quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Fofoca e pensamento

Há um ou dois meses, o músico Lobão foi tomado pra Cristo (ou pra Belzebu), tomado como a encarnação da extrema direita, rancorosa, velha, ressentida, amarga, desgostosa com o que há etc., e exorcizado por isso; agora, é Dinho Ouro Preto, o seu demônio especular, que, cara, encarna a esquerda-que-tudo-problematiza, que, cara, critica a política parlamentar, que, cara, pede pra gente votar melhor e, cara, nos joga isso em nossa própria cara, cara.

Exponho: pensar um estado laico não envolve, simplesmente, a exclusão do religioso no âmbito da política, mas, isto sim, a exclusão de todo pensamento binarista que pense os problemas da política em termos de "lados" e de "sujeitos".

Se "Lobão" merece críticas é por encarnar um determinado "modo" de agenciar a política (direita rançosa); se "Dinho, o cara" merece críticas é por encarnar um "modo" de agenciar a política (esquerda lalante) igualmente (ou diferentemente) danoso ao pensamento e à política. É mister esquecer os sujeitos e focar os modos e suas consequências. Discutir em termos de "indivíduo" não é pensar a política, mas "fofocar"; fofoca com um mínimo de nível, verdade, mas ainda assim fofoca. É o registro do "viu que fulano fez isso e falou aquilo?"; se a abordagem do problema se resumir a Dinho", "Lobão" ou a qualquer outro Zé, se o pensamento encará-los tão só como "pessoas", a coisa não anda. 

Nada, nada mesmo, contra a fofoca; mas que ela não passe como "análise política" ou "exercício de pensamento", que ela não se passe por ouro sendo apenas metal comum.



domingo, 15 de setembro de 2013

Embargo Infringente, o bug democrático da vez

A Lei 8.038, de 1990, normatiza os procedimentos do STF e do STJ, e é lá que consta esse lance de "embargos infringentes"; grosso modo: uma decisão do plenário do STF/STJ que não seja unânime pode ser revogada pelo Congresso. 

É um meio de as decisões do Supremo não excluírem a possibilidade de recurso dos réus (o EI não existe noutros Tribunais pois estes tem suas próprias maneiras de o réu recorrer, inclusive recorrer a Tribunais superiores, inclusive recorrer ao STF). Em 98, FHC tentou adicionar um novo artigo à lei pra excluir o EI contra as decisões do STF (apoiado pelo atual Ministro Gilmar Mendes, vale lembrar), mas não conseguiu levar isso adiante.

O bug: é o embargo ele mesmo que impede uma "ditadura do Judiciário", que impede que as decisões do Supremo tenham caráter irrevogável; mas é este mesmo embargo que - tomando um caso concreto e atual - pode tornar inválido o julgamento do Mensalão. Noutros termos, o EI é tanto uma "falha do sistema" que inviabilizaria certas investidas do Judiciário (argumento usado por alguns ministros contra o uso do EI no caso do Mensalão) quanto o fundamento do próprio Estado Democrático, visto ceder o direito de recurso aos réus (independente do crime em questão). 

Uns diriam que o Estado de Direitos precisa desses bugs ("antes um sistema penal contraditório que uma monarquia absolutista, soberana e arbitrária", argumentam); outros, diriam que todo sistema encerra em si mesmo "os germes de sua própria destruição". Para além da lógica ou da dialética materialista, convém pensar a questão em termos menos formais. Uma via de análise mais humilde, que não vise resolver a questão de maneira imediata, num único movimento de mão, colocaria apenas que o EI é só um exemplo de como a modernidade produz e engendra paradoxos. 

Mundo de representações formais e de espaços que pretendem legitimar e segmentarizar cada aspecto da vida humana, a modernidade é muito menos um espelho do real que um caleidoscópio de pedaços infinitos, de pedaços incomunicáveis. Ao pretender-se pura, denuncia a impossibilidade de seu projeto produzindo, ela mesma, esses monstros híbridos, esses mistos problemáticos e irresolvíveis.

O paradoxo, antes de um erro lógico, de uma contradição de termos, antes mesmo de uma fagulha de mudança, é o signo da vida moderna. Uma semiótica do contemporâneo deve levar em conta, antes de qualquer outra coisa, o aspecto paradoxal das engrenagens modernas.

O sistema jurídico produz as suas quimeras. A ciência produz as suas quimeras. O trabalho assalariado produz as suas quimeras. A religião produz as suas quimeras etc. Cada um desses, e além, produzem quimeras e são, eles mesmos, monstros inabaláveis, visto não serem questões efetivas, mas miragens, entraves, bugs. A questão é muito menos "matar o dragão" que "pilhar o seu tesouro"; e é muito menos "pilhar o seu tesouro" que aprender a viver, a investir numa existência para além de qualquer dragão e de qualquer promessa de tesouro que a sua derrota (ou filiação) poderia nos legar.

A modernidade é, a priori, uma não-modernidade.



segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guerras frias

G. Orwell dispõe a sua análise em tom profético, mas sua análise vai mui além do simples prenúncio de uma "sociedade da vigilância" porvindoura: se a teletela olha e zela, não é para, simplesmente, vigiar; a vigilância ensina a autodisciplina, que se torna aprendizado, que só torna hábito, que se torna instinto, entranhas, intestinos; o controle do passado não é simplesmente o controle dos registros documentais, mas a destruição da memória, deixada ao léu para usufruto da primeira fileira do Partido. Se o passado mora nos documentos e na memória, basta controlar os registros documentais e abolir o exercício da memória. Tudo, assim, estará consumado. Essa disciplina produz um sujeito psicológico, interiorizado, mas um sujeito sem memória, um sujeito cuja memória é, agora, apenas o receptáculo de lembranças vazias, meros dados informativos que ajudam esse sujeito a responder às demandas do Grande Irmão e do alto escalão do "Socing", sem pestanejar, ou nem mesmo refletir sobre o que faz.

Ora, esse problema da diferença formal na política e do papel do povo na sua relação com os demagogos e os dirigentes da cidade é, justamente, o motor de boa parte da literatura grega do século V-IV a.C., em especial da filosofia platônica, uma filosofia tópica que resolve à sua maneira a questão do demos expurgando o próprio demos da política, e criando uma república que se define, justamente, por ser a negação da democracia e a harmonia entre as novas classes, agora legitimadas em zonas da verdade e da alma que a carrega (o filósofo gestor, o policial e o trabalhador); a Utopia de Thomas More vai na mesma esteira mas, ao colocar que a sociedade perfeita já existe numa ilha longínqua, coloca também indiretamente que a sua realização não depende do futuro, de um "desenvolvimento histórico" ou do passar do tempo, mas de um "distanciamento no espaço", um distanciamento das formas (visto que as condições para a sua efetivação já existem, sempre existiram); Orwell empreende um esforço atópico e anti-utópico (distópico) e cria um cenário pós-industrial no qual a fome, a guerra, o sofrimento físico e a exploração social não fazem mais sentido, não precisam mais existir, mas existem. Por que? Pois o poder do soberano foi substituído por um poder difuso, um poder que não tem lugar e cabeça privilegiadas, um poder sem poderoso (as figuras do poder estão ali, principalmente, para nos desviar o olhar das malhas e circuitos do poder). Como manter a desigualdade formal entre os homens? Está aí o porquê da guerra moderna: queimar o excedente de produção e direcionar o trabalho numa sociedade que, em tese, já deixou de colocar como necessária a diferença formal entre as pessoas (e a exploração material, mental e espiritual dela decorrente). 

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Se colocamos Obama como um novo G. W. Bush, e se equivalemos a invasão da Síria com a guerra no Iraque, ainda não nos instalamos no núcleo duro da coisa: a guerra no Iraque era uma guerra pelo petróleo e pelo financiamento da indústria bélica (que, num círculo nada virtuoso, sempre financiou as campanhas dos Bush); a invasão da Síria, apesar de igualmente descabida, é diferentemente problemática, já que mobiliza questões mais sutis. A invasão do Iraque é mais facilmente atribuída aos governantes, aos sujeitos no poder (o poder entendido como exercício de um indivíduo soberano); a invasão à Síria, porém, é a denúncia de um sistema de governo que se governa independente das propostas e posturas políticas de quem ocupa os cargos de gestão. O escândalo do NSA está aí para reforçar essa hipótese. A manutenção de Guantanamo idem. O que estamos reaprendendo com a tal da invasão à Síria pela OTAN? Aprendemos que um Nobel da Paz pode promover uma guerra; que, com um e outro rearranjo geopolítico, e com uma e outra mudança de pauta midiática, o sujeito que ontem era "presidente" hoje é "ditador"; que uma invasão pode ser chamada de "humanitária", no caso do invadido ser um alvo frágil (ainda que Rússia, China e Irã se manifestem contra a invasão) e no caso da invasão ela mesma ser apoiada por uma causa frágil (o tal do "syrians killed syrians; so now we must kill syrians to stop syrians from killing syrians"); que os fiscais da ONU encontrarem (opção 1) ou não (opção 2) algum indício que corrobore a hipótese que sustente a invasão (uso de gás, ou não) não é uma variável levada em consideração pelos dirigentes; que - esta é boa - qualquer país médio-oriental, africano ou latino-americano, a despeito de sempre ser uma colcha pluralíssima de retalhos culturais, linguísticos e religiosos, são sempre pensados como um território coeso, coerente e unificado; mais além, cada um desses (os médio-orientais, os africanos, os latinos) são sempre pensados como "uma coisa só", como "farinha do mesmo saco"; mas, principalmente, aprendemos que a Guerra Fria perdeu suas maiúsculas e pluralizou ("guerras frias"), tornando-se a norma da guerra, revelando que a natureza e o objetivo da guerra moderna é menos uma luta por pautas concretas que uma performance para evidenciar territórios (não mais restritos ao espaço) e reforçar alianças, num esforço de manutenção das forças políticas em seu estado atual por toda a extensão do espaço e do tempo. Um império sem fim.

Orwell estava certo.

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sábado, 7 de setembro de 2013

A textura do ser II

Uma nota de esclarecimento acerca do texto anterior.

Já é lugar comum, para mim, equivaler vida e movimento. Pensar a mudança de temperatura como uma passagem do calor ao frio, ou a mudança política como a passagem duma ditadura militar a uma república democrática, em exemplo, ou uma mudança de personalidade do sujeito como a passagem dum estado de timidez ao estado de extroversão, como se a mudança equivalesse a uma sucessão de estados, de blocos, de imobilidades que permanecem idênticas a si mesmas durante todo o tempo em que duram, pensar a mudança nestes termos é ignorar que a vida - repito até a exaustão - não muda, não se move, mas é, ela mesma, mudança e movimento. O post anterior consiste essencialmente nisto: a denúncia do pensamento que é simples "cinema da consciência", simples sucessão de imóveis, e a sua substituição por um pensamento que é a tensão dos/nos espaços já dados. Uma vida que é ela mesma movimento demanda não "escolhas", mas "balizamento de tensões"; a política, por exemplo, não se resumiria à escolha nem da direita nem duma esquerda (ambos espaços constituídos, ambos tecnologias políticas já engendradas), mas a uma estratégia de movimento que se constitui através desses espaços, uma estratégia que assume - para além do verdadeiro e do falso desses espaços - o real de ambos, atravessando ambos, mobilizando ambos e traindo a estrutura programática de ambos. Essa lida com o pensamento e com as coisas pode dar a entender que todas as dualidades com que lidamos podem ser "tensionadas", como se uma fosse o oposto especular da outra; tensionar o dualismo Deus-Homem é uma coisa, muito semelhante ao dualismo Sujeito-Objeto, já que os pólos desses dualismos são um a sombra do outro. Mas existem dualismos que não operam este jogo do ser com o não-ser, dualismos que não são opostos especulares, mas falsos dualismos. Usar desta estratégia de pensamento para "ficar em cima do muro" e não escolher "nem esquerda nem direita", argumentando "neutralidade", é a coisa mais nefasta que se poderia realizar com a política (e com o pensamento), é esquecer que o grito de "sem partido", a despeito de ser uma crítica para mim muito cara à noção de representação, é o grito do ditador militar, do abolidor do posicionamento político, do Grande Irmão efetivado, de Pilatos (o que "lava as mãos"). Tensionar dualidades e recolocar problemas só funciona com opostos especulares, friso. O pensamento esquerda-direita só merece ser tensionado quando por esquerda e por direita entendemos agendas políticas que são apenas os pólos de um mesmo espectro político. Se por "esquerda" entendermos, ao invés, uma postura política que vise abolir as diferenças de classe (burguês-proletário, plutonomia-precariado) e a exploração social decorrentes delas - e isto independente de filiação partidária, cargos ocupados, funções exercidas etc. - então "esquerda" não é mais o não-ser da direita, mas a própria subversão deste esquema (e dos dualismos que ele coloca, incluindo a esquerda burocratizada). A luta por espaço e pelos direitos homoafetivos e a homofobia também são um falso dualismo ser/não-ser, já que um consiste na luta contra a heteronormatividade e as violências física e simbólica decorrentes desta, e o outro é uma força reacionária de abuso e de violência. O mesmo se dá com os esforços de promoção de culturas locais e o preconceito regional, a promoção de cultura étnica e o racismo (a "neutralidade", aqui, é a cultura de todos = cultura sem cor = cultura "branca"). Idem para o feminismo (movimento social para o reconhecimento de direitos e capacidades do feminino) e o machismo (violência socialmente aceita contra a mulher). Abster-se de cair nos erros do pensamento não deve suspender nossa tomada de posições e ação; abster-se de "escolher" não equivale - talvez só de longe - à suspensão da responsabilidade e de suas tensões.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A textura do ser

A escrita é uma tentativa do espírito em dar substância a si mesmo. 

Esta demanda espiritual, no entanto, aparece quase sempre atrelada a uma encomenda institucional - à título de exemplo, a escrita acadêmica.

O escritório academicista é um diário de bordo, no que toca à sua tentativa de acompanhar e apontar para o desenrolar do pensamento, e isto tanto nas ciências mais duras quanto nas humanidades, e em ambas tal pensamento sempre vem codificado numa linguagem específica, usa de tais ou quais termos, filia-se a referenciais, padroniza procedimentos metodológicos, cria protocolos de editoração.

O escritor, porém, aquele mesmo que tenta verter seu espírito em textura, em texto, sabe que há uma incompatibilidade radical, fundamental, entre o que escreve e a realidade espiritual que lhe atravessa, um abismo ainda mais colossal que entre o representante e o representado, a pintura e o modelo, o sujeito e o objeto, o Estado de Direitos e a Sociedade Civil, a Universidade e a comunidade, a ciência e a profissão, a natureza e a cultura, o público e o privado, ou qualquer outro binarismo que coloque, automaticamente, o problema de como os dois pólos podem, da maneira mais adequada possível, se mediar; tais problemas produzem soluções diversas: o racionalista é aquele resolve o problema sujeito-objeto colocando a mente como uma substância pensante que representa a realidade; o neoliberal é aquele que postula que o Estado deve intervir o mínimo possível (como um mal necessário) nas relações econômicas dos indivíduos que compõem a sociedade; o impressionista é aquele que primeiro desiste de tentar pintar a realidade tal qual uma fotografia. Qual seja, o dito de que "o pensamento não cabe na escrita" é ainda insuficiente diante desse abismo, dessa diferença de natureza entre o ser e o não-ser, e ignora que as discussões possíveis entre um e outro destes dualismos pendulares jogam com o ontos e o seu contrário radical. A escrita do pensamento, escrita-pensamento, escrita-textura, não pode ser a representação do pensamento, do espírito, não pode querer sanar este problema que nunca foi posto pelo espírito. Saber se é Deus que se revela, gratuitamente, ao homem (Agostinho), ou se é o homem que se santifica, asceticamente, para Deus (Pelágio) é querela inútil: Deus é o não-homem, Homem é o não-Deus, e se ambos os termos são postos é para, justamente, nunca se encontrarem. Os dualismos acima citados também merecem ser recolocados.

Pensar os problemas em termos representacionais, em termos de "relações possíveis", é jogar ao mesmo tempo com termos e com a negação destes termos. Aprendemos com Sócrates a necessidade do questionamento para o exercício de uma vida digna de ser vivida, escutamos de Platão o quanto era importante fundar e indexar o discurso político ao discurso verdadeiro, vimos com Aristóteles a ética, a política e o conhecimento sendo colocados em lógica formal, mas em geral jogamos no fosso do esquecimento pré-socrático as mais antigas e preciosas lições de Parmênides, a da identidade do ser consigo mesmo. Dizer que "o que é, é" e que "o que não é, não é" nos parece, hoje, muito óbvio, mas é com esta sentença que o eleata estabelece que o ser é tudo aquilo que pode ser pensado - logo, é pensamento; e que o pensamento se articula via linguagem - logo, é palavra: a identidade do ser consigo mesmo, com o pensamento e com a linguagem é o logos, este entendido como a relação circular (a forma grega da perfeição) entre ser, pensar e dizer. Dizer o pensamento do Ser, ou dizer o pensamento, ou simplesmente dizer, ou pensar, ou ser - a parte final da grande maestria de Parmênides - exclui radicalmente o não-ser, aquilo que, por definição, não pode ser pensado. Platão, em seu Sofista, resolve o problema do não-ser entendendo-o como diferença (o não-ser não equivaleria ao nada, à ausência de pensamento, mas apenas ao que não é um algo específico; o não-vermelho não é o nada, mas é o laranja, o amarelo, o verde, o azul); mas, ao aprimorar o grau de precisão lógica da discussão num nível que Parmênides não foi capaz, Platão transforma um problema ontológico, um problema sobre o ser das coisas, sobre a ecceidade das coisas, numa discussão metodológica, numa determinação dos gêneros do ser, numa delimitação das coisas; mais além, esse deslocamento platônico faz a ontologia equivaler, na sua filosofia, a uma metafísica do eidos, da idea, que, ao invés de pensar "o que faz da coisa uma coisa ao invés de uma não-coisa", serve apenas como pano-de-fundo que justifica os seus próprios conceitos e transforma a questão sobre o ser em teoria do conhecimento, a ontologia em epistemologia ("o que faz da coisa uma coisa ao invés de outra coisa?").

Vislumbramos, aí, que quanto menos nos preocupamos com o ser, com aquilo que substancializa as coisas, melhor lidamos com as coisas; fazendo a reversal, no entanto, quanto mais nos preocupamos em manusear as coisas, menos sabemos onde estamos nos metendo, que tipo de jogos estamos a operar, que programas estamos materializando.

O Homem é o não-ser de Deus (e vice-versa), o objeto é o não-ser do sujeito (e vice-versa), a Sociedade Civil é o não-ser do Estado de Direitos (e vice-versa), cada uma dessas dualidades sendo o fenômeno duma multiplicidade, duma contextura. Deus-Homem é Igreja, sacrifício, sacramentos, sacerdócio, pecado, comunidade, inferno; Sujeito-Objeto é ciência, metodologia, procedimento de pesquisa, matematização do real, academias, laboratórios; Sociedade-Estado é parlamento, eleição, sindicato, prefeito, código jurídico, instituições normativas. Tomá-los ambos por realidades óbvias e tentar pensar a mediação de um para com o outro é, no limite, colocar num mesmo plano o pensamento com o não-pensamento, o dizer com o não-dizer, é não pensar coisa alguma, é não dizer coisa com coisa (e sim coisa com não-coisa).

O que o projeto fenomenológico nos traz mais de dois milênios depois é, genialmente, a suspensão da questão sobre a ponte absolutamente segura entre os pólos sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras), entendidos como constitutivos um do outro (a consciência se volta para o objeto, e o objeto se dá para uma consciência); a primazia não é de A ou de B (o não-A), mas da relação ela mesma. O vitalismo bergsonista atesta, a seu modo e em consonância com E. Husserl, que todo problema posto em termos de "representação" (um método que garantirá a união segura do sujeito e do objeto, sacramentos que garantirão a união estável entre Deus e o Homem, propostas parlamentares que poderão responder perfeitamente às demandas da sociedade etc.) é mal colocado de antemão, já que mobiliza conceitos que não possuem um correlato no real, nas práticas reais, nas "articulações" do real: em Matéria e Memória, H. Bergson encaminha o dualismo sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras) assumindo uma postura a meio caminho entre a redução da matéria à representação que dela temos (o partido idealista) e a matéria como uma coisa nela mesma (o partido realista), ou seja, a matéria como representação e a matéria como coisa; em substituição a ambas, Bergson propõe pensar a matéria como uma imagem entre imagens, um conjunto de imagens, e o sujeito, uma imagem entre outras, como uma vida psicológica que pode se manifestar em diversos tons, nuances, "alturas", por vezes mais perto da ação sobre as coisas, por vezes mais distante dela.

Forçando a barra, diríamos que Husserl suspende o dualismo do ser com o não-ser, já que um é o oposto especular do outro. Bergson vai mais além e tensiona esses opostos. Ao criar um sujeito-tendência, que tende ora para uma contração rumo ao material ora para uma dilatação de sua personalidade não mais restringida pela ação sobre a matéria, o bergsonismo cria um sujeito "falso", duplo, capaz de ocupar ambos os lados das falsas guerrilhas de trincheira colocadas pelas dicotomias mas sem se "identificar" com nenhum deles. Qual o critério decisório que dirá o lado para o qual se deve tender? Quando ser estadista e quando ser liberal? Quando afirmar-se ateu e quando afirmar-se teísta? Quando defender a submissão do pedagógico ao administrativo e quando afirmar o primado do pedagógico sobre o administrativo? Problemas postos em termos temporais, não espaciais. O tal critério não pode ser uma premissa lógica; se dissermos, por exemplo, que o critério deve ser pragmático, utilitarista, nos lembramos imediatamente que a utilidade e a ação operam um binarismo com o devaneio e a dispersão, um binarismo que ele também pode ser tensionado (quando ser pragmático? quando devanear? a recolocação do problema sujeito-objeto por Bergson, inclusive, em muito se parece com esta tensão pragmática-devaneio). A saída, repetindo, é temporal, é vital. 

Este ponto é sutil e mereceria um texto só para ele, mas fiquemos no básico: a vida, fluxo contínuo de movimentos, de sucessões, de transformações, é caracterizada pela mudança; a vida e as coisas da vida não mudam, mas são, elas mesmas, mudança; não há, desde o início, um critério de escolha pois "escolher" parte do pressuposto de que o problema se trata de selecionar duas "coisas", dois espaços, quando, temporalizados, estes espaços viram tensões; tensionar, e não escolher, é ação submissa ao movimento incessante da vida; escolher um dos lados e com ele tornar-se indivíduo, com ele identificar-se, é espacializar o tempo e brecar o fluxo da vida que, quer o sujeito queira ou não, continua a escorrer pelos espaços que construímos para barrá-la; abrir as portas para a vida é criar, é criação de vida e de matéria, de ser (e de não-ser), é a tecitura do real, é textura.

O pensamento representativo guarda pretensões divinas - Jeová cria o Mundo para o homem, e cria o homem à sua imagem e semelhança (representação), e o homem, por ser imagem e semelhança do divino, assume legítimos privilégios no jardim da vida. Entender o texto acadêmico como escritório representacionista - voltamos ao exemplo inicial - seria assumir que é a Universidade que legitima nosso pensamento, assim como Deus derramou sua Graça sobre Adão e, sem Deus, não há Graça, não há Mundo e não há Adão. Idem para o movimento social que almeja ter o seu modo-de-viver reconhecido pelo Estado e pensa que, sem o aval do governo, sua existência ainda não é legítima. Idem para o artista que, por não estar articulado aos circuitos tradicionais de promoção de cultura, pensa que o que ele faz "é só hobby". Idem para o cidadão que acredita que a política "de verdade" se faz na Tribuna, no Parlamento e no Congresso. 

A escrita acadêmica não pode querer "representar" nosso percurso de pesquisa se, por pesquisa, entendemos o desenrolar do espirito, da vida. Tensionados, o problema se recoloca. A escrita - a escrita acadêmica, mas qualquer outra escrita submetida a formalismos e burocracias, qualquer outra tecitura do real que pense em termos duais -, agora tensionada, deve ser entendida num sentido duplo: um positivo, afirmativo em relação à vida, como a oportunidade para deixar documentando um fragmento de reflexão, a oportunidade material para criar; e um negativo, no sentido de ser um requisito burocrático para a aquisição duma titulação institucional. São duas tensões que devemos balizar o tempo todo, para não cair em nenhuma delas. "Escolher" a primeira seria assumir que a escrita representa o pensamento e que as instituições acadêmicas o legitimam, que é o amém do padre que abençoa a alma do casal; cair no outro extremo seria assumir que a escrita "é só burocracia". Nenhuma das duas possibilidades produz vida.

O grande desafio reside no balizar dos dois, encarar a escrita (da vida e das coisas da vida) como um fractal, um fragmento do pensamento. É um pedaço de nós que cai e se vai, e se perde e se acha, entrelaçamento e tecitura do tempo com o formalismo espacial. Ao mesmo tempo, ao mesmíssimo tempo e num mesmo movimento, pensar o texto como textura - como balizamento entre tensões - e a vida como tecitura, como urdidura, demanda de nós uma nova postura de leitura. Já que escrever não é "representar", "ler" não mais equivale a "entender um texto", mas a tentar construir e se inserir no pensamento do qual esse texto é só um fragmento, um sinal, um "sintoma". Quando o texto se torna textura, a leitura, ler a textura, é participar desse exercício de tensionamento, de urdidura, que abole o autor, abole o sujeito do texto (e abole o objeto de entendimento do texto). O cineasta que produz áudio-visual fora do eixo de exibição e premiação demanda um espectador que não é só um olho, um receptor; o músico que compõe alheio a gravadoras e distribuidoras demanda um ouvinte que não é só um ouvido, um captador de sons óbvios e dados; o escritor que não depende de prensa e editoras demanda um leitor que não é só alfabetizado, que não é só um comprador de livros e revistas e afins. A matéria entendida como imagem, como imagem entre imagens, demanda uma nova postura frente às coisas. Ler e escrever não mais se distinguem, o intérprete e o compositor da música não mais se dissociam, consumir e produzir se equivalem. O ser e o não-ser, aqui, abandonam o lugar de questão central do pensamento, mas não pela trilha platônica, e o real, agora a contragosto de Parmênides, passa a ser um devir. Heráclito, seu adversário de ideias, seu "não-ser", já o dizia. A textura do ser, escrita-pensamento, é um fogo, é um raio. É isso, a vida.