presente no meu campo perceptivo. Lembrar, tal qual imaginar, é perceber uma imagem sem objeto.

A diferença entre uma e outra dessas funções, para o autor de Matéria e Memória, é que a rememoração tem função ativa; quando lembramos, quando trazemos à consciência uma imagem-lembrança, a trazemos como uma resposta reflexa a um objeto que, na percepção presente, a convida para vir à tona. Neste sentido, a imagem-percepção e a lembrança se equivalem, já que ambas são a produção de imagens-ação: quando olho um objeto, o que dele vejo, o seu rosto, a sua "face visível" - dentre todas as possibilidades de visão que poderiam se me revelar - é o uso que deste objeto o meu corpo pode fazer: uma cadeira é um objeto-para-sentar; um copo, um objeto-para-beber; uma faca, um objeto-para-cortar. Mesmo objetos que não são de antemão ferramentas - uma cachoeira, uma montanha, uma floresta - são percebidos pelo nosso corpo através da sua utilidade (a cachoeira logo se torna represa; a montanha e a floresta se tornam fontes de matéria-prima; aqui, logo somos remetidos a M. Heidegger).

Perceber é produzir uma imagem-ação; lembrar, idem, é produzir uma imagem-ação, mas a diferenciamos da percepção porque a imagem produzida na lembrança não tem um correlato material presente no "mundo externo". Se perceber e lembrar são equivalentes no sentido de serem "imagens produzidas" é porque a memória não é uma faculdade do corpo, não é um atributo individual, e a lembrança não é a retomada de dados que o nosso cérebro computou e armazenou num tempo já passado, mas a reatualização, pelo corpo, de uma temporalidade que lhe atravessa e que por ele é suportada.

O corpo carrega o tempo, carrega uma duração que é do próprio mundo em sua totalidade e em seu desenrolar criador, e o corpo sente essa temporalidade "diretamente", o percebe como sendo ele mesmo.  Duração implica consciência. Aqui, a coisa complica.

Se perceber se assemelha a lembrar, sendo a presença ou não de um correlato material o critério para diferenciar ambos, lembrar se assemelha a imaginar, sendo a existência ou não de uma experiência passada o critério de diferenciação. A imagem-percepção toca a imagem-lembrança e a imagem-lembrança toca a imaginação.

A percepção é a experiência direta do que é. A lembrança é a reatualização de uma experiência direta do que já foi (logo, é também uma experiência direta). A imaginação é criação.

Imaginar, porém, não é simplesmente a produção de uma imagem nova, uma imagem que não tem nem nunca teve um correlato material. Esse esquema intelectual da imaginação, que encontra vestígios mesmo nos empirismos mais radicais, pensa que, se imaginamos um pégaso é porque já passamos pela impressão sensorial de um cavalo e de animais alados, pegando características de um e outro e assomando-as numa imagem comum. Uma sereia, neste esquema, é uma mulher com cauda de peixe; um minotauro, um homem com cabeça de touro. A imaginação aí se resume à articulação de impressões já vivenciadas e, na mesma esteira, a criação não passa da articulação de realidades dadas.

Mas, lembremos, a imaginação num esquema que considera tanto a percepção quanto a lembrança como atos de produção não pode ser, ela mesma, uma simples bricolagem. Se imaginar é perceber uma imagem sem objeto, é necessário fazer movimentos para diferenciá-la da lembrança, que também é percepção sem objeto. O critério, já exposto, é que a lembrança é voltada para a ação presente, é a resposta a um chamado da percepção presente (se lembro do nome de meus tios ou do número de meu CPF é porque alguma coisa afetou meu corpo de uma maneira que ele fosse chamado, quase convocado, a prestar contas dessa imagem, que não é simplesmente reencontrada num banco de dados cerebral, mas novamente produzida, reatualização de um tempo e de uma memória que não são individuais, que não são meus). A lembrança, nesse sentido, é tão voltada para a matéria quanto a percepção, já que ambas são imagens-ação. A imaginação, logo, não é a reorganização de imagens já prontas, já que ela não visa atuar em nada.

Assim como a lembrança, enquanto imagem do que não está presente, não nos vem indevidamente - não nos vem "do nada", assim como a luz e o mundo vieram do espírito de Deus - a imaginação não é imagem pura, despretensiosa, espontânea e ocasional. Imaginar é, isso sim, um esforço para a construção da imagem nova. As imagens prontas e finais do pégaso, da sereia e do minotauro não são bricolagens, mas é a resultante de um esforço total de criação de um mundo inteiramente novo; vale lembrar que cada um deles não faz sentido fora de suas respectivas narrativas mitológicas e, mesmo quando vislumbramos suas imagens, é inevitável que arrastemos, conjuntamente, toda a temporalidade da qual eles provém. Se escrevo "Bilbo Bolseiro" ou "Batman" ou "M. Bison", suscito no leitor a imagem dessas três figuras mas, junto delas, todo o sabor das narrativas às quais pertencem. Imaginar é um esforço de encontrar - logo, de produzir - esse sabor.

Aí reside uma das distinções mais geniais e incompreendidas do bergsonismo: há um modo de pensar intelectualista, que busca esquadrinhar as imagens, alocá-las em espaços bem definidos e visa, acima de tudo, agir sobre elas (uma metodologia); e um modo de pensar que sai do registro da percepção e mesmo da lembrança, e visa produzir uma nova imagem do pensamento ou, mais precisamente, um pensamento sem imagem, pra usar o termo de G. Deleuze (uma ontologia).

* * *

Imaginemos, enfim, um ser senciente que ocupa um espectro perceptivo totalmente, radicalmente diferente do nosso. Percebe o que não percebemos e não percebe o que percebemos, e somos "invisíveis", "imperceptíveis", um ao outro. Vamos chamá-lo de fantasma.

Se somos dotados de uma visão que, através dum órgão foto-receptor, é capaz de distinguir a variação de luz num contínuo de claro-escuro e de cores, o fantasma possui um órgão vibrátil (a nós invisível) que "vê" através da oscilação de temperatura apresentada pelo ambiente; se possuímos uma audição, e audição é como chamamos a maneira como o nosso corpo se dobra num pavilhão auricular capaz de captar as vibrações sonoras produzidas pelo ambiente (e vibração sonora é a definição, retrospectiva, das percepções que se dão através desse pavilhão; sim, lidem com isso), o fantasma é dotado de micro-tentáculos capaz de absorver partículas proteicas carregadas pelo ar (ar que ele não sente); se somos seres táteis, capazes de identificar as texturas do mundo e de nosso próprio corpo (propriocepção), o fantasma tem uma membrana plasmática que mede os níveis de radiação gama emitidos pelo ambiente, moldando-se e se locomovendo em decorrência da emissão dessas partículas ("mover-se"ganha outra natureza para o fantasma).

Poderíamos continuar o exercício até o infinito, esmiuçando cada vez mais as modalidades do nosso corpo em abrir as portas para o mundo e inventando mais e mais modalidades do corpo do fantasma ser estimulado pelo mundo, imaginando, inclusive, modos de sociabilidade para este fantasma, regras de comunicação, a procedência do pensamento fantasma, o seu registro etc.; o campo já está posto: ocupamos dimensões distintas das dimensões ocupadas pelo fantasma, embora ambos, nós e o fantasma, estejam aqui neste momento atravessando um ao outro e ignorando a existência um do outro, cada um em seus próprios vastos mundinhos.

O exercício de imaginar não se resumiu à criação da imagem pronta do fantasma, sendo esta apenas o seu fenômeno; a imaginação, neste exercício, reside no esforço em tentar ocupar uma dimensão existencial que não é a nossa, e a imagem do fantasma, imagem percebida e posteriormente lembrada, é apenas o resíduo imagético desse esforço. Perceber, no sentido de apreender uma realidade dada (ou representá-la em nossas categorias de pensamento) é um fantasma, uma imagem nula que nada agencia; perceber não é captar dados de um mundo exterior, mas produzir uma imagem; lembrar é outra modalidade de produzir imagens; delirar, alucinar, embriagar-se, se apaixonar, muitas e muitas modalidades de produção de imagens. Ao mesmo tempo em que não há realidade fora do ato perceptivo (análise metodológica), há todo um plano de existência virtual que não conseguimos sequer conceber se nos mantivermos em nosso estado atual de coisas; quando intencionado, esse movimento de ruptura com os hábitos intelectuais condicionados é chamado, por Bergson, de intuição (análise ontológica).

* * *

A velha questão mentalista de "o vermelho que eu vejo é o mesmo que você vê?" é sustentada pelo fantasma da percepção. Essa pergunta só faz sentido no seguinte cenário: eu, que sou um armazenador e computador de dados, guardei em meus registros um determinado conjunto de operações que recebe o nome de "vermelho"; você, outro armazenador-computador, guardou em seus registros o mesmo conjunto de operações, igualmente nomeado como "vermelho"; após a constatação de que ambos, eu e você, temos o "vermelho" instalado em nossa memória de armazenamento e computação, e que somos, para todos os efeitos, tão só armazenadores-computadores, fazemos a pergunta "o modo como eu, um a-c, vejo o vermelho é o mesmo modo como você, outro a-c, o vermelho"?

O fantasma, aí, mobiliza paradoxos. A percepção é a criação, pelo meu corpo, de uma imagem voltada para a ação, ação do meu corpo sobre o mundo; mas também essa percepção é apreendida "diretamente", como se nos instalássemos na coisa percebida. Perceber é intuir o tempo (ontologia, a imaginação intuitiva) ao mesmo tempo em que escamoteio esse próprio tempo, vendo-o perfilar em minha frente como uma série de coisas (metodologia; a percepção e a lembrança intelectuais). A palavra VERMELHO e o seu significado para a minha inteligência são de natureza distinta do vermelho que vejo, que intuo, ainda que a existência de um seja correlata à do outro. O vermelho-da-inteligência e o vermelho-da-intuição são distintos, mas são, também, indissociáveis, são ideados. A reversal nos ajuda ainda mais: ambos os vermelhos são indissociáveis mas brutalmente distintos; não distintos como o vermelho é do violeta, mas distintos como o vermelho é de um copo de cerveja, ou o violeta é de um elefante africano.

A pergunta do mentalista joga com os dois sentidos de vermelho e nos confunde, e se confunde, ao passar desavisadamente de um sentido para o outro, produzindo um problema que não é um problema. Ao perguntar, esquece que 1) o problema é impossível de ser investigado, já que procedimento metodológico algum pode me colocar no interior da sua intuição (o que me transformaria em você), nem te colocar no interior da minha (o que te transformaria em mim), e, além disso, 2) mesmo que eu tente focar a minha análise numa realidade mensurável e constate que os efeitos sofridos pela minha retina e os impulsos elétricos dirigidos ao meu cérebro são exatamente idênticos aos efeitos da sua retina e do seu córtex cerebral, eu não poderia inferir, daí, que nossa experiência imediata resultante desses dados materiais seja a mesma; ainda mais importante, 3) podemos comparar apenas coisas que seguem o mesmo critério de definição; o vermelho que eu vejo, assim como o vermelho que você vê, nem coisas são, mas experiências diretas, imediatas.

O mesmo problema pode ser recolocado se abandonarmos o fantasma da percepção e tentarmos encontrar a percepção do fantasma.

Merleau-Ponty, em seu A Prosa do Mundo, marcou a diferença entre o sujeito do "eu penso", aquele mesmo que representa o mundo através de uma linguagem pura que serve de anteparo e mediação entre seu pensamento e as coisas, e o sujeito do "eu falo", aquele mesmo que não é só uma mente, mas um corpo, uma carnalidade, e que, ao falar e escutar, torna-se o outro e faz com que o outro se torne ele mesmo, se faz no outro e faz o outro se fazer nele. Quando este sujeito encarnado - que não é apenas um processador, um a-c - lê um texto, ele é enganado pelo escritor desse mesmo texto que, ao usar de palavras cujo sentido isolado o leitor já conhece, pretende levar o leitor a um lugar de pensamento em que o leitor jamais esteve, e que talvez, sem o escritor, ele nunca chegaria; o livro e o texto, de início simples palavras avulsas, simples garatujas numa superfície, "pegam" no leitor, assim como o fogo "pega" (o exemplo é de Sartre), o livro e o texto tornando-se a expressão viva de um sentido que vai além desta ou daquela palavra usada (embora delas não se dissocie). Posteriormente, ao lembrar-se do texto, o leitor não rememora as palavras isoladas, mas o seu sentido, o seu todo; ao retomar uma leitura que foi deixada de lado, o leitor vai tentando encontrar não só "onde parou" mas, ao reencontrar esse ponto, recebe de uma só vez toda a narrativa engendrada pelo texto e já experienciada por ele.

Através da experiência literária, Merleau-Ponty quer nos fazer entender que o que define irredutivelmente o sujeito não é somente o pensamento, mas a despersonalização; ao ler, ao conversar, ao viver enfim, o sujeito entra em contato constante com uma alteridade que o arrebata de si mesmo, através das palavras que encontra, dos objetos que manipula, das experiências que vive e, assim, tocando e sendo tocado por uma realidade que o sujeito julga conhecida, o sujeito torna-se outro, torna-se um outro eu mesmo.

Tornar-se um outro eu mesmo é encontrar a percepção do fantasma. Tornar-se um outro eu mesmo deliberadamente é o que Bergson chamava de método intuitivo.

O sujeito do "eu penso" é o sujeito da metodologia, das coisas reais; o sujeito do "eu falo" é o sujeito da ontologia, do virtual. Ambos são criados quando o sujeito integral, ao perceber seu objeto, o percebe como imagem e como vivência, como vivência e como imagem, indissociadamente.

Comparar o vermelho que vivencio com o vermelho que você vivencia é pergunta sem sentido. Poderia perguntar, isto sim, se você poderia me emprestar uma caneta vermelha; poderia perguntar, explico, pois o "vermelho" da pergunta em questão remete a uma realidade, a uma coisa, e, assim sendo, é muito mais uma categoria de ação que uma categoria ontológica. Não importa se a experiência direta que o vermelho imprime no seu corpo é a mesma que eu vivencio. Ao falar "vermelho", quero mobilizá-lo e afetar o seu corpo para que o mesmo me traga esta, e não aquela outra, caneta. A categoria, repito, é ativa, é uma categoria perceptiva ou rememorativa.

Imaginar é tentar ver o vermelho do fantasma, o vermelho que o fantasma vê e, assim, tornar-se o fantasma. O que o escritor faz é instigar o seu leitor a imaginar (a menos que o texto em questão remeta a uma realidade estritamente evidente, clara e distinta; um bilhete afixado na geladeira dizendo "acabou o leite" é um texto desta natureza e, ainda assim, remete a algum tipo de alteridade). Se colocada nesta perspectiva imaginativa, aí sim a pergunta faria algum sentido. Ao invés de buscar a igualdade entre dois "vermelhos", busca-se tensionar um dos "vermelhos", uma das experiências, um dos mundos, em direção ao outro.

* * *

No lugar do "vermelho", podemos pensar a mesma questão em relação a um texto, uma música, um acontecimento ou um lugar etc. O texto que agora escrevo é o mesmo texto que você agora lê? Quando Descartes escreve as suas Meditações e nós, eu e você, as lemos se trata do mesmo texto? Ao por em execução a Terceira de Beethoven escutamos a mesma música? Ao visitarmos uma cidade, um restaurante 4 estrelas, uma lanchonete, uma praia, é o mesmo lugar que ocupamos, eu e você?

Se mantemos o fantasma da percepção mentalista, então as questões não fazem sentido.

Se perguntamos no registro da percepção do fantasma, a conversa anda.

Não faria sentido alguém abdicar de ir à praia com seus convivas pois não consegue responder à questão mentalista de se a praia experienciada por um é exatamente a mesma praia que o outro produz em suas experiências imediatas. O que nos interessaria, nesse questionamento, é saber que tipo de fantasmas habitam a praia; que modos de perceber e rememorar a praia estão para além (ou aquém) do meu modo habitual e condicionado de percebê-la e rememorá-la? Como imaginá-los?

Amigos que vão a um concerto musical juntos certamente terão experiências próprias no local, obviamente, já que cada um é um corpo e ocuparão, cada um, algum tipo de zona fantasma para algum dos demais; e isto ainda que, após o show, todos enunciem que tenham gostado das mesmas músicas.

O "vermelho que cada um pensa" é um problema mal colocado; todos pegarem a caneta vermelha, e não a azul, é um modo adequado de se pensar e agir sobre as coisas em sua clareza e distinção; fazer um esforço, cada um, para ocupar a zona fantasma que para o outro é o estado habitual de coisas, imaginar o que, para o outro, é simples percepção e lembrança, é tornar-se um outro eu mesmo.

Ser sujeito é perceber (somos sujeitos que pensam), mas também lembrar (somos sujeitos históricos) e, principalmente, imaginar (somos todos artistas). Individuar-se, tornar-se a si mesmo, tornar-se aquilo que indubitavelmente somos, é sempre tornar-se um outro.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Impostura intelectual

Por esses dias, soube do caso: mais de 120 artigos já publicados - e isso só depois de 2008 - foram "escritos" por um programa de computador, um "gerador de lero-lero". Chocante, de fato. Curioso, no mínimo. Lembra-me o Caso Sokal, mas não muito. À época de Sokal, toda uma crítica lalante e furiosa foi jogada para cima dos vilões da vez, do mal do mundo, sim, os malditos pós-modernos e seus textos impenetráveis, textos que nada de sério carregavam entre uma e outra palavra anunciada. Agora isso, de novo. E os vilões de outrora - os tais viajantes do tempo, os tais pós-modernos - são reatualizados e aparecem, mais uma vez, como bodes expiatórios de um problema que é maior do que qualquer guerrilha acadêmica de trincheira. Meu incômodo tem mais de ver com a repercussão da notícia que com a notícia ela mesma. Assim que a manchete foi veiculada, pudemos ver frases e mais frases do tipo "só podia ser coisa de pós-moderno" e variações. Detalhe: a maioria dos artigos publicados é da área de exatas, e muitos deles oriundos de eventos ocorridos na China. Meu incômodo, insisto, tem a ver com a atribuição de culpa a um bode expiatório qualquer - neste caso, o cachorro morto e já chutado do pós-moderno - ao invés da colocação do problema em termos não individuais. Se 120 artigos de mentirinha, artigos que não dizem nada, passam pelo crivo de uma banca de correção, e às cegas, devemos, isso sim, rever nosso modo de entender e pôr em operação o saber acadêmico, que demanda de nossos professores uma produtividade curricular, fabril e empresarial, acabando por saturar nossas editoras com pilhas e mais pilhas de textos e pesquisas que, mesmo quando nos dizem algo, nos dizem sempre mais do mesmo. Não há revisão por pares que dê conta de uma estrutura produtiva insana como essa. No mínimo - no mínimo! - nossa maneira de avaliar o que produzimos e de entender o que é avaliação deve ser revista. Frente a isso me pergunto: por que Lyotard, Guattari, Lacan, Derrida e Foucault, enquanto obra e, principalmente, enquanto pessoas, são "os culpados" pelo que houve? E de novo!?