domingo, 28 de abril de 2013

"E se fosse com você?"

Dando continuidade à série "comentários escrotos a favor da redução da maioridade penal", é visível o quanto o sujeito do enunciado finge confundir justiça com vendetta na sua proposta de reforma penal. "Se fosse comigo", sou levado a responder, "ficaria infantil e egoisticamente injuriado, furioso e sedento para que o filho da puta pagasse, de alguma maneira, pelo que me fez passar". Certo; mas daí afirmar que a minha meninice de "dar o tapa de volta" possa ser o fundamento e o modelo para a organização da sociedade civil e de um Estado de direitos é forçoso demais. Em verdade, o que se quer neste movimento de equivalência da vingança (aritmética) com a justiça (justeza, geometria) é infligir num outro a mesma violência que recebemos deste mesmo outro, e isto sem que recebamos efeito de retorno algum, sem que sejamos indiciados por isto e sem que corramos o perigo de sermos violentados de volta, já que, agora, a nossa vingança pessoal foi legitimada, foi transformada em política pública. O discurso inicial é a denúncia de que a redução da maioridade penal não é justa, e que o seu sujeito, sem-saber-sabendo, sem-querer-querendo, quer ser Rei, quer agir e fazer da sua ação a lei geral (um kantismo iluminista tornado monarquia absolutista). O indivíduo desejoso de ser o próprio Estado. Nunca a expressão "microfascismo" fez tanto sentido quanto aqui, quanto agora...

domingo, 21 de abril de 2013

"Tá com pena? Leva pra casa!"

Esse odioso "argumento" dos defensores da redução da maioridade penal possui um erro crasso e demonstra o quanto tal posicionamento é um imbróglio, um nó moralista que não intenciona pensar os problemas do Estado, da Sociedade Civil e da sua mal-colocada relação (o Sujeito e o Objeto da política), mas apenas manter as coisas como são, tais e quais, alocando o lúmpen da civilização aos lixões asilares que a própria civilização produz. A noção de "criminoso" não é nascida das relações diretas de um homem com o outro, mas sim um termo jurídico advindo do moderno código penal e de uma sociedade regulada por um Estado normalizador. Não existiram "criminosos", assim sendo, em nenhum outro momento da história anterior à modernidade. Sócrates, corruptor da juventude, não foi um "criminoso". Se o indivíduo (outra noção moderna) é coptado como "criminoso", é porque o próprio Estado já o identificou como figura que atenta o bem, a ordem e o progresso, logo, o próprio Estado: foi Platão o primeiro a identificar a geometria espacial com a ordem social, e esta com o bem, o belo, o justo, o verdadeiro, sendo todas as demais maneiras de se organizar a vida e de se estar junto identificadas com o caos, o nada, o não-ser; essa "torção platônica" dura até o hoje, ao que parece. Ser "criminoso" é ser obrigado a passar pelo crivo institucional da penalidade e do encarceramento, punições típicas da sociedade francesa desde o século XVII - as tais lettres-de-cachet - mas que, todos sabemos, não "reformam" nada. Logo, não posso levar o "criminoso" para minha casa, pois a própria noção de "criminoso" - criação via Estado - o obriga a ser condenado numa instituição asilar, assim como o filho mal-criado é obrigado a passar uma temporada trancado em seu quarto. Não posso nem devo, insisto, "levar pra casa", pois o "criminoso" é um problema "do Estado", "do Social", e não individual, subjetivo, um problema de um homem com o outro. Resolver problemas que são da esfera do Estado e de suas instituições pela via individual é crime, inclusive. Não é uma questão de "pena", mas de pactuar devidamente com a própria lógica do Estado. Não é um "problema meu", mas um "problema nosso", nosso enquanto estrutura geométrica e organização social regulada por um terceiro (o tal do Estado). O curioso é que a investida de "mandar levar pra casa", além de anti-lógica, é anti-estatal, e advém dos que ainda defendem e professam a sua fé no Estado, na ordem e no progresso. Os mesmos que, mais curiosamente ainda, dizem que "o Brasil não tem jeito" ou que "na política, só tem ladrão". É difícil - mais que difícil, a maior das dificuldades da retórica - argumentar com um pombo enxadrista.

sábado, 20 de abril de 2013

Música Nova

Frente ao adágio que diz que toda e qualquer música é a combinação sequenciada de 12 notas sonoras (ou que todo e qualquer texto é a combinação sequenciada de 26 letras, ou que toda pintura é a combinação de 7 cores e suas nuances numa tela etc.), objetar-se-ia com músicas microtonais, músicas que mandam para os infernos o sistema cromático de notação musical e suspendem, por um segundo que seja, toda a tradição sonora na qual os nossos espíritos foram modulados. Seria o equivalente a escrever usando de letras que não possuem correspondência no alfabeto, de jogos de palavras que não nos mobilizem exemplo algum e de expressões que não tenham referência outra que não elas mesmas, ou pintar com cores duvidosas, entremeadas entre o vermelho e o amarelo do sol no horizonte, o azul e o verde do mar profundo. Franz Kafka escreve em alemão como quem pragueja, como um burocrata, como um judeu, escreve em alemão como um não-alemão; Milan Kundera dispõe a sua literatura e desenrola a vida insustentavelmente leve de Tomas e Teresa (e Sabina e Franz e Karenin...) como quem faz filosofia. Para comentar a frase inicial de que tudo se resume às tais "12 notas" - o que equivaleria a dizer que o pensamento (musical, literal, pictural etc.) demanda sempre condições estruturais e bem formalizadas para se manifestar - a Crítica da Razão Pura tomada por Código de Direito Penal - nem é preciso chegar ao microtonalismo (a radicalidade desta discussão, o xeque-mate do sistema serial). 

Antes mesmo de Schoenberg (o atonalismo, a escala cromática levada a seu limite) ou de Pierre Boulez (o microtonalismo efetivamente falando), Claude Debussy já nos dava a ainda mais absurda lição - tanto em sua música quanto em sua literatura - que a nota Dó de uma oitava, por exemplo, difere do Dó da oitava seguinte, do Dó uma oitava acima. Só são "a mesma nota em oitavas diferentes" pois já nos acostumamos - tanto individual (ontogênese?) quanto historicamente (filogênese?) - a dividir o continuum do som em pacotes de 12. Se é duro educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal como música, é ainda mais duro educar o ouvido para conseguir distinguir como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em oitavas diferentes (ou em timbres diferentes; como o violão e o piano, muito distintos, e o violino e a rabeca, menos distintos mas, ainda assim, com timbres distintos). Numa partitura, a variação vertical da nota produz alteração de tonalidade; a variação horizontal produz mudança de ritmo. Vale apontar, a título de nota e de experimentação, que uma micro-mudança de ritmo - mais sutil que a mais sutil das semifusas - é ainda mais difícil de captar do que uma micro-mudança de tonalidade. É tanto mais difícil de captar quanto, captando, mais difícil de entender, de compreender, de se fazer música com essas variações moleculares. De qualquer maneira, escapar dessa fenomenologia musical, segundo a qual uma música equivale à sua estrutura, à sua gestalt, é atividade muito mais difícil do que acostumar-se a atonalismo ou microtonalismo ou microritmismo.

Para elucidar o pensamento musical de Debussy, é interessante lembrar de Victor Borge, o humorista-pianista, fazendo uma brincadeira ligeira com a sua Clair de Lune. Assim que começa a interpretar a suite, e embora as notas estejam certas e a platéia reconheça a música imediatamente, fica-se logo com a impressão de que "tem algo errado". Depois das pantomimas do maestro, todos percebem que ele estava a tocar a música uma oitava acima. Essa verdadeira aula de Borge reflete bem a música e a teoria musical debussiana: o que ocorreu não foi a mesma música executada uma oitava acima, mas sim uma outra música! A experiência musical é distinta, é uma outra, ainda que, "aparentemente", fenomenologicamente, pareça se tratar da mesma coisa. O mesmo se dá para uma música que, por exemplo, foi composta para o piano e está sendo executada num violão (variação no timbre). Debussy diria que não é a mesma obra pianística interpretada no violão, mas, isso sim, uma outra música, uma outra obra, ainda que as notas sejam exatamente as mesmas. Aí está o caminho das pedras: entender que "Clair de Lune ao piano" e "Clair de Lune ao violão" são experiências distintas, são músicas distintas, é algo mais difícil de exercer do que preparar o ouvido para o atonalismo e para o microtonalismo (e mesmo para o microritmismo). Noutros termos - e repetindo o já dito - é difícil educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal/microrítmica como música, mas é ainda mais difícil educar o ouvido para conseguir distinguir e entender como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em escalas ou timbres diferentes.

É mister não encarar a tal da "experiência musical" como algo subjetivo. A mudança de uma oitava para outra ou uma alteração de timbre, além de possuírem um correlato mensurável, é uma mudança tão violenta para a música quanto a alteração de seu ritmo ou de sua tonalidade. É nisso que Debussy insiste, quando toca a sua música: por que se diz que a alteração objetiva da tonalidade e do ritmo de uma sequência de notas produz uma outra música, enquanto que para outras mudanças - como alteração do timbre ou da oitava em questão, igualmente objetivas - diz-se que é da mesma música que se trata? Duas experiências: escutar Libertango com o bandoneon do próprio Piazzola, acompanhado de Yo-Yo Ma destruindo um violoncelo; e escutar um qualquer tocando o Libertango num solo simplificado de violão. Debussy não diria que são duas interpretações distintas da mesma música, mas duas músicas distintas, ainda que reconheçamos a mesma identidade nelas, o mesmo fenômeno.

Fugir da tal fenomenologia musical é a mais brutal das asceses da escuta que se pode praticar, já que não se resume a preparar o ouvido para outras "identidades musicais", outros estilos ou outras "coisas", mas se trata de erradicar a consciência da música, de expurgar da mesma a humanidade, e nela encontrar, como já tinha colocado o próprio Beethoven, as condições para a superação heroica de si  mesmo e do mundo no qual se está. O menino-exemplo de Husserl a escutar uma orquestra no disco riscado entra sem querer no jogo programático do sujeito-ouvido e do objeto-música e logo identifica a obra como sendo a mesma coisa que escutou numa ocasião passada ou que leu numa partitura. Ora, realmente se acredita que essas experiências se identificam? Se sim, mantém-se a consciência como dativa do sentido do mundo e, mesmo a contragosto de Husserl e da sua fenomenologia, o homem é um ser que representa a realidade. Caso contrário, se está a investir numa música sem intérprete nem compositor, sem gravação nem mixagem, uma música sem músico e sem ouvido, sendo a consciência - tonal, atonal, microtonal - efeito de suas práticas, fruto de sua atividade e criação de suas criações. O convite está lançado: ou a análise é focada no "sujeito que faz música", o tal do intérprete, o tal do compositor; ou se foca na música em seu amadurecimento criador, produtora de obras musicais, de músicos, de técnicas, de tecnologias, de instituições, de jogos políticos, de história, a música imanente à vida e a vida em notações musicais - venham elas em 12 ou não.