domingo, 3 de fevereiro de 2013

Mudar o mundo, compreender o mundo

"É impossível entender o presente social se não tentarmos mudá-lo", disse o pensador Jacob L. Moreno numa crítica ao que ele chamava de filósofos espectadores, dando atenção especial a Henri Bergson e Charles S. Peirce. Estes reconheceram a realidade do tempo em seus respectivos sistemas, fala ainda Moreno, mas não deixaram espaço para o que chama de momento, a posição ímpar dum universo que flui, o aqui-agora ou, psicologicamente falando, a espontaneidade. Numa reação violenta, reflexa e inicial, qualquer leitor desses dois afirmaria que Moreno, ao enunciar o dito e a associá-lo a um filósofo como Bergson e um semiólogo como Peirce, assume nunca ter lido um linha sequer de ambos: Bergson é o filósofo do tempo inventivo, o pensador que diz que tudo - o sujeito, o pensamento, as coisas, o mundo enfim - é histórico e se cria indefinidamente, fundando assim a noção de um tempo inventivo, criador e revolucionário, ao invés dum tempo cronológico, circular e que só serve aos desígnios da manutenção da sociedade; Peirce cria um sistema de classificação dos signos que não cai nos abstracionismos anacrônicos de um Saussure, mas - com as noções de segundidade e terceiridade - afirma que o valor dum signo, duma imagem, é decorrente da sua relação - não só estrutural, mas sempre contingente e igualmente histórica - com outros signos e imagens (usando de F. Saussure também poderíamos chegar a semelhantes conclusões, mas Peirce foca suas análises mais na "produção de sentido" que nas estruturas do mesmo).

Moreno referenciou esses dois grandes autores, provavelmente, por cutucada acadêmica. O cara, sabem os psicólogos, gostava duma "drama". De qualquer maneira, sua sentença é pontuadíssima e aponta para uma determinada prática de pensamento que, no mais das vezes, se resume a compreender adequadamente as coisas, mas não agir sobre elas. Nisto, o messiânico pensador merece palmas, mas não muitas. Essa distinção é muito boa, a colocada entre um pensamento-que-vê (o observador) e um pensamento-que-intervém (o ator). E se Moreno, genialmente, atesta para a diferença entre ambos (o pensamento arrogante e abstrato sobre o mundo, em oposição ao pensamento inserido no mundo), visando aí criar um espaço para a noção de espontaneidade, um pensador como Bergson se atém para os perigos desta mesma distinção.

Dizer que há duas modalidades de pensamento - um pensamento que é pura baboseira metafísica e um outro pensamento que é mais atrelado às coisas concretas - é a sina do positivismo, lembremos. Se em Bergson o pensamento parece não intervir no real, é porque a busca por um pensamento que vise intervir diretamente no mundo é conservadora, é uma busca pela ação imediata, pela resolução ligeira dos problemas, pela adaptação, pelo encaixe, pelo funcionamento das coisas do mundo como elas são, tais e quais. Se não há um "momento criador" privilegiado em Bergson (critica a ele que também é feita por outros pensadores, como Heidegger e Bachelard, inclusive) é porque esse "momento", em geral, é a "resposta inovadora" de um sujeito psicológico pronto e terminado a um mundo igualmente pronto e terminado. Um interacionismo, pois. É, no máximo, a "face visível" da criação. Uma intervenção criadora, neste sentido, não pode ser uma resposta, um ato de um sujeito pronto frente a outras realidades prontas - outro sujeito, um grupo, um objeto, a sociedade, todos entendidos como coisas -, mas a percepção das nuances e nuagens que criam todos esses "indivíduos" e a sua problematização, que não se resume a uma questão - problematizar não é colocar uma questão, não é partilhar uma montagem no Facebook - mas a inserir-se nesta "tendência" das coisas e, nelas inseridos, agir (e não re-agir, agir de antemão, agir seguindo um script, ainda que o papel que nos caiba neste script seja o de revolucionários).

Michel Foucault, através dum uso muito particular e peculiar da noção grega de parresía, repensa a relação entre verdade, política e sujeito, colocando o problema do discurso verdadeiro não nas famigeradas condições de possibilidade da veridicção (“em que circunstâncias posso, eu, enunciar um discurso que seja verdadeiro, e não falso?”), mas na questão do real da filosofia, da sua realidade (“em que circunstâncias se pode enunciar um discurso, seja ele verdadeiro ou falso, que intervenha diretamente no contexto ao qual se refere?”). O pensamento visa dizer do real, dizer algo, sim, mas também ser realidade e engrená-la. Pode-se fazê-lo de maneira performática, prevista e articulada de antemão (o juiz que abre a sessão, o padre que reza a missa, o pedido formal de desculpas), mas é imperativo que não se confunda isto com parresía; esta, para além de visar interferir num contexto estabelecido (parresía platônica), demanda do sujeito que a enuncia certa vinculação com o dito (parresía estoica) e, de alguma maneira, põe em xeque o modo de organização e funcionamento do Príncipe e da corte à qual se refere e para quem se dirige, abrindo um risco indeterminado para-quem-fala e para-quem-escuta (parresía cínica, estoica e platônica). A parresía, grosso modo, é um discurso de verdade contra o poder, mas um discurso emitido fora do mesmo, fora de qualquer posição formalizada pela estrutura de poder.

Ora, neste sentido até mesmo o bergsonismo não parece dar conta de sustentar uma política de esquerda, embora seja o pensamento de esquerda em seu radicalismo. Coloquemos - a título de exemplo - o Occupy Wall Street dum lado (o canhoto) e o Tea Party doutro (o destro). Ambos se assumem como um grupo de ideias, sem líderes, e desvinculados da política formal do Estado. O ultra-conservador Tea Party conseguiu, através de suas mobilizações, tornar o Partido Republicano majoritário na Câmara e impulsionar um de seus membros (Paul Ryan) à candidatura para a vice-presidência, dentre outros exemplos. Já o OWS, para além de armar barracas no parque Zuccotti e escrever manifestos professorais e nem um pouco populares, o que fez, o que articulou? Nada, já que seus manifestantes - essa tal Geração Facebook que investe num libertarismo preguiçoso cada vez mais contagiante - confundiram a luta (a causa, a problemática, a guerra) com a barricada (a performance, a retórica, a "curtida"). O pior é que o manifesto do "Ocupar", além de lindo, é coerente: de fato, formalizar a política da esquerda é endireitar-se, é tornar-se direita, é transformar esse "tempo criador" em "espaço"; de fato, devem-se fazer greves que não reivindiquem nada, porque "reinvindicar" seria reconhecer a legitimidade deste Estado [de coisas] para quem se reclama. Um bergsonismo latente. Mas, sem um espaço, como pode esse tempo frutificar? A esquerda está destinada a essa aporia? Onde estão as tais intercessões de que a esquerda precisa!? 

De qualquer maneira, é necessário não se confundir críticas a algo com ódio ou discordância a algo. Se o texto critica ou parece criticar o Occupy ou o psicodrama é, justamente, por filiação aos mesmos, por amor a eles e ao que eles representam. Estudar a vida, vale sempre lembrar, não é odiar a mesma. Ademais, Moreno estava certíssimo em opor estes "pensamentos", mas creio que ele não foi muito adequado quando opôs esse pensamento "abstrato e acadêmico" à "ação". Este dualismo é positivista, é materialista, ainda que deles tente fugir. O psicodrama e Moreno, assim, tentam correm para longe do positivismo, mas usando as estradas e percorrendo as curvas pavimentadas por ele. É neste sentido que a noção de espontaneidade, psicologizada, ainda que vise abater as "conservas culturais", é uma "resposta" ao mundo, resposta de um sujeito-coisa a um mundo-coisa. Bergson, aí, acertou. Se há uma espontaneidade, ela não é do sujeito, mas do próprio mundo em seu desenrolar criador, e só cabe ao sujeito "problematizá-la", inserir-se e nela durar, maturar. Todo o resto, toda a ação, ainda que vise a mudança, é igualmente conserva, repetição e reação. Entretanto, se o tempo puro e espiritual é vida e o espaço formal e material é, já, a sua morte, não seria, então, através desse ato sacrificial, dessa morte de si e do tempo que pode o espírito encarnar, durar, revolucionar, agir enfim, mas agir fora do esquema a que se pretende mudar? Nem Moreno (espontaneidade de um sujeito criador frente a um mundo conservador) nem Bergson (inserção do sujeito na duração constituinte dele e do mundo, banhando de tempo os espaços do mundo). O anatomista e fisiologista Bichat parece ter sido o que melhor encaminhou a questão (um vitalismo mortalista). A literatura, ao que parece, já resolveu a problemática. Mas e os sujeitos? E o mundo!?