sexta-feira, 24 de maio de 2013

O Estado não é uma reunião de almas individuais

Dona Selma Patrícia da Silva, lá da cidadezinha de Formosa, em Goiás, trabalha hoje como diarista. Nos últimos anos, fez curso de artesanato e de manicure, tirando uma renda extra das bonecas e adereços de pano que produz e vende nas feiras locais. Dona Selma, no entanto, vem aparecendo indevidamente na imprensa politiqueira como uma beneficiada que deixou espontaneamente o Programa Bolsa Família após melhorar de vida. Mãe de cinco filhos, também era beneficiária do Auxílio Gás e do Bolsa Escola, quando apenas fazia bicos como faxineira (e o marido como pedreiro). Assim que terminou a construção da sua casa, no entanto, devolveu o cartão que lhe garantia todos esses benefícios, gerando comentários que louvavam a atitude dessa senhora, honesta para com seus direitos e necessidades: "se as pessoas beneficiadas com esses programas pensassem e agissem como Dona Selma, tenho certeza que o Brasil melhoraria muito". Ora, uma análise política séria da situação não poria o seu foco em "uma senhora" e sim nas "1 milhão, seiscentas e noventa mil famílias" que, sem coerção alguma, abriram mão do programa assistencial. As reportagens e matérias se davam no registro do mérito do indivíduo, o que ocultava a verdadeira discussão, a da efetividade da política que abarcava o indivíduo, a Dona Selma. É mister pensar que o programa Bolsa Família - assim como outras fontes de subsídio, como bolsas de estudo e pesquisa ou mesmo a Previdência - faz parte do tipo de política que visa "melhorar o Brasil": o argumento "se a maioria dos beneficiários abandonasse o programa, [logo] o Brasil melhoraria muito" é falho, neste sentido, já que é justamente a inclusão dessas pessoas que faz parte do projeto de "melhora" e desenvolvimento do Estado nacional, que não deve ser entendido como uma reunião de almas, como uma pastoral que remunera individualmente os homens de boa vontade. A questão implicitamente levantada é uma outra, a de famílias que já ultrapassaram o limite de 140 reais por pessoa e continuam se apropriando de dinheiro público indevidamente. É um problema sério e legítimo, de fato, mas é difícil acreditar que o "problema do Brasil" se resuma a pessoas de baixa renda que consomem bolsas e recursos públicos "sem necessidade". E, mais insensato ainda, chamar a isso de "corrupção". O miserável que se apropria de uma política do Estado para benefício pessoal nunca pode ser equivalido a um promotor de justiça que utiliza do código penal para criminalizar um jornalista que lhe escreve denúncias verídicas, a um senador dono de terras e de gado que discursa pela aprovação de um PL que - a despeito dos danos severos ao meio ambiente e às comunidades - beneficiará os agropecuaristas ou a um professor que vota numa reunião do seu departamento para que a verba de suporte aos docentes seja direcionada a modelos de pesquisas semelhantes à que ele atualmente desenvolve. O pobre é o maldito esquecido pelos direitos constitucionais, o marginal que não foi coptado pela lógica geometrizante da modernidade e que não participa da partilha dos benefícios do Estado. Como pode o marginal corromper um sistema cujo funcionamento não lhe engrena nada? Como pode corromper uma estrutura da qual não faz parte, da qual não compõe parcela? A lógica do Estado é fazer movimentos que fortaleçam a sua própria organização, sua própria alma, uma alma que não habita o corpo do marginal. Dizer que um programa de subsídios e assistencialismo é "dar o peixe ao invés de ensinar a pescar" torna-se argumento inválido quando se percebe que o rio tem um dono. A pescaria, para quem não tem vara, não tem barco, não tem alma e tem fome de peixe, é apenas violência e exclusão. O peixe recorrente não é esmola, e sim possibilidade de participar do jogo, da "alma do negócio". Mas é ingenuidade, é quase maldade, achar que se o marginal comer o seu peixe, ganhará, de sopetão, a sua fagulha de alma (e, paralelamente, um barquinho semi-furado para minimamente se aproximar do centro do riacho e uma varinha mirrada para dali tirar o seu "sustento", já que em terra a coisa tá difícil). Peixe não é hóstia, assim como o Estado não é uma Igreja das almas. Há aqueles que se acomodam com a sua cota diária de sardinhas e nem pensam em ir pescar? Sim, há. Existem os que não mais precisam do peixe dado, mas que continuam a reclamá-lo? Com certeza. Mas o marginal que decidiu por não mais pescar não está, necessariamente, "fazendo nada" (cabem coisas por demais, nesse "nada"). E o marginal que, mesmo aprendendo a pescar, continua recebendo a sua peixada, não é um corrupto. É, antes de tudo, alguém que, com a memória dos tempos de fome e repressão ainda cravada no ventre, sabe que é estrangeiro nessa ilha de pescadores, e que nenhum sacramento pode redimir um corpo que nasceu e cresceu vazio de alma. E de peixe.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Spinoza, o economista

Proposição: Uma renda universal e incondicional como "direito" - e não como "esforço de inclusão" - a todo e qualquer indivíduo.

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Corolário 1: Segue-se, daí, que a renda básica se desvincule do emprego.

Corolário 2: Segue-se, em segundo, que o emprego (formal) se desvincule do trabalho (atividade diária que, mesmo a mais simples, participa indiretamente da economia).

Corolário 3: Segue-se também que não se trabalhará para receber dinheiro, mas, ao contrário, se trabalhará pois já se o tem.
Escólio 1: ...o que não desinstalará a opção ao emprego assalariado.
Escólio 2: ...o que não desinstalará ou substituirá subsídios específicos (como bolsas de estudo e de combate a pobreza) ou o sistema de seguros (aposentadoria, previdência etc.).

Corolário 4: Segue-se que o indivíduo, não mais determinado a trabalhar por forças alheias, torna-se livre.
Escólio: ...o que define o indivíduo não como uma substância racional ou outra generalidade abstrata, mas como uma singularidade, uma composição sem limites.

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Objeção 1: "Mas seria impossível financiar"!
Demonstração: Pegue-se, a título de exercício, a renda disponível oriunda dos impostos diretos dum Estado Nacional qualquer (após o pagamento dos benefícios sociais e afins) e divida pelo número de pessoas (aí inclusas as crianças). Para um exercício de pensamento menos radical, pode-se trabalhar no registro da "linha da pobreza", garantindo ao menos uma renda incondicional "suficiente" [noção que merece ser mais discutida] para a população. Além disso, outras fontes de recursos podem ser consideradas, como a criação de novos impostos direcionados (um aumento da taxa sobre o consumo, impostos sobre patrimônios, taxas para grandes riquezas, taxas para especulação etc.), assim como um corte específico n´alguns gastos públicos (redução no salário dos representantes, anulação de algumas das suas muitas concessões etc.).

Objeção 2: "Mas daí o assalariado bancará a vagabundagem de quem não quer trabalhar"!
Demonstração 1: Ver Corolários 1, 2 e 3.
Demonstração 2: A renda universal incentivaria e traria reconhecimento às atividades desenvolvidas fora do mercado, além de permitir que as pessoas pensem e desenvolvam projetos por si mesmas - independentes de referenciais acadêmicos e retornos mercadológicos, ambos quase indistintos - já que está suspensa a obrigação de "trabalhar para viver" (e o seu gêmeo, o "viver para trabalhar").

Objeção 3: "A renda incondicional, juntamente com os impostos e taxas que lhe sustentam, não pode ocasionar um aumento dos preços e dos produtos, tornando insuficiente essa mesma renda incondicional? E, mesmo que não ocorra um aumento dos preços, as empresas não podem compensar o aumento das taxas sobre elas com a redução do salário de seus empregados?"
Demonstração 1: Sim, isso é não só possível como esperado e mesmo desejado. No entanto e assim sendo, ocorrerá aos poucos uma passagem das relações de troca que envolvem a mediação dos indivíduos pelo Mercado (relação mediada pelo capital) por modos de se estar juntos mais informais, ou melhor, modos cujas formas se produzem na singularidade da própria relação que os constitui.
Escólio: ...o que operará a passagem duma sociedade que justifica a violência através do contrato para uma comunidade que se sustenta através dum jogo de amizade coletiva cujas regras não são dadas de antemão.
Demonstração 2: Ver Corolário 4.
Escólio: ...o que marca a diferença entre liberdade (um projeto ético sem etapas, cadeias de razões ou desenvolvimentos progressivos, que visa harmonizar os indivíduos às necessidades que lhe são próprias) e livre-iniciativa (a versão moderna e repaginada do livre-arbítrio, duma ruptura decisiva e definitiva, do repente da vontade que decide, por si mesma, passar da servidão à liberação).

Objeção 4: "A passagem de uma sociedade mediada pelo Mercado para uma comunidade que privilegia as relações singulares não desinstalaria, conjuntamente, outras instituições que compõem essa mesma sociedade, como a escola, o exército, o sistema hospitalar, as políticas de bem-estar social, e mesmo outras instituições mais sutis, como a família, a sexualidade ou a espiritualidade?"
Demonstração: Não, já que a passagem da sociedade à comunidade não equivale à passagem de um indivíduo a outro, mas de um modo de ser deste indivíduo para outro modo, a comunidade entendida como um modo de relação singular intestino à própria sociedade, e não como um alheio à sociedade. A passagem não desinstalará as instituições, mas apenas dará às mesmas, e aos indivíduos que lhe constituem, a potentia de agir, a libertas para perseverarem em seu próprio ser, e não mais se verem dominados por paixões que não lhes são próprias. Ver, mutatis mutandis, os Corolários 1, 2, 3 (com seus correspondentes Escólios) e 4 (e seu respectivo Escólio).

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Apêndice 1: Spinoza recomenda que seus possíveis interlocutores se inteirem do assunto - ou, ao menos, entrem no espírito dessa brincadeira conceitual - antes de elencar outras Objeções, que, de fato, devem existir aos montes e ser enunciadas.

Apêndice 2: Objeções de estrutura semelhante a "isso é coisa de gente feia, boba e chata" serão desconsiderados pelo Spinoza economista.

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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Platão e a tal da "Bolsa Viciado"

À título de esclarecimento, a "Bolsa Crack" e o já há muito instalado Auxílio Reclusão não são um fundo de recursos e investimentos para o drogadito/recluso, e sim para a sua família, caso o mesmo se configurasse como provedor da casa; além disso, não é todo drogadito/recluso que tem acesso a tais "bolsas" e "auxílios", mas apenas aqueles que já contribuíam com a Previdência; para mais além, o dinheiro de ambas as fontes - tanto o da "Bolsa Crack" quanto o do Auxílio Reclusão - não podem ser gastos em qualquer coisa, devendo ser contabilizados e fiscalizados pelo Estado. Ainda assim, o reacionário  ressaltará - achando que sua fala se trata de um argumento legítimo e que contribui, efetivamente, para a discussão em voga - que todos os dias acorda cedo, pega transporte público lotado, viaja até o seu local de trabalho e que, sozinho e sem bolsa ou auxílio algum do Estado, sustenta sua família com o pouco que lhe sobra após todos os descontos que este mesmo Estado faz em seu salário; caso venha a se acidentar e mesmo a falecer, discursa que sua família não vai receber nenhuma mãozinha do Governo; e, se receber, pode ser que se limite a um mísero salário mínimo. Ele, logo ele que "trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua", e estuda, e paga imposto, e leva uma vida digna e descente, ele, por que logo ele teria de ser responsabilizado (ainda mais) por atos inconsequentes alheios? "O Estado que se vire pra combater isso de maneira que não venha a onerar ainda mais o meu custo de vida", pensa o reaça. Numa virada espetacular, termina a sua narrativa em tom catastrófico e alarda a todos sobre o aumento da impunidade neste país de merda ou sobre a capacidade de aporte de recursos em decadência no INSS. Depois de apresentar seu senso-comum econômico travestido de bom-senso, esperneia para que o Brasil acorde e perceba a incoerência que é levar adiante essa "Bolsa Viciado"!

A envergadura dos seus argumentos: "eu acordo cedo..."; "eu sustento minha família..."; "eu que levo uma vida digna e decente..."; "O Estado que se vire..."; "que não venha a onerar ainda mais o meu custo de vida" e variações do mesmo tema. Não se está em discussão a pauta, creio, de quem merece o Reino dos Céus e paraísos afins. Política pública não é meritocracia e não pode ser discutida em termos individuais. O Estado, qualquer que seja ele - democracia representativa, monarquia parlamentar, comunismo de Estado etc. - não é nem deve ser o resolutor dos problemas de um e de outro indivíduo que o compõe, mas é, ele mesmo, o princípio de organização de um povo, o seu modo de se gerir e de se estar junto. A Razão de Ser do Estado é, apenas, manter o próprio Estado, e toda discussão política pós-Maquiavel é burra se ignora tal premissa. Toda política pública visa a população - seja em sua totalidade, seja em algum subconjunto específico (uma população ribeirinha, a população indígena, a população de estudantes de colégios públicos etc.). A população componente do Estado, no entanto, não é nem pode ser entendida por esse mesmo Estado como uma reunião de indivíduos que merecem benefícios porque são boas pessoas, mas é entendida como ordem, como princípio de manutenção e de organização do corpo e da vida que esse corpo carrega. Argumentos de cunho pessoal são apenas opinião e devem ser postos longe de uma política democrática, do demos, o que já é sabido desde Platão (que leva esse pensamento ao limite e faz equivaler demos e doxa, desistindo de vez de sustentar a democracia em Atenas, corroída de blá-blá-blás e partidarismos). Se se milita a favor do aborto, por exemplo, não é porque se acha o aborto uma coisa legal, uma coisa boa, do "bem", mas sim porque o aborto tornou-se um problema - não de um e de outro, nem de muitos, mas um problema público - um problema que está afetando a manutenção desse princípio de organização a que chamamos de Estado, e regulá-lo torna-se uma necessidade para que se possa manter a porra toda funcionando, mesmo com as objeções dos templários da família, dos paladinos da tradição e dos defensores da civilidade (que diferem daqueles que, de fato, argumentam sobre os possíveis malefícios da legitimação do aborto no cenário brasileiro). Idem para a "Bolsa Viciado". Contra o aforismo de que o brasileiro apoiador dos auxílios de Estado precisa "se ligar" ou que ele terá de "arcar com mais esta conta", é-se facilmente colocado que já estamos a pagar o preço de investirmos numa vida individualista e meritocrática. Ou se acha, de fato, de verdade, que o problema do crime, da drogadição e da miséria em geral são devidos tão somente ao mau-caratismo de sujeitos individuais?

O reacionário percebe a envergadura do seu braço, perna, do seu corpo e da sua mente, e o estado de esgotamento que fica ao final do dia, e percebe, paralelamente, que mais da metade do que seu trabalho produz é tomado pelo Estado com a suposta intenção de devolver o tomado em serviços que ele não vê. "Ora", objeta, "se eu não tenho um Estado também por mim então que se foda o Estado"! Um grito potente de anarquia, que seria minimamente efetivo se o próprio levasse sua dor à sério, ao extremo; o reacionário encara os discursos que lhe são contrários (mas que intentam lhe acudir) como conversinha barata de quem não labuta, de quem só estuda, de professorzinho que vive de suas abstrações, de intelectualzinho que vive de sua bolsa, simples papinho teórico e academicista que, embora bonitinho, é irrelevante do ponto de vista pratico, visto que não vivemos numa sociedade de direitos mas numa sociedade de obrigações e injustiças, o reacionário não achando certo que o homem-de-bem pague as despesas da vagabundagem. "Preso e drogado", continua, "tem que se foder e trabalhar e se tratar pra se sustentar e assumir as bostas que fazem; ao Estado, cabe combater o tráfico e o crime arduamente e com rigor, e fornecer condições para o 'tratamento' dessas pessoas, e não ficar dando calabocas e alentos com dinheiro público". Quem achar ruim o que ele diz que banque sozinho do próprio bolso os "coitadinhos dos presos e drogaditos".

Responder com cuidado e respeito acerca do que objeta um reacionário é uma ação sem garantias de retorno, já que o mesmo não argumenta em cima do que se fala, já que o mesmo não é justo com o interlocutor e martela infinitamente nas mesmas teclas, as do esforço individual e do méritoe ignora os argumentos que o seu adversário elenca com simples desprezo, com o clássico "nada a ver isso aí que você falou". Ignora se, de fato, o que lhe foi enunciado procede, ao menos minimamente, já que seu inimigo de ideias está operando noutro registro que não o do eu, está instalado num outro Estado que não o da punição e o da vigilância, e tenta, no mais das vezes, desarticular o discurso inimigo não incidindo sobre os argumentos que o sustentam, mas atacando o sujeito do seu enunciado (ou seja, o seu outro, o seu inimigo). O diálogo só tem início quando as partes da dialogia sabem que não dá para confundir discussão de foro público com muro das lamentações, e que não ganha aquele que mais merece, que mais sua, que mais batalha, mas, numa discussão, sai vitorioso o argumento que mais faça sentido - e isto na prática, e não só na retórica academicista - e pelo qual todos saem ganhando.

O outro sofisma reacionário típico, o de qualificar o discurso do seu outro como "papinho teórico e academicista" e opô-lo à vida de verdade, à vida da prática, como se o que se diz - e o que se luta, nos espaços que convém lutar por isso - não quisesse ou intentasse, isso sim, ser prático, ser um modelo para a prática, e não só uma conversinha de Facebook. A crise da democracia na Atenas de Platão tem como adversários o demos (imerso em doxa), os jogos políticos secretos dos partidos e confrarias esotéricas (daí a verdade democrática ser uma alethéia, uma não-ocultação) e, principalmente, a retórica (o sofista como aquele que percebe que a verdade pode ser substituída por uma performance, capaz de articular tanto o demos na praça quanto os aristoi e oligoi nos espaços públicos de tomada de decisão); o reaça, acuado em seu excesso de ego, de "argumentos" aritméticos que apelam para a dor e o prazer pessoais, faz uma inversão no esquema platônico e acusa o seu interlocutor de retórico, de abstrato, de acadêmico, sendo ele, agora, na encarnação atualizada do demos ateniense, o defensor da verdade e do discurso filosóficos através duma série de performances que privilegiam os oligoi e os aristoi de hoje (barões da mídia, banqueiros, empresários, especuladores financeiros, membros do judiciário). Se cito Platão mais uma vez, friso que não é por pedantismo ou por usar de argumento de autoridade para sustentar um discurso, mas para mostrar que esta mesmíssima conversa entre o político defensor da politéia e o retor liberal partidário da vitória do mais forte, em sua estrutura, já aconteceu a quase dois mil e quinhentos anos atrás, e atravessa toda a dialogia que funda o platonismo.

O ponto pelo qual a conversa deveria se dar é um outro, esse sim o verdadeiro problema que aparece nas orações do reacionário, que é a descrença em relação à sociedade de direitos (a que chama de "sociedade de obrigações e injustiças"), descrença em relação ao Estado, à política formal, aos nossos representantes etc. Também partilho dessa descrença com o reacionário. Mas não creio que jogar nos termos dessa injustiça - "tá tudo corrompido, então que se dane quem já está se fodendo nessa história toda" - seja o melhor estratagema. Seria como jogar gasolina para apagar um incêndio ou, numa metáfora ainda melhor, tomar analgésicos para curar uma dor de cabeça causada por um tumor cerebral. Também acho o nosso Estado corrupto - nosso Estado, em verdade, é um Estado ainda embrionário; nunca tivemos um Estado forte e disciplinador como o da França ou o da Alemanha, por exemplo. Mas aboli-lo seria acabar de vez com as políticas de bem-estar social que ainda funcionam e ficar à mercê de outra força que, essa sim, é ainda mais danosa: o Mercado. O que o senso-comum da política propõe, implicitamente, é algo que, em Economia, se chama anarco-liberalismo ou anarco-capitalismo, um sistema de trabalho sem um Estado para regulá-lo (ou sem um Estado para "atrapalhar tudo", nos termos do próprio). Se a proposta do reacionário não se tratar disto, de uma suspensão dos Estados nacionais, a única alternativa lógica seria a de melhor regular o próprio Estado, torná-lo menos corruptor e coptador, mais funcional, mais pragmático, regular o próprio atrator das regulações, discutir os próprios termos nos quais a discussão se apresenta. E percebamos, aí, que a história e o problema mudam completamente de tom, e isto dentro do próprio problema colocado pela esteira reaça.

Entretanto e de fato, não estamos num Estado forte e bem-estruturado; pedir que o sistema de direitos funcione como uma meritocracia seria o mesmo que lançar todos os constituintes para o fogo do Mercado, no qual a exploração (ou, como dito, "a sociedade de obrigações e injustiças") seria ainda mais brutal, descarada e justificada. Não mais a gasolina no fogo, mas o próprio corpo servindo de combustível a essa máquina - não mais pública - que nos consome. É sempre bom atentar que tudo que é identificado pelo reacionário como dano advindo do Estado só o é devido às suas filiações com o Mercado (o Estado como um braço do Mercado Mundial). "Acabar com o Estado" só faria sentido se se acabasse, antes, essa lógica mercadológica que, ela sim, nos esgota e nos oprime. Desinstalar o Estado sem desinstalar o capital seria pular da frigideira para o fogo. Em verdade, na melhor das hipóteses o reacionário confunde "combater o Estado" com "mudar as suas leis", entendendo esse combate como uma reforma política, uma reforma do Estado. O discurso político-econômico do senso-comum ora desliza para uma regulação extrema do Estado sobre a sociedade civil (ditadura de Estado) ora desliza para uma suspensão do Estado, que "só atrapalha" o ímpeto meritocrático da Vida Liberal (anarco-capitalismo). Desinstalar o Estado, todavia, equivale muito mais a demolir a casa que a reformá-la, consistindo na discussão dos termos da política em sua positividade, e não no simples policiamento das velhas questões instituídas de sempre: "como relacionar um Estado de Direitos com um Mercado Liberal?" "como pode a Sociedade Civil ser representada pelo Estado?" "como pode a Lei prever e controlar as relações e os litígios entre os homens?". Ao invés de responder tais questões, ou mesmo reformá-las, deve-se deixá-las de lado e construir conceitos que apreendam os problemas da política em seu cerne; antes de tentar superar Platão e o Estado, é mister perceber que nunca fomos platônicos, que em momento algum já operamos um Estado democrático e que, parafraseando um famoso livro, "jamais fomos modernos", já que a condição da democracia é o governo do demos pelo demos, e formalização estatal alguma pode acompanhar as deambulâncias da feira cínica e da praça socrática, a democracia enquanto anarquia. Superar o Estado só faz sentido se expurgarmos todas as suas noções correlatas: sociedade, representatividade, trabalho, parlamento, movimentos sociais, previdência, código penal. A anarquia, quando deixa de ser analisada como o negativo do Estado, não é mais confundida com o caos, o nada e a barbárie, e passa a ser a condição para que a política efetivamente falando possa se desenrolar, a política agora entendida como a luta pelos termos da própria política e a discussão sobre os termos da própria discussão, seja tal política intestina a um Estado de Direitos ou não.