quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Neocrítica ou intencionalismo?

Três acontecimentos tomam de assalto a minha timeline e o meu interesse: o assassinato de Eduardo Coutinho, as acusações de assédio sexual e pedofilia que mais uma vez recaem sobre Woody Allen e, por fim, a publicação dos Schwarze Hefte de Martin Heidegger (que trazem à tona a sua já velha mas não tão conhecida relação com o nazismo).

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Muito pouco se tem dito sobre o primeiro caso, cujas manchetes claramente pendulam entre um e outro lado do dualismo "vida e obra"; ou se fala que "Coutinho foi assassinado: conheçam o seu filho esquizofrênico" ou "Coutinho foi assassinado: vejam imagens de seus geniais documentários". Um acontecimento e, em torno dele, um polo infértil que pouco parece acrescentar ao ocorrido. 

Coutinho é um sujeito? Um objeto? Um “cabra”?

Neocrítica ou intencionalismo?

A Coutinho, cabem apenas nossas honrarias, e não nossas análises; mas fica visível, já aí, essa tal divisão entre vida e obra que igualmente repercute noutros espaços e acaba por impedir uma discussão efetiva sobre o acontecimento.

Os dois últimos casos (Allen e Heidegger) merecem ser pensados juntos através dessa leitura.

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Em carta aberta hospedada num dos blogs do New York Times, a filha adotiva de W. Allen, Dylan Farrow, falou do abuso que sofreu pelo cineasta aos sete anos de idade; os cadernos negros de Heidegger – anotações pessoais que o filósofo fez entre 1931 e 1946 – mostram ideias que possuem um caráter claramente antissemita (ainda que distintas de uma certa ideologia nazi). O que ambos os casos têm em comum é a clara divisão entre a vida de cada um e o conjunto de suas obras, que podem operar como planos de discussão distintos, certamente, mas uma divisão que, num aparente paradoxo, obscurece qualquer encaminhamento sério acerca da dualidade que apresenta; em resumo, o que impede a discussão sobre a vida e a obra de um pensador (denker) é, justamente, a divisão que o espartilha em vida e obra, estas entendidas como realidades distintas e independentes.

A obra de Heidegger, carregada de críticas à impessoalidade (ao escritório e falatório cotidianos), desautoriza qualquer um a assumir a postura de um Hitler, um Goebbels ou um Mengele, principalmente a de um Eichmann. Claro, sempre um e outro irá perguntar se “Heidegger era (ou não) nazista?” ou se “ele poderia (ou não) ter feito algo diferente?”, pêndulo ainda mais reforçado com a publicação dos cadernos; uma boa pergunta feita pelos filósofos de diploma, porém, é a séria “e nós com isso?” (nós, e não eu).

Heidegger é uma obra (uma série de publicações ditas "oficiais", um cânone que nos ajuda a encaminhar questões e, principalmente, a colocar problemas em nossas próprias vidas e obras) e uma vida (ex-seminarista >>> filósofo >>> assistente de E. Husserl >>> professor em Friburgo >>> membro do Partido Nazista >>> reitor da Universidade de Friburgo etc. etc.). A pergunta séria, reformulada, é “o que a nossa atividade de pensamento – qualquer que seja; da abstração mais metafísica ao ascetismo mais radical – ganha, na análise dessa obra e dessa vida?”.

Pergunta paralela e quase coincidente: o que é analisar essa obra e essa vida?

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A despeito de todo o juízo de gosto que se pode ter sobre Woody Allen e seus filmes ("eu gosto, eu não gosto, é gênio, é fraude, soa divertido, soa chato"), é inegável a importância dos mesmos na história do cinema, na criação de uma estética narrativa nonsense muito particular, na proliferação de toda uma cultura ao mesmo tempo pop e cult, e tantos outros qualitativos que renderiam um texto por si só; no entanto, quando esses complementos de sua obra o absolvem de antemão da alcunha de estuprador e pedófilo - o que, imediatamente, desqualifica o discurso de Dylan e a coloca num papel de caluniadora histérica - quando a obra de um sujeito o alça à categoria nobre e panteônica de um autor-de-obras-primas e, enquanto autor, figura acima da realidade mundana das desconfianças e litígios comezinhos, temos aí um sinal de que, ainda que sejamos alfabetizados e tenhamos devorado obras e mais obras, nós, todos nós, ainda não sabemos, de fato, o que é ler uma obra; uma vida, tampouco.

Esta feita, o dualismo vida-obra (e o analfabetismo funcional que lhe é correlato) impede que se discuta o caso com sensatez e, mesmo, que se discuta abuso e pedofilia como um todo. A conversa, resumida a um paredão televisionado, mantém-se no registo do "você acha que estuprou ou não?".

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O século passado foi seminal para o surgimento de embates pendulares os mais diversos, e que até hoje parecem durar: "é o sujeito que 'imagina' o seu objeto de acordo com categorias mentais (idealismo representacionista) ou é o objeto que, sendo uma realidade em si mesma, se revela para o sujeito do conhecimento (realismo ingênuo)?"; "a personalidade é intrínseca ao indivíduo (inatismo) ou é adquirida na sua trajetória de vida (empirismo)?"; "a História é determinada por um elã evolucionista (ex. os vitalistas) ou pelas condições materiais disponíveis ao homem em seu fazer histórico (ex. os marxistas)?"; "o pensamento é uma realidade cerebral (fisicalistas) ou espiritual (mentalistas)?"; "as transações financeiras devem estar isentas de qualquer tipo de intervenção a elas exterior (economia de livre mercado) ou deve haver algum tipo de organização política que regule a economia e garanta serviços básicos à população (Estado de bem-estar social)?"; "a sociedade é composta por indivíduos (análise psicológica) ou os indivíduos são compostos por condições sociais (análise sociológica)?".

O começo do século passado também foi seminal não apenas na colocação destes problemas binários, mas, inclusive, na "suspensão" desses mesmos problemas (à título de exemplo, as obras de Husserl, Bergson, Nietzsche, Gabriel Tarde e outros, cada um a sua maneira, são tentativas de pensar uma filosofia não trincheirista, longe do "ou isto ou aquilo", ou Fla ou Flu; uma filosofia que não confunde pensar com adequar-se ao mundo, mas com recolocá-lo, recriá-lo; a releitura moderna de antigos pensadores, como Spinoza, Hume, até os estoicos, pode ser lida dentro desse projeto).

[É interessante notar, à título de hipótese, que cada época configura e modula os seus próprios dualismos, extremos de um campo problemático que organiza práticas institucionais, regimes de verdade e subjetividades distintos na tentativa de solver esse próprio campo; temos, p. ex., as questões antigas e medievais que procuravam saber da salvação do Homem em sua relação com Deus, e de como se dava essa salvação: se era o Homem que, através de um esforço livre e pessoal, é glorificado no amor de Deus (a ascética de Pelágio) ou se era uma entrega incondicional à Graça que salvava a alma humana (a mística de Agostinho); outros dualismos medievais "famosos" são razão-fé, gnose-fé, alma-carne, santidade-pecado, misericórdia-justiça, que se organizam não só num plano de ideias, mas num contínuo de instituições e modos de ser; essa discussão, embora preciosa, não é o foco desse texto].

Um desses binarismos, no entanto - a neocrítica e o intencionalismo autoral - nos ajuda a pensar a questão da vida, da obra e da leitura de ambas. Ao invés de falar do surgimento da neocrítica em meados dos anos 1920, ou mesmo de obras que marquem o seu consolidar - como o ensaio The Intentional Fallacy, de Bearsley e Wimsatt - vale a pena marcar duas obras nas quais esse dualismo (em suas formas caricatas, ao menos) se torna claro: os geniais A Volta do Parafuso, de Henry James e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Na primeira, temos o personagem Douglas lendo o manuscrito de uma governanta já morta; na segunda, o personagem Bento Santiago unindo relatos de sua juventude até os seus 54 anos.

O primeiro ponto em comum de ambas as narrativas reside no fato de que o leitor - nós, no caso - lê não apenas uma história envolvendo este e aquele personagens, mas o documento literário que tem em mãos faz parte, ele mesmo, do próprio cenário narrativo a que pretende criar; temos em mãos não apenas um texto "sobre" um mundo, mas um texto proveniente do próprio mundo! Outras histórias também jogam com esse recurso literário, como o Werther, de Goethe (temos em mãos não um relato "sobre" o jovem, mas as cartas escritas pelo punho do mesmo, até o seu suicídio), ou 1984, de George Orwell (quando Winston Smith recebe de O´Brien uma cópia do manifesto de resistência ao Grande Irmão, é o leitor que o recebe e é o próprio leitor que, posteriormente, folheará algumas de suas páginas).

A imanência do texto em relação ao leitor, esse efeito recursivo de imersão do leitor na realidade do texto e emersão do texto na realidade do leitor, esse efeito de nivelar leitor e texto num mesmo plano de realidade, tem um uso extremamente sutil e particular nas duas obras citadas. Antes de dizê-lo, vale notar que o efeito de imanência abole a figura do autor (não existe um tal Machado de Assis na antiga Rua de Matacavalos, nem nunca foi registrado alguém com o nome de Henry James nas redondezas de Essex); assim sendo, abole qualquer sujeito privilegiado que poderia estar de posse do verdadeiro sentido do texto; assim sendo, mais uma vez, o texto deixa de exigir interpretação - relação de transcendência, relação de ascensão do leitor, enquanto lê e interpreta, à condição divina do autor. E o que o texto sem autor e sentido prévio passa a exigir? Está aí o uso genial da imanência na escrita de Machado de Assis e Henry James: a polissemia.

A protagonista de A Volta do Parafuso, escritora do manuscrito e governanta dos irmãos Miles e Flora, começa a ver nos derredores do casarão as figuras de um homem e uma mulher desconhecidos; cada vez mais, sente-se convencida de que se trata dos fantasmas de Miss Jessel e Peter Quint, antigos empregados do lugar. O digno de nota é que ninguém, além da própria governanta, vê as aparições. A pergunta que se faz é "a casa é rodeada pelos fantasmas de Jessel e Quint (o texto que temos em mãos é o relato de uma governanta numa história de assombrações) ou a governanta está delirando aquela história toda (o texto que temos em mãos é o relato de uma mulher em processo de ensandecimento)?".

Bentinho, relator do texto que temos em mãos, texto a que chamamos Dom Casmurro, nos faz perguntar se "Capitu o traiu com Escobar ou Bentinho é apenas um ciumento crônico e inveterado!?".

Lembrete: não há Machado de Assis ou Henry James que possam ser inquiridos para que deem o real sentido da história, já que o texto-imanência os aboliu enquanto donos do sentido do texto, instaurando um mundo no qual os mesmos não existem. Detalhe: os escrevinhadores do texto, Bentinho e a governanta de Essex, também não existem efetivamente. O que sobra para questionar? O texto ele mesmo. E que indícios encontramos sobre a fidelidade (ou não) de Capitu, ou sobre o assombramento do casarão (ou não) pelos fantasmas de Jessel e Quint? Nenhum, nem pra lá nem pra cá.

Se Bentinho fosse um sujeito real relatando a sua história real, no sentido comum do termo "real", poderíamos inquirir à tal realidade sobre Capitu pesquisando noutros relatos, entrevistando pessoas, lendo diários alheios etc.; ainda que nos fosse impossível chegar a uma conclusão definitiva, a pergunta "traiu ou não" faria sentido, já que o texto remeteria a um fora, um extracampo que não ele mesmo; mas, vale lembrar, o texto em questão não possui autor e, radicalizando, também não possui um fora, situando-se num limbo que não é nem o "mundo real" nem o cenário ficcional a que remete. Não há extracampo ao qual um texto dessa natureza possa remeter. O referente do discurso do texto é o texto ele mesmo.

O que os tais textos (A Volta... e Casmurro) revelam para o leitor é, pois, a ambiguidade de seu próprio discurso. O neocrítico, então, dirá que a experiência literária sai do regime mentalista, do regime divino do autor-criador, e nos entrega uma evidência textual que, ainda que possa estar carregada de "intenções autorais", tem um valor em si mesma. O que o neocrítico tira da leitura de Henry James e de Machado de Assis é um novo modo de ler. Não mais se busca o sentido do texto nas intenções (declaradas ou não) de um autor, mas sim na única coisa efetivamente real no ato de leitura: o leitor e o texto.

O intencionalista, a despeito de toda a argumentação neocrítica, coloca que mesmo nos textos evidentemente ambíguos há um sujeito que empunha a caneta e registra as palavras. Mesmo no texto-imanência que suspende o autor há alguém com a intenção de fazê-lo.

O neocrítico responderá que não pode basear uma análise séria num suposto "estado mental" (logo, inacessível) como causa do fenômeno textual, levantando que, num extremo dessa postura, um texto pode dizer claramente uma coisa, pode levar seu leitor clara e distintamente a ter uma certa interpretação do texto, mas poderá significar exatamente outra devido a um pronunciamento de seu autor sobre o que ele, de fato, "quis dizer". A única coisa analisável é o "dito", o realmente escrito.

O intencionalista retruca que um texto produzido por alguém é diferente, por natureza, de um texto criado "por acaso" (o macaco shakespeareano), ainda que se trate do mesmo escrito. Para além, o texto só foi escrito "assim", de uma determinada maneira, devido às vicissitudes e particularidades de seu autor, e lê-lo é ler o seu autor; mesmo um apelo às regras gramaticais e da linguagem em geral são um apelo implícito ao uso que o autor fez das palavras em questão.

O neocrítico defenderá a sua interpretação do texto, já que a mesma está aberta à polissemia e, assim sendo, não exclui a interpretação de outros críticos que possam vir a fazer uma leitura do mesmo texto.

O intencionalista atacará, dizendo que suas interpretações não pretendem esgotar "a verdade" do texto, mas apenas evitam cair numa interpretação ao infinito do que está ali, contido no papel.

O neocrítico marca a importância das muitas técnicas de análise textual já desenvolvidas pela crítica profissional, e como elas operam uma tentativa para entender o texto sem a necessidade de "contaminá-lo", remetendo-o a outras instâncias. Ler o texto corretamente é ler o texto nele mesmo.

O intencionalista põe o texto como fruto de um extracampo não-textual (seja ele psicológico, social, histórico etc.), e identifica texto e extratexto. Ler o texto corretamente é ler o seu extratexto.

O neocrítico dirá que a sua "crítica" é "literária", não "existencial".

O intencionalista rebaterá que a literatura é um produto humano, não um conglomerado de palavras.

(...)

Abandonemos esse dualismo.

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Woody Allen é (ou não) um estuprador?

Heidegger foi (ou não) nazista?

E nós com isso?

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É impossível escolher um dos lados da seara literária, já que os dois são verdadeiros dentro do regime de verdade que cada um deles coloca. Arrisco dizer que boa parte das searas com que nos esbarramos pode ser representada por essa sentença.

Entendemos - e concordamos com! - os enunciados e argumentos elencados por cada um dos entrincheirados. Um deles, porém e a grosso modo, quer entender o sentido da obra perguntando à obra ela mesma o seu sentido ("o que o texto diz?"); o outro articula imediatamente a obra à vida do seu fora autoral e dele pretende sugar o sentido do que está impresso ("o que o autor quis dizer?"). Como subversão desse dualismo, sugiro a pergunta "o que acontece?". "O que produz e o que é produzido por este texto?".

Ler o texto "nele mesmo" e ler o texto "como extratexto" só são excludentes se o entendermos como protocolos bem situados e já institucionalizados.

Flamengo e Fluminense são excludentes em suas definições ponto-a-ponto (o brasão, o hino, a escalação, o técnico, os dirigentes), mas ambos são componentes de um mesmo "jogo", de uma mesma atividade simbólica, o futebol. O flamenguista e o fluminense terão, cada um, suas razões para investir afeto em um time (e não em outro, e não no outro), mas o estudo e delineamento de suas proposições e princípios não nos dará instrumento algum para melhor apreciar e entender a partida e, muito menos, para melhor apreciar e entender os meandros do futebol que suportam e condicionam aquela partida e a dualidade excludente que postula; ademais, o gosto pelo futebol não demanda a vinculação a brasão algum. Mas também não a exclui, decerto. Estar vinculado afetivamente a um time (ou a outro, ou a nenhum) não faz diferença quando se trata de ler o futebol, em seus muitos níveis (arte, performance esportiva, gestão do clube, patrocínio, e muitas, muitas, muitas outras), assim como afirmar-se Estadista ou Neoliberal por si só não influenciará bulhufas quando se ocupa um cargo burocrático de gestão política (tampouco quando se discute política financeira com seus amiguinhos no Facebook).

Há o texto (foco neocrítico) e há o extracampo desse texto (foco intencionalista). Esse dualismo também merece ser suspendido, mas antes disso, vale lembrar, ele nos ajuda a pensar a escrita longe do circuito representacionista, longe do texto que "quer dizer" alguma coisa. O que o texto diz está no texto ou fora dele? É isto ou aquilo? É ambos e nenhum. "O que o texto diz"? "O que o autor quis dizer"?. Como subversão desse dualismo, sugiro a pergunta "o que acontece na escrita e na leitura desse texto?". "O que produz e o que é produzido por este texto?".

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Em resposta ao cara-ou-coroa que nos impõe a escolha do dentro ou do fora do texto, é mister uma leitura menos histérica do texto e das coisas que procure não dizer do que eles dizem (afinal, já falam por eles mesmos), mas dizer do modo como dizem, seja pra dentro seja pra fora.

Esse "falar por ele mesmo" não é um dado óbvio revelado pelo texto e pelo seu entorno. Muito trabalho há de ser feito para que os mesmos, texto e foratexto, se revelem. Mas texto e foratexto possuem uma verdade, um "Todo" que não é do plano da escrita, embora a envolva.

O suspense A Volta do Parafuso é uma máquina literária, constrói uma lógica interna e demanda um determinado leitor parecido com o leitor do drama Dom Casmurro, mas que difere em muito do leitor de Dom Quixote, romance narrativo por excelência, uma outra máquina literária com um outro funcionamento interno. Neuromancer, de Gibson, maquina uma literatura saturada de dados, tal qual o seu cenário cyberpunk, e produz um leitor ágil, malandro, gabola, que ou aprende a lidar com o fluxo de informações que lhe acomete ou morre nas ruas de uma Tóquio ao mesmo tempo hipertecnológica e precarizada, tal qual os seus personagens. O texto e o leitor de Ulisses, de James Joyce, é um "fluxo de consciência", é a negação de um texto e um leitor entendidos como coisas, um texto-objeto e um leitor-mente. O poeta também agencia suas máquinas literárias (alguns, como F. Pessoa, são engenhoqueiros múltiplos).

O cinema também nos permite essa leitura: em substituição ao dualismo interpretativo que tira do filme ou sua técnica (enquadramento, decupagem, banda sonora, raccords) ou sua "humanidade" (a "moral do filme", sua interpretação por este ou aquele sistema teórico, contextos históricos da filmagem, referências usadas pelo diretor), propomos uma busca pela máquina cinematográfica que opera em cada película, pelo tipo de montagem que agencia um sentido específico e um espectador específico (montagem orgânica, dialética, expressionista, quantitativista, neo-realista, "nouvelle vaguista", cinemanovista etc.). Não uma leitura pelo sujeito ou pelo objeto do livro e do filme, mas uma leitura que atravesse ambos e nos mostre a máquina que produz e é produzida por ambos. É essa máquina que podemos usar para produzir nossas próprias máquinas, e não apenas enunciados vazios e pedantes "sobre" a obra (e a vida).

Existem máquinas literárias, mas também cinematográficas, políticas, econômicas, científicas, filosóficas, religiosas. Elas se confundem, por mais das vezes.

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Podemos ler Platão - o primeiro filósofo a deixar uma obra escrita coesa, consistente e de considerável envergadura - como o pensador "das ideias, da oposição aparência-essência, da oposição opinião-conhecimento", e muitos outros preconceitos que despejamos sobre o filósofo antes mesmo de nos debruçarmos sobre seus textos. Uma leitura minimamente implicada nos colocará em contato com os textos do ateniense (algumas cartas, muitos diálogos) e/ou com o contexto histórico no qual sua obra se desenrola (crise da democracia em Atenas), mas isto por si não nos impede de lê-lo e chamá-lo de "o cara das ideias", como o cara que escreve (ou transcreve) diálogos diversos, mas diálogos que versam, todos, no fundo, sobre a tal da "ideia"; seu Fedro trata do amor (e vela uma crítica à escrita, ao final), o Laques fala de Coragem, o Fédon nos ensina sobre a imortalidade da alma - em todos estes, podemos encontrar, lá, uma referência maior ou menor ao eidos.

No entanto, ler um diálogo de Platão de maneira enviesada, como se o texto fosse apenas um texto "para a ideia", como se o objetivo do texto fosse apenas escrever de uma maneira diferente a mesma coisa, é não ler o texto, é desrespeitá-lo, autor e obra, é tentar "interpretá-lo" e, em decorrência, destruir a sua máquina. É ficar "sobre" o texto e não engendrar coisa alguma com ele.

Acoplar-se à máquina literária de um texto não implica - aqui deixo registrado textualmente - desprezar as análises da obra e da vida. Não é um simples "uso pessoal" do impresso, do que está ali, dado (um modo muito peculiar de leitura, tão válido quanto qualquer outro, máquina literária que constitui um texto e um leitor como qualquer outra máquina literária) e, muitas vezes, implica toneladas e toneladas de estudo sobre a vida e a obra. Às vezes não, porém.

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Woody Allen, cineasta, tem a sua obra. No entorno dessa obra, a vida, o extracampo que lhe dá consistência e que, juntos, fazem operar uma máquina cinematográfica.

Martin Heidegger, denker, tem a sua obra. No entorno dessa obra, a vida, o extracampo que lhe dá consistência e que, juntos, fazem operar uma máquina filosófica.

Allen é pedófilo? Heidegger é nazista? E nós com isso?

Allen tem a sua obra, mas a vida que lhe embasa não é a vida da pessoa de Woody Allen, não é desse sujeito que se trata. Heidegger escreve a sua obra, mas a vida que lhe embasa não é a vida da pessoa de Martin Heidegger, não é desse sujeito que estamos tratando.

O extracampo da filmografia de Woody Allen não é a sua vida pessoal. O extracampo da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger não é a sua vida pessoal.

Ter assistido e gostado de Bananas, Annie Hall, The Purple Rose of Cairo, Deconstructing Harry, Match Point, Vicky Cristina Barcelona, To Rome with Love, Blue Jasmine e tantos, tantos outros, não nos autoriza a absolver juridicamente a pessoa de Allen (nem a atacá-lo com a justificativa de que é uma figura pública e, assim sendo, "está aí para ser falado, mesmo"), a menos que possamos absolver Sandro Rosell, presidente do Barcelona, das denúncias de fraude na contratação de Neymar devido ao bom desempenho de Messi nos últimos jogos. O extracampo da obra, a vida a que somos autorizados a falar quando entramos em contato com a obra, a vida que é o outro lado da obra de Woody Allen e que, junto desta, compõe uma máquina cinematográfica, não é a vida pessoal de Woody Allen.

Idem para Heidegger.

A questão de Heidegger pode até ser mais complicada, assim como outras figuras que pareceram não viver suas próprias filosofias "de vida", como Schopenhauer ou Sêneca, mas todas podem ser lidas através da noção de "máquina". A "vida" da filosofia - mas também a da literatura em geral, do cinema, da política etc. - não é a vida do sujeito individual, não são os desejos internos, conhecidos e desconhecidos, que motivam a escritura do livro, do filme ou do fazer público (embora possam ser...), mas o cenário englobante que lhe serve de solo e, ele sim, lhe dá um sentido (cenário este, repito, que até pode ser a vida pessoal; o socratismo e o platonismo, mesmo, se configuram como um pensamento que visa articular o conhecimento da verdade pelo sujeito com a transformação desse sujeito pela verdade; o cinismo, na mesma esteira, aparece como uma radicalização desse esquema e é a igualdade brutal e indissolúvel entre a vida e a obra filosóficas). É por isso que devemos perguntar a que interessa uma pergunta ou uma resposta para nós, enquanto leitores constituidores de uma máquina, e não a mim, a um eu, um indivíduo que gosta ou não gosta do filme, gosta ou não gosta de um livro, de um texto, de um time, de um partido político, e se mantém "sobre" este livro e este filme - pior, "sobre" a vida de seu suposto autor; ainda pior, "sobre" a vida pessoal do indivíduo que confundimos com a figura do autor - ditando sentenças terminais e arrogantes acerca do mesmo.

Maquinar é sair do "mesmo".

Maquinar é abster-se de interpretar o mundo inteiro.