domingo, 17 de novembro de 2013

A volta de Spinoza, o comentarista político

Proposição: Ricardo Camargo Vieira, médico e vereador de Florianópolis (pelo PC do B), apresentou na tribuna um projeto de lei visando criar tratamento psicológico gratuito para os preconceituosos (racistas, homofóbicos, misóginos etc.).

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Definição: essa proposição é o oposto especular de um outro PL, apresentado pelo vereador catarinense Deglaber Goulart (PMDB) no início de Outubro pretendendo criar tratamento psicológico a homossexuais, versão regional da "Cura Gay" defendida pela Bancada Evangélica. 

Axioma: "preconceito" não é uma característica mental, mas uma produção histórica e uma constituição social. O preconceito não está na mente ou no cérebro.

Corolário: ora, uma cura gay não é possível, justamente, pois a homossexualidade não se resume a uma condição individual, e se ela é um "problema" é apenas por condições históricas e sociais que a leem como um problema. A impossibilidade de uma cura gay não é metodológica ("não dá pra fazer"), mas ontológica (não dá pra resolver o problema pois não é um problema).

Ambos os projetos não fazem sentido, nesse aspecto, e talvez essa proposição do vereador Ricardo Vieira (PC do B) seja boa pra mostrar, justamente, o que há de incoerência nas propostas "psicológicas" da bancada evangélica.

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Apêndice: não precisamos, repito, nem entrar no mérito da eficiência. A questão é que o problema é inexistente de início. Não é que "não dê pra curar", mas "não há porque curar, não há nada pra curar"! São questões mais históricas, modais, que psicológicas, individuais, tanto a homossexualidade quanto o preconceito, seja racial, sexual, de gênero etc. Resolver as coisas "no indivíduo" é não atingir o cerne da questão. Combater a violência (problema geométrico, social) incidindo nos violentos, matando e punindo os criminosos, pensando penalidades mais severas aos meliantes, investindo no aparato repressor policial (resolução aritmética, individual) é o mesmo erro mobilizando outros termos. Idem para o senso político que pensa a corrupção como a resultante de corruptos, a ciência que pensa a produção de conhecimento com o uso de métodos e protocolos instituídos, o sistema jurídico que confunde justiça com código penal, o boa vida que tenta construir felicidade com a sucessão de alegrias, a religião que prega o fortalecimento da através de ritualismos e crenças eclesiásticos, o militante que luta e muda consciência e mundo adentrando em partidos e sindicatos. Exemplos existem aos montes, e atravessam muitos e muitos domínios. A liberdade? É cada um, em seu próprio domínio e existência, perseverar no seu ser.

 


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A biografia do dono e o dono da biografia

O Facebook, em geral, exagera a polarização das ideias num duplo frenesi ideológico e empobrece as discussões ao colocá-las em termos de “Fla-Flu”, no qual as torcidas são separadas por arquibancadas virtuais (“comunidades”, “amigos”) que só reforçam e extremizam as opiniões de seus partidários. Mas por que a discussão sobre as biografias (não-)autorizadas, mesmo fora das redes sociais, está colocada em termos de "privacidade vs. liberdade de expressão"? Como escolher entre o que não pode ser escolhido, como escolher num esquema no qual o "ou isto ou aquilo" é impraticável? Chico Buarque carrega em si a ambiguidade da discussão: sendo a nova personalidade a ser surrada no Facebook por ser "o cagão com suas contradições", é, ao mesmo tempo, o único que colocou um argumento sincero e apropriado em toda essa fofoquinha cultural ao dizer que o historiador sério não pode cair num "mal de arquivo" e usar da mídia como fonte histórica confiável (a menos que seja a mídia o próprio objeto do historiador, mas aí já são outros contos). O argumento da privacidade é menor no texto de Chico, é em verdade um não-argumento alçado à categoria de argumento por quem preferiu o caminho mais fácil para justificar o injustificável (Paula Lavigne? O Procure Saber?), por quem preferiu seguir a linha da defesa da privacidade e escantear o que há de ouro (pouco, verdade) na fala de Chico Buarque. Se opinião conta numa conversa desse naipe, conto então que estou do lado de Paulo César Araújo. A questão não pode se resumir a uma querela entre os "defensores da privacidade" e os "guerreiros da liberdade", já que esse problema não existe! Tentar, via judiciário, impedir a publicação de qualquer material biográfico não autorizado pelo biografado ou seus descendentes é impedir o próprio exercício do pensamento histórico, e impedi-lo de maneira legitimada (aka. ditadura), ainda que tenhamos de aturar livros e mais livros contando inverdades sobre a nossa vida. A lição tirada dessa história toda? Creio que é o aprendizado de que ler não equivale a entender as palavras e frases grafadas numa superfície de inscrição, e que o papel nem sempre, quase nunca, nunca mesmo! - a impossibilidade é ontológica - contém a verdade, seja o papel no qual se grafa o verbo, o substantivo e o adjetivo, seja o papel que as mais diversas personalidades assumem numa discussão que é maior do que elas mesmas.


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Fofoca e pensamento

Há um ou dois meses, o músico Lobão foi tomado pra Cristo (ou pra Belzebu), tomado como a encarnação da extrema direita, rancorosa, velha, ressentida, amarga, desgostosa com o que há etc., e exorcizado por isso; agora, é Dinho Ouro Preto, o seu demônio especular, que, cara, encarna a esquerda-que-tudo-problematiza, que, cara, critica a política parlamentar, que, cara, pede pra gente votar melhor e, cara, nos joga isso em nossa própria cara, cara.

Exponho: pensar um estado laico não envolve, simplesmente, a exclusão do religioso no âmbito da política, mas, isto sim, a exclusão de todo pensamento binarista que pense os problemas da política em termos de "lados" e de "sujeitos".

Se "Lobão" merece críticas é por encarnar um determinado "modo" de agenciar a política (direita rançosa); se "Dinho, o cara" merece críticas é por encarnar um "modo" de agenciar a política (esquerda lalante) igualmente (ou diferentemente) danoso ao pensamento e à política. É mister esquecer os sujeitos e focar os modos e suas consequências. Discutir em termos de "indivíduo" não é pensar a política, mas "fofocar"; fofoca com um mínimo de nível, verdade, mas ainda assim fofoca. É o registro do "viu que fulano fez isso e falou aquilo?"; se a abordagem do problema se resumir a Dinho", "Lobão" ou a qualquer outro Zé, se o pensamento encará-los tão só como "pessoas", a coisa não anda. 

Nada, nada mesmo, contra a fofoca; mas que ela não passe como "análise política" ou "exercício de pensamento", que ela não se passe por ouro sendo apenas metal comum.



domingo, 15 de setembro de 2013

Embargo Infringente, o bug democrático da vez

A Lei 8.038, de 1990, normatiza os procedimentos do STF e do STJ, e é lá que consta esse lance de "embargos infringentes"; grosso modo: uma decisão do plenário do STF/STJ que não seja unânime pode ser revogada pelo Congresso. 

É um meio de as decisões do Supremo não excluírem a possibilidade de recurso dos réus (o EI não existe noutros Tribunais pois estes tem suas próprias maneiras de o réu recorrer, inclusive recorrer a Tribunais superiores, inclusive recorrer ao STF). Em 98, FHC tentou adicionar um novo artigo à lei pra excluir o EI contra as decisões do STF (apoiado pelo atual Ministro Gilmar Mendes, vale lembrar), mas não conseguiu levar isso adiante.

O bug: é o embargo ele mesmo que impede uma "ditadura do Judiciário", que impede que as decisões do Supremo tenham caráter irrevogável; mas é este mesmo embargo que - tomando um caso concreto e atual - pode tornar inválido o julgamento do Mensalão. Noutros termos, o EI é tanto uma "falha do sistema" que inviabilizaria certas investidas do Judiciário (argumento usado por alguns ministros contra o uso do EI no caso do Mensalão) quanto o fundamento do próprio Estado Democrático, visto ceder o direito de recurso aos réus (independente do crime em questão). 

Uns diriam que o Estado de Direitos precisa desses bugs ("antes um sistema penal contraditório que uma monarquia absolutista, soberana e arbitrária", argumentam); outros, diriam que todo sistema encerra em si mesmo "os germes de sua própria destruição". Para além da lógica ou da dialética materialista, convém pensar a questão em termos menos formais. Uma via de análise mais humilde, que não vise resolver a questão de maneira imediata, num único movimento de mão, colocaria apenas que o EI é só um exemplo de como a modernidade produz e engendra paradoxos. 

Mundo de representações formais e de espaços que pretendem legitimar e segmentarizar cada aspecto da vida humana, a modernidade é muito menos um espelho do real que um caleidoscópio de pedaços infinitos, de pedaços incomunicáveis. Ao pretender-se pura, denuncia a impossibilidade de seu projeto produzindo, ela mesma, esses monstros híbridos, esses mistos problemáticos e irresolvíveis.

O paradoxo, antes de um erro lógico, de uma contradição de termos, antes mesmo de uma fagulha de mudança, é o signo da vida moderna. Uma semiótica do contemporâneo deve levar em conta, antes de qualquer outra coisa, o aspecto paradoxal das engrenagens modernas.

O sistema jurídico produz as suas quimeras. A ciência produz as suas quimeras. O trabalho assalariado produz as suas quimeras. A religião produz as suas quimeras etc. Cada um desses, e além, produzem quimeras e são, eles mesmos, monstros inabaláveis, visto não serem questões efetivas, mas miragens, entraves, bugs. A questão é muito menos "matar o dragão" que "pilhar o seu tesouro"; e é muito menos "pilhar o seu tesouro" que aprender a viver, a investir numa existência para além de qualquer dragão e de qualquer promessa de tesouro que a sua derrota (ou filiação) poderia nos legar.

A modernidade é, a priori, uma não-modernidade.



segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guerras frias

G. Orwell dispõe a sua análise em tom profético, mas sua análise vai mui além do simples prenúncio de uma "sociedade da vigilância" porvindoura: se a teletela olha e zela, não é para, simplesmente, vigiar; a vigilância ensina a autodisciplina, que se torna aprendizado, que só torna hábito, que se torna instinto, entranhas, intestinos; o controle do passado não é simplesmente o controle dos registros documentais, mas a destruição da memória, deixada ao léu para usufruto da primeira fileira do Partido. Se o passado mora nos documentos e na memória, basta controlar os registros documentais e abolir o exercício da memória. Tudo, assim, estará consumado. Essa disciplina produz um sujeito psicológico, interiorizado, mas um sujeito sem memória, um sujeito cuja memória é, agora, apenas o receptáculo de lembranças vazias, meros dados informativos que ajudam esse sujeito a responder às demandas do Grande Irmão e do alto escalão do "Socing", sem pestanejar, ou nem mesmo refletir sobre o que faz.

Ora, esse problema da diferença formal na política e do papel do povo na sua relação com os demagogos e os dirigentes da cidade é, justamente, o motor de boa parte da literatura grega do século V-IV a.C., em especial da filosofia platônica, uma filosofia tópica que resolve à sua maneira a questão do demos expurgando o próprio demos da política, e criando uma república que se define, justamente, por ser a negação da democracia e a harmonia entre as novas classes, agora legitimadas em zonas da verdade e da alma que a carrega (o filósofo gestor, o policial e o trabalhador); a Utopia de Thomas More vai na mesma esteira mas, ao colocar que a sociedade perfeita já existe numa ilha longínqua, coloca também indiretamente que a sua realização não depende do futuro, de um "desenvolvimento histórico" ou do passar do tempo, mas de um "distanciamento no espaço", um distanciamento das formas (visto que as condições para a sua efetivação já existem, sempre existiram); Orwell empreende um esforço atópico e anti-utópico (distópico) e cria um cenário pós-industrial no qual a fome, a guerra, o sofrimento físico e a exploração social não fazem mais sentido, não precisam mais existir, mas existem. Por que? Pois o poder do soberano foi substituído por um poder difuso, um poder que não tem lugar e cabeça privilegiadas, um poder sem poderoso (as figuras do poder estão ali, principalmente, para nos desviar o olhar das malhas e circuitos do poder). Como manter a desigualdade formal entre os homens? Está aí o porquê da guerra moderna: queimar o excedente de produção e direcionar o trabalho numa sociedade que, em tese, já deixou de colocar como necessária a diferença formal entre as pessoas (e a exploração material, mental e espiritual dela decorrente). 

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Se colocamos Obama como um novo G. W. Bush, e se equivalemos a invasão da Síria com a guerra no Iraque, ainda não nos instalamos no núcleo duro da coisa: a guerra no Iraque era uma guerra pelo petróleo e pelo financiamento da indústria bélica (que, num círculo nada virtuoso, sempre financiou as campanhas dos Bush); a invasão da Síria, apesar de igualmente descabida, é diferentemente problemática, já que mobiliza questões mais sutis. A invasão do Iraque é mais facilmente atribuída aos governantes, aos sujeitos no poder (o poder entendido como exercício de um indivíduo soberano); a invasão à Síria, porém, é a denúncia de um sistema de governo que se governa independente das propostas e posturas políticas de quem ocupa os cargos de gestão. O escândalo do NSA está aí para reforçar essa hipótese. A manutenção de Guantanamo idem. O que estamos reaprendendo com a tal da invasão à Síria pela OTAN? Aprendemos que um Nobel da Paz pode promover uma guerra; que, com um e outro rearranjo geopolítico, e com uma e outra mudança de pauta midiática, o sujeito que ontem era "presidente" hoje é "ditador"; que uma invasão pode ser chamada de "humanitária", no caso do invadido ser um alvo frágil (ainda que Rússia, China e Irã se manifestem contra a invasão) e no caso da invasão ela mesma ser apoiada por uma causa frágil (o tal do "syrians killed syrians; so now we must kill syrians to stop syrians from killing syrians"); que os fiscais da ONU encontrarem (opção 1) ou não (opção 2) algum indício que corrobore a hipótese que sustente a invasão (uso de gás, ou não) não é uma variável levada em consideração pelos dirigentes; que - esta é boa - qualquer país médio-oriental, africano ou latino-americano, a despeito de sempre ser uma colcha pluralíssima de retalhos culturais, linguísticos e religiosos, são sempre pensados como um território coeso, coerente e unificado; mais além, cada um desses (os médio-orientais, os africanos, os latinos) são sempre pensados como "uma coisa só", como "farinha do mesmo saco"; mas, principalmente, aprendemos que a Guerra Fria perdeu suas maiúsculas e pluralizou ("guerras frias"), tornando-se a norma da guerra, revelando que a natureza e o objetivo da guerra moderna é menos uma luta por pautas concretas que uma performance para evidenciar territórios (não mais restritos ao espaço) e reforçar alianças, num esforço de manutenção das forças políticas em seu estado atual por toda a extensão do espaço e do tempo. Um império sem fim.

Orwell estava certo.

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sábado, 7 de setembro de 2013

A textura do ser II

Uma nota de esclarecimento acerca do texto anterior.

Já é lugar comum, para mim, equivaler vida e movimento. Pensar a mudança de temperatura como uma passagem do calor ao frio, ou a mudança política como a passagem duma ditadura militar a uma república democrática, em exemplo, ou uma mudança de personalidade do sujeito como a passagem dum estado de timidez ao estado de extroversão, como se a mudança equivalesse a uma sucessão de estados, de blocos, de imobilidades que permanecem idênticas a si mesmas durante todo o tempo em que duram, pensar a mudança nestes termos é ignorar que a vida - repito até a exaustão - não muda, não se move, mas é, ela mesma, mudança e movimento. O post anterior consiste essencialmente nisto: a denúncia do pensamento que é simples "cinema da consciência", simples sucessão de imóveis, e a sua substituição por um pensamento que é a tensão dos/nos espaços já dados. Uma vida que é ela mesma movimento demanda não "escolhas", mas "balizamento de tensões"; a política, por exemplo, não se resumiria à escolha nem da direita nem duma esquerda (ambos espaços constituídos, ambos tecnologias políticas já engendradas), mas a uma estratégia de movimento que se constitui através desses espaços, uma estratégia que assume - para além do verdadeiro e do falso desses espaços - o real de ambos, atravessando ambos, mobilizando ambos e traindo a estrutura programática de ambos. Essa lida com o pensamento e com as coisas pode dar a entender que todas as dualidades com que lidamos podem ser "tensionadas", como se uma fosse o oposto especular da outra; tensionar o dualismo Deus-Homem é uma coisa, muito semelhante ao dualismo Sujeito-Objeto, já que os pólos desses dualismos são um a sombra do outro. Mas existem dualismos que não operam este jogo do ser com o não-ser, dualismos que não são opostos especulares, mas falsos dualismos. Usar desta estratégia de pensamento para "ficar em cima do muro" e não escolher "nem esquerda nem direita", argumentando "neutralidade", é a coisa mais nefasta que se poderia realizar com a política (e com o pensamento), é esquecer que o grito de "sem partido", a despeito de ser uma crítica para mim muito cara à noção de representação, é o grito do ditador militar, do abolidor do posicionamento político, do Grande Irmão efetivado, de Pilatos (o que "lava as mãos"). Tensionar dualidades e recolocar problemas só funciona com opostos especulares, friso. O pensamento esquerda-direita só merece ser tensionado quando por esquerda e por direita entendemos agendas políticas que são apenas os pólos de um mesmo espectro político. Se por "esquerda" entendermos, ao invés, uma postura política que vise abolir as diferenças de classe (burguês-proletário, plutonomia-precariado) e a exploração social decorrentes delas - e isto independente de filiação partidária, cargos ocupados, funções exercidas etc. - então "esquerda" não é mais o não-ser da direita, mas a própria subversão deste esquema (e dos dualismos que ele coloca, incluindo a esquerda burocratizada). A luta por espaço e pelos direitos homoafetivos e a homofobia também são um falso dualismo ser/não-ser, já que um consiste na luta contra a heteronormatividade e as violências física e simbólica decorrentes desta, e o outro é uma força reacionária de abuso e de violência. O mesmo se dá com os esforços de promoção de culturas locais e o preconceito regional, a promoção de cultura étnica e o racismo (a "neutralidade", aqui, é a cultura de todos = cultura sem cor = cultura "branca"). Idem para o feminismo (movimento social para o reconhecimento de direitos e capacidades do feminino) e o machismo (violência socialmente aceita contra a mulher). Abster-se de cair nos erros do pensamento não deve suspender nossa tomada de posições e ação; abster-se de "escolher" não equivale - talvez só de longe - à suspensão da responsabilidade e de suas tensões.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A textura do ser

A escrita é uma tentativa do espírito em dar substância a si mesmo. 

Esta demanda espiritual, no entanto, aparece quase sempre atrelada a uma encomenda institucional - à título de exemplo, a escrita acadêmica.

O escritório academicista é um diário de bordo, no que toca à sua tentativa de acompanhar e apontar para o desenrolar do pensamento, e isto tanto nas ciências mais duras quanto nas humanidades, e em ambas tal pensamento sempre vem codificado numa linguagem específica, usa de tais ou quais termos, filia-se a referenciais, padroniza procedimentos metodológicos, cria protocolos de editoração.

O escritor, porém, aquele mesmo que tenta verter seu espírito em textura, em texto, sabe que há uma incompatibilidade radical, fundamental, entre o que escreve e a realidade espiritual que lhe atravessa, um abismo ainda mais colossal que entre o representante e o representado, a pintura e o modelo, o sujeito e o objeto, o Estado de Direitos e a Sociedade Civil, a Universidade e a comunidade, a ciência e a profissão, a natureza e a cultura, o público e o privado, ou qualquer outro binarismo que coloque, automaticamente, o problema de como os dois pólos podem, da maneira mais adequada possível, se mediar; tais problemas produzem soluções diversas: o racionalista é aquele resolve o problema sujeito-objeto colocando a mente como uma substância pensante que representa a realidade; o neoliberal é aquele que postula que o Estado deve intervir o mínimo possível (como um mal necessário) nas relações econômicas dos indivíduos que compõem a sociedade; o impressionista é aquele que primeiro desiste de tentar pintar a realidade tal qual uma fotografia. Qual seja, o dito de que "o pensamento não cabe na escrita" é ainda insuficiente diante desse abismo, dessa diferença de natureza entre o ser e o não-ser, e ignora que as discussões possíveis entre um e outro destes dualismos pendulares jogam com o ontos e o seu contrário radical. A escrita do pensamento, escrita-pensamento, escrita-textura, não pode ser a representação do pensamento, do espírito, não pode querer sanar este problema que nunca foi posto pelo espírito. Saber se é Deus que se revela, gratuitamente, ao homem (Agostinho), ou se é o homem que se santifica, asceticamente, para Deus (Pelágio) é querela inútil: Deus é o não-homem, Homem é o não-Deus, e se ambos os termos são postos é para, justamente, nunca se encontrarem. Os dualismos acima citados também merecem ser recolocados.

Pensar os problemas em termos representacionais, em termos de "relações possíveis", é jogar ao mesmo tempo com termos e com a negação destes termos. Aprendemos com Sócrates a necessidade do questionamento para o exercício de uma vida digna de ser vivida, escutamos de Platão o quanto era importante fundar e indexar o discurso político ao discurso verdadeiro, vimos com Aristóteles a ética, a política e o conhecimento sendo colocados em lógica formal, mas em geral jogamos no fosso do esquecimento pré-socrático as mais antigas e preciosas lições de Parmênides, a da identidade do ser consigo mesmo. Dizer que "o que é, é" e que "o que não é, não é" nos parece, hoje, muito óbvio, mas é com esta sentença que o eleata estabelece que o ser é tudo aquilo que pode ser pensado - logo, é pensamento; e que o pensamento se articula via linguagem - logo, é palavra: a identidade do ser consigo mesmo, com o pensamento e com a linguagem é o logos, este entendido como a relação circular (a forma grega da perfeição) entre ser, pensar e dizer. Dizer o pensamento do Ser, ou dizer o pensamento, ou simplesmente dizer, ou pensar, ou ser - a parte final da grande maestria de Parmênides - exclui radicalmente o não-ser, aquilo que, por definição, não pode ser pensado. Platão, em seu Sofista, resolve o problema do não-ser entendendo-o como diferença (o não-ser não equivaleria ao nada, à ausência de pensamento, mas apenas ao que não é um algo específico; o não-vermelho não é o nada, mas é o laranja, o amarelo, o verde, o azul); mas, ao aprimorar o grau de precisão lógica da discussão num nível que Parmênides não foi capaz, Platão transforma um problema ontológico, um problema sobre o ser das coisas, sobre a ecceidade das coisas, numa discussão metodológica, numa determinação dos gêneros do ser, numa delimitação das coisas; mais além, esse deslocamento platônico faz a ontologia equivaler, na sua filosofia, a uma metafísica do eidos, da idea, que, ao invés de pensar "o que faz da coisa uma coisa ao invés de uma não-coisa", serve apenas como pano-de-fundo que justifica os seus próprios conceitos e transforma a questão sobre o ser em teoria do conhecimento, a ontologia em epistemologia ("o que faz da coisa uma coisa ao invés de outra coisa?").

Vislumbramos, aí, que quanto menos nos preocupamos com o ser, com aquilo que substancializa as coisas, melhor lidamos com as coisas; fazendo a reversal, no entanto, quanto mais nos preocupamos em manusear as coisas, menos sabemos onde estamos nos metendo, que tipo de jogos estamos a operar, que programas estamos materializando.

O Homem é o não-ser de Deus (e vice-versa), o objeto é o não-ser do sujeito (e vice-versa), a Sociedade Civil é o não-ser do Estado de Direitos (e vice-versa), cada uma dessas dualidades sendo o fenômeno duma multiplicidade, duma contextura. Deus-Homem é Igreja, sacrifício, sacramentos, sacerdócio, pecado, comunidade, inferno; Sujeito-Objeto é ciência, metodologia, procedimento de pesquisa, matematização do real, academias, laboratórios; Sociedade-Estado é parlamento, eleição, sindicato, prefeito, código jurídico, instituições normativas. Tomá-los ambos por realidades óbvias e tentar pensar a mediação de um para com o outro é, no limite, colocar num mesmo plano o pensamento com o não-pensamento, o dizer com o não-dizer, é não pensar coisa alguma, é não dizer coisa com coisa (e sim coisa com não-coisa).

O que o projeto fenomenológico nos traz mais de dois milênios depois é, genialmente, a suspensão da questão sobre a ponte absolutamente segura entre os pólos sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras), entendidos como constitutivos um do outro (a consciência se volta para o objeto, e o objeto se dá para uma consciência); a primazia não é de A ou de B (o não-A), mas da relação ela mesma. O vitalismo bergsonista atesta, a seu modo e em consonância com E. Husserl, que todo problema posto em termos de "representação" (um método que garantirá a união segura do sujeito e do objeto, sacramentos que garantirão a união estável entre Deus e o Homem, propostas parlamentares que poderão responder perfeitamente às demandas da sociedade etc.) é mal colocado de antemão, já que mobiliza conceitos que não possuem um correlato no real, nas práticas reais, nas "articulações" do real: em Matéria e Memória, H. Bergson encaminha o dualismo sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras) assumindo uma postura a meio caminho entre a redução da matéria à representação que dela temos (o partido idealista) e a matéria como uma coisa nela mesma (o partido realista), ou seja, a matéria como representação e a matéria como coisa; em substituição a ambas, Bergson propõe pensar a matéria como uma imagem entre imagens, um conjunto de imagens, e o sujeito, uma imagem entre outras, como uma vida psicológica que pode se manifestar em diversos tons, nuances, "alturas", por vezes mais perto da ação sobre as coisas, por vezes mais distante dela.

Forçando a barra, diríamos que Husserl suspende o dualismo do ser com o não-ser, já que um é o oposto especular do outro. Bergson vai mais além e tensiona esses opostos. Ao criar um sujeito-tendência, que tende ora para uma contração rumo ao material ora para uma dilatação de sua personalidade não mais restringida pela ação sobre a matéria, o bergsonismo cria um sujeito "falso", duplo, capaz de ocupar ambos os lados das falsas guerrilhas de trincheira colocadas pelas dicotomias mas sem se "identificar" com nenhum deles. Qual o critério decisório que dirá o lado para o qual se deve tender? Quando ser estadista e quando ser liberal? Quando afirmar-se ateu e quando afirmar-se teísta? Quando defender a submissão do pedagógico ao administrativo e quando afirmar o primado do pedagógico sobre o administrativo? Problemas postos em termos temporais, não espaciais. O tal critério não pode ser uma premissa lógica; se dissermos, por exemplo, que o critério deve ser pragmático, utilitarista, nos lembramos imediatamente que a utilidade e a ação operam um binarismo com o devaneio e a dispersão, um binarismo que ele também pode ser tensionado (quando ser pragmático? quando devanear? a recolocação do problema sujeito-objeto por Bergson, inclusive, em muito se parece com esta tensão pragmática-devaneio). A saída, repetindo, é temporal, é vital. 

Este ponto é sutil e mereceria um texto só para ele, mas fiquemos no básico: a vida, fluxo contínuo de movimentos, de sucessões, de transformações, é caracterizada pela mudança; a vida e as coisas da vida não mudam, mas são, elas mesmas, mudança; não há, desde o início, um critério de escolha pois "escolher" parte do pressuposto de que o problema se trata de selecionar duas "coisas", dois espaços, quando, temporalizados, estes espaços viram tensões; tensionar, e não escolher, é ação submissa ao movimento incessante da vida; escolher um dos lados e com ele tornar-se indivíduo, com ele identificar-se, é espacializar o tempo e brecar o fluxo da vida que, quer o sujeito queira ou não, continua a escorrer pelos espaços que construímos para barrá-la; abrir as portas para a vida é criar, é criação de vida e de matéria, de ser (e de não-ser), é a tecitura do real, é textura.

O pensamento representativo guarda pretensões divinas - Jeová cria o Mundo para o homem, e cria o homem à sua imagem e semelhança (representação), e o homem, por ser imagem e semelhança do divino, assume legítimos privilégios no jardim da vida. Entender o texto acadêmico como escritório representacionista - voltamos ao exemplo inicial - seria assumir que é a Universidade que legitima nosso pensamento, assim como Deus derramou sua Graça sobre Adão e, sem Deus, não há Graça, não há Mundo e não há Adão. Idem para o movimento social que almeja ter o seu modo-de-viver reconhecido pelo Estado e pensa que, sem o aval do governo, sua existência ainda não é legítima. Idem para o artista que, por não estar articulado aos circuitos tradicionais de promoção de cultura, pensa que o que ele faz "é só hobby". Idem para o cidadão que acredita que a política "de verdade" se faz na Tribuna, no Parlamento e no Congresso. 

A escrita acadêmica não pode querer "representar" nosso percurso de pesquisa se, por pesquisa, entendemos o desenrolar do espirito, da vida. Tensionados, o problema se recoloca. A escrita - a escrita acadêmica, mas qualquer outra escrita submetida a formalismos e burocracias, qualquer outra tecitura do real que pense em termos duais -, agora tensionada, deve ser entendida num sentido duplo: um positivo, afirmativo em relação à vida, como a oportunidade para deixar documentando um fragmento de reflexão, a oportunidade material para criar; e um negativo, no sentido de ser um requisito burocrático para a aquisição duma titulação institucional. São duas tensões que devemos balizar o tempo todo, para não cair em nenhuma delas. "Escolher" a primeira seria assumir que a escrita representa o pensamento e que as instituições acadêmicas o legitimam, que é o amém do padre que abençoa a alma do casal; cair no outro extremo seria assumir que a escrita "é só burocracia". Nenhuma das duas possibilidades produz vida.

O grande desafio reside no balizar dos dois, encarar a escrita (da vida e das coisas da vida) como um fractal, um fragmento do pensamento. É um pedaço de nós que cai e se vai, e se perde e se acha, entrelaçamento e tecitura do tempo com o formalismo espacial. Ao mesmo tempo, ao mesmíssimo tempo e num mesmo movimento, pensar o texto como textura - como balizamento entre tensões - e a vida como tecitura, como urdidura, demanda de nós uma nova postura de leitura. Já que escrever não é "representar", "ler" não mais equivale a "entender um texto", mas a tentar construir e se inserir no pensamento do qual esse texto é só um fragmento, um sinal, um "sintoma". Quando o texto se torna textura, a leitura, ler a textura, é participar desse exercício de tensionamento, de urdidura, que abole o autor, abole o sujeito do texto (e abole o objeto de entendimento do texto). O cineasta que produz áudio-visual fora do eixo de exibição e premiação demanda um espectador que não é só um olho, um receptor; o músico que compõe alheio a gravadoras e distribuidoras demanda um ouvinte que não é só um ouvido, um captador de sons óbvios e dados; o escritor que não depende de prensa e editoras demanda um leitor que não é só alfabetizado, que não é só um comprador de livros e revistas e afins. A matéria entendida como imagem, como imagem entre imagens, demanda uma nova postura frente às coisas. Ler e escrever não mais se distinguem, o intérprete e o compositor da música não mais se dissociam, consumir e produzir se equivalem. O ser e o não-ser, aqui, abandonam o lugar de questão central do pensamento, mas não pela trilha platônica, e o real, agora a contragosto de Parmênides, passa a ser um devir. Heráclito, seu adversário de ideias, seu "não-ser", já o dizia. A textura do ser, escrita-pensamento, é um fogo, é um raio. É isso, a vida.

sábado, 17 de agosto de 2013

Um pensamento fora do eixo

A professora Sylvia D. Moretzsohn, pelo website do Observatório da Imprensa, enaltece a Mídia NINJA no tocante à sua "coragem da verdade" e ao seu modo de cobrir as manifestações de Junho de 2013, mas comenta que um jornalismo "assim", tão "ligeiro", tão "cobertura das ruas", tão "bruto e sem edição", tão "sem mediação e ética", não produz textos e matérias adensadas, coesas, coerentes e que respeitem tudo isso a que chamamos de boa linguagem e bom jornalismo, linguagem e jornalismo estes que nos ajudam a bem compreender e interpretar "o que está acontecendo", através deste filtro de informações e pintor da "realidade coerente" que é o jornalista minimamente responsável com o seu ofício. Ora, lembremos de todos os pensadores da cibercultura, das novas mídias, do pós-jornalismo etc. Não são eles que nos falam que esses novos tempos pedem novas maneiras de (se) escrever, de (se) ler, de produzir sentido? Não é já Platão, o primeiro filósofo a deixar uma obra escrita coesa e coerente, que nos incita a pensar a escrita como simulacro, nos incita a não levar a sério nem a escrita nem o homem que escreve, e que nenhum dos dois pode conter o pensamento, muito mais um exercício da alma na existência que um conhecimento técnico (muito mais um éthos, uma tribé, uma epimeléia, que uma tekhné)? Como pode um acontecimento - sempre fugaz e intempestivo - produzir outro tipo de escrita que não essa escrita fragmentada, "fractalesca", imagética, caleidoscópica que os "Ninjas" produzem? Uma escrita que demanda do seu leitor mais do que a alfabetização e a "consciência" de ocupar um dos dois lados das guerrilhas frias de trincheira (a ideologia dá lugar ao meme, e o tratado dá lugar ao aforismo), uma escrita que "dá trabalho" para o leitor, que o põe pra trabalhar, pra montar e articular e criar seu próprio sentido e sua própria força. 

O próprio texto, ao seu final, cita o grande cineasta russo Dziga Vertov pra falar desse modo fragmentado de produzir imagens, mas parece ignorá-lo e volta a defender o uso de uma "montagem orgânica" (seja Eisenstein-esquerdista seja Griffith-coxinha-reaça).

Ao invés dum tipo de escrita que respeite a acontecimentalização, o Observatório parece defender uma escrita de especialista, no qual uns e outros monopolizam os instrumentos para produzir - se não bens de consumo - sentidos, compreensões e subjetividades. E a isto chama de "responsabilidade do jornalismo". Em entrevista ao programa Roda Viva, Bruno Torturra e Pablo Capilé - entusiastas da MN e do Fora do Eixo (misto de casa cultural e coletivo, que intenta produzir artes, saberes e relações não mediadas pelo dinheiro) - são o tempo inteiro alvo de comentários sobre a legitimidade do jornalismo que eles produzem, um jornalismo de suposições, mas não de apurações (sendo Alberto Dines, apresentador da versão televisiva do Observatório, o único a não tentar encurralá-los); de militâncias, verdade - ao ponto de serem comparados aos próprios entrevistadores em suas épocas de panfletagem - mas muito pouco, ou quase nada, ou nada mesmo, refinado, além desta "modalidade jornalística" estar afiliada a um modelo de gestão muito confuso aos presentes. No mesmo programa, Capilé afirma que as verbas públicas - como os financiamentos a festivais, fundos de incentivo a cultura etc. - compõem um pequena porção do orçamento geral do FdE; A grand mídia, a exemplo do blogueiro Andre Forastieri, passa a questionar não só a qualidade das coberturas da MN, mas a sua autonomia, já que não há documentação que comprove essa independência financeira do FdE. "Se", afirma Forastieri, "é dinheiro de governos municipais e estaduais, governo federal e empresas públicas que bancaram e bancam a maior parte do orçamento do Fora do Eixo, não há como o FdE, ou a Mídia Ninja, se autoproclamarem independentes ou manterem a credibilidade que conquistaram". O que era, antes, uma simples questão pedagógica, uma questão de método ("isso é suposição ou apuração?", pergunta Mario Sérgio Conti a Torturra), passa a ser uma questão administrativa, interferindo a (falta de) autonomia administrativa (do FdE) na legitimidade metodológica (da MN). 

Levando o "jogo de acusar" um pouco mais a sério, a mídia orgânica diz ainda do fato de Pablo Capilé ser suplente do Conselho Estadual de Cultura, o que o faz perder (assim como, sofismando, o FdE, e a MN por tabela) a independência produtiva devido a sua relação com o PT. Confunde-se alhos com bugalhos, o ser com o não-ser, uma coisa com outra. Descartes instala um falso dualismo ao pensar Deus, o administrador do mundo, como algo de mesma natureza que o homem e a sua razão que, bem empregada, pode adequadamente prever e controlar as coisas. Condunde-se o pensamento-das/nas-coisas com a ação-sobre-as-coisas, diagnóstico que tanto Spinoza (ao pensar Deus não como res publica, como coisa pública, mas como natureza naturante) quanto Bergson (ao pensar em termos de Duração) já fizeram sobre essa tradição do pensamento que, ela sim, é confusa, ela sim confunde pensar com adequar(-se), pensar com o uso de protocolos e procedimentos "seguros".

Os estoicos já diziam do convertere, do dobrar-se, do verter-se, do criar-se um outro. Não é abandonar o Império que vai de encontro ao espírito (o que ainda mantém o falso dualismo cartesiano), mas, ao contrário, ser conselheiro do espírito do imperador (é Sêneca, o estoico político, como preceptor de Nero; é Sócrates e o seu amor por Alcibíades; é Platão em Siracusa). Estar ali como um "espião e cuidador de si", estar ali em duplipensamento, para usar uma expressão cara à distopia de G. Orwell. Os barões da mídia (chefes administrativos) e os donos da palavra "jornalismo" (as figuras de notório saber metodológico) são um e só sujeito transcendental; pensar fora deste esquema, "fora do eixo", é não entender, necessariamente, os espaços institucionalizados como os espaços privilegiados para a tomada de decisão, embora deles se nature (Spinoza) e se mature (Bergson).

Mas a questão, radicalizada, vai além: a noção de Cubo Cards dobra a ideia de capital e desmonetariza as relações de trabalho, tornando o Real uma segunda moeda, de segundo plano, moeda subvertida pelo coletivo FdE que investe noutras maneiras de viver que não as pautadas pelo dinheiro; a MN, para além de um grupo particular de sujeitos, é um modo distinto de se produzir informação e comunicação; a tal da "Universidade FdE", a despeito de ser constituída por pessoas e grupos e eventos específicos, constrói uma prática de produção de conhecimento à parte das universidades e dos seus departamentos e linhas de pesquisa. E isto tudo - Mídia NINJA, Univ. FdE, o FdE ele mesmo - sem abolir as mídias tradicionais, a Universidade padrão, a Economia Global etc. etc. O que está em pauta não é a defesa de cada um desses elementos, desses sujeitos e seus formatos, mas a iniciativa de se pensar um modo de fazer as coisas distinto do modo que já está aí, dado, e que sempre criticamos, hipocritamente, em nossos postos de trabalho. 

Numa entrevista realizada com Bruno Torturra pelo próprio Forastieri, o jornalista NINJA diz, a despeito dele e do produtor cultural Capilé, que "se estamos nos tornando personagens é porque a polícia, e a imprensa, está vendo a MN como uma pauta em si. Mas, insisto, nunca foi nosso plano. Estamos na rua para cobrir e passar a notícia. Não para ser a notícia." Assim como a mídia tradicional, ao perceber que era correr contra o furacão a sua tentativa de moralizar e criminalizar o "Junho de 2013", passou a querer coptá-lo, a dar-lhe sentido, visando sugar suas forças em pautas abstratas e insossas (a corrupção, o governo [municipal, estadual ou presidencial?], a PEC 37), a mesma foca agora a MN como a notícia nela mesma, como um personagem, uma celebridade, uma coisa, e não no que ela noticia e, mais importante, no seu modo de noticiar. A cineasta Beatriz Seigner causou um rebuliço quando, via Facebook, denunciou o FdE como algo entre uma seita, uma quadrilha e um centro de trabalho escravo, tudo isso articulado pela mente pérfida de Capilé, um canalha que capitaliza em cima de seu público e dos demais integrantes do FdE. Em resposta à postagem, Torturra escreve, em seu próprio mural, um texto que é a antítese da denúncia, uma defesa do Capilé/FdE e uma colocação real do problema, o de "gente em geral passiva, cínica em seu emprego, insatisfeita com o status quo, ao mesmo tempo salivando com a possibilidade de minar um laboratório de algo novo". O mesmo sujeito que enuncia que "temos de combater o sistema (econômico, midiático, educacional etc.) por dentro do sistema, sem abolí-lo" é o mesmo sujeito que não suporta o efeito de retorno dessa verdade e, no aparecer duma prática que minimamente "combata as coisas por dentro", sem, necessariamente, querer "abolir" nada, a conversa é logo alterada, criminosamente adulterada, fazendo com que até as iniciativas neste sentido sejam postas de lado na discussão (e na prática), numa iniciativa que, assustadoramente, mobiliza tanto a literatura jornalística da esquerda governista quanto da extrema direita.

Questão: o que a dobradinha Capilé-Torturra tem em comum com a trindade Assange-Snowden-Manning? O que a Mídia NINJA tem em comum com os Wikileaks? Resposta: o foco da discussão sobre eles está nos atores individuais, nas pessoas físico-jurídicas e suas atribuições pessoais, e não no que é exposto e noticiado por eles, nem tampouco no modo de exposição e noticiamento que poderia servir de incentivo e exemplo para outra maneiras de produzir o real. O contra-texto de Torturra, em verdade, é ele mesmo a indireta denúncia de que 1) uma coisa é o FdE, 2) outra coisa é o MN e 3) uma outra, ontologicamente distinta de ambas, é a iniciativa em subverter o conhecido, tatear o desconhecido e experimentar novas maneiras de criar e de viver. O dualismo Seigner-Capilé não é adequado para o pensamento (e sim para a ação de adequação, de encaixe e de resolução do problema). Atacar os indivíduos e seus grupos não deve ser confundido com minar o espírito criador que impulsiona tais iniciativas. Quando atacar o primeiro se confunde com o segundo - e o estado atual de coisas assim dispôs a realidade do FdE - faz-se necessário mudar as resistências e as estratégias de combate...

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O Estado não é uma reunião de almas individuais

Dona Selma Patrícia da Silva, lá da cidadezinha de Formosa, em Goiás, trabalha hoje como diarista. Nos últimos anos, fez curso de artesanato e de manicure, tirando uma renda extra das bonecas e adereços de pano que produz e vende nas feiras locais. Dona Selma, no entanto, vem aparecendo indevidamente na imprensa politiqueira como uma beneficiada que deixou espontaneamente o Programa Bolsa Família após melhorar de vida. Mãe de cinco filhos, também era beneficiária do Auxílio Gás e do Bolsa Escola, quando apenas fazia bicos como faxineira (e o marido como pedreiro). Assim que terminou a construção da sua casa, no entanto, devolveu o cartão que lhe garantia todos esses benefícios, gerando comentários que louvavam a atitude dessa senhora, honesta para com seus direitos e necessidades: "se as pessoas beneficiadas com esses programas pensassem e agissem como Dona Selma, tenho certeza que o Brasil melhoraria muito". Ora, uma análise política séria da situação não poria o seu foco em "uma senhora" e sim nas "1 milhão, seiscentas e noventa mil famílias" que, sem coerção alguma, abriram mão do programa assistencial. As reportagens e matérias se davam no registro do mérito do indivíduo, o que ocultava a verdadeira discussão, a da efetividade da política que abarcava o indivíduo, a Dona Selma. É mister pensar que o programa Bolsa Família - assim como outras fontes de subsídio, como bolsas de estudo e pesquisa ou mesmo a Previdência - faz parte do tipo de política que visa "melhorar o Brasil": o argumento "se a maioria dos beneficiários abandonasse o programa, [logo] o Brasil melhoraria muito" é falho, neste sentido, já que é justamente a inclusão dessas pessoas que faz parte do projeto de "melhora" e desenvolvimento do Estado nacional, que não deve ser entendido como uma reunião de almas, como uma pastoral que remunera individualmente os homens de boa vontade. A questão implicitamente levantada é uma outra, a de famílias que já ultrapassaram o limite de 140 reais por pessoa e continuam se apropriando de dinheiro público indevidamente. É um problema sério e legítimo, de fato, mas é difícil acreditar que o "problema do Brasil" se resuma a pessoas de baixa renda que consomem bolsas e recursos públicos "sem necessidade". E, mais insensato ainda, chamar a isso de "corrupção". O miserável que se apropria de uma política do Estado para benefício pessoal nunca pode ser equivalido a um promotor de justiça que utiliza do código penal para criminalizar um jornalista que lhe escreve denúncias verídicas, a um senador dono de terras e de gado que discursa pela aprovação de um PL que - a despeito dos danos severos ao meio ambiente e às comunidades - beneficiará os agropecuaristas ou a um professor que vota numa reunião do seu departamento para que a verba de suporte aos docentes seja direcionada a modelos de pesquisas semelhantes à que ele atualmente desenvolve. O pobre é o maldito esquecido pelos direitos constitucionais, o marginal que não foi coptado pela lógica geometrizante da modernidade e que não participa da partilha dos benefícios do Estado. Como pode o marginal corromper um sistema cujo funcionamento não lhe engrena nada? Como pode corromper uma estrutura da qual não faz parte, da qual não compõe parcela? A lógica do Estado é fazer movimentos que fortaleçam a sua própria organização, sua própria alma, uma alma que não habita o corpo do marginal. Dizer que um programa de subsídios e assistencialismo é "dar o peixe ao invés de ensinar a pescar" torna-se argumento inválido quando se percebe que o rio tem um dono. A pescaria, para quem não tem vara, não tem barco, não tem alma e tem fome de peixe, é apenas violência e exclusão. O peixe recorrente não é esmola, e sim possibilidade de participar do jogo, da "alma do negócio". Mas é ingenuidade, é quase maldade, achar que se o marginal comer o seu peixe, ganhará, de sopetão, a sua fagulha de alma (e, paralelamente, um barquinho semi-furado para minimamente se aproximar do centro do riacho e uma varinha mirrada para dali tirar o seu "sustento", já que em terra a coisa tá difícil). Peixe não é hóstia, assim como o Estado não é uma Igreja das almas. Há aqueles que se acomodam com a sua cota diária de sardinhas e nem pensam em ir pescar? Sim, há. Existem os que não mais precisam do peixe dado, mas que continuam a reclamá-lo? Com certeza. Mas o marginal que decidiu por não mais pescar não está, necessariamente, "fazendo nada" (cabem coisas por demais, nesse "nada"). E o marginal que, mesmo aprendendo a pescar, continua recebendo a sua peixada, não é um corrupto. É, antes de tudo, alguém que, com a memória dos tempos de fome e repressão ainda cravada no ventre, sabe que é estrangeiro nessa ilha de pescadores, e que nenhum sacramento pode redimir um corpo que nasceu e cresceu vazio de alma. E de peixe.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Spinoza, o economista

Proposição: Uma renda universal e incondicional como "direito" - e não como "esforço de inclusão" - a todo e qualquer indivíduo.

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Corolário 1: Segue-se, daí, que a renda básica se desvincule do emprego.

Corolário 2: Segue-se, em segundo, que o emprego (formal) se desvincule do trabalho (atividade diária que, mesmo a mais simples, participa indiretamente da economia).

Corolário 3: Segue-se também que não se trabalhará para receber dinheiro, mas, ao contrário, se trabalhará pois já se o tem.
Escólio 1: ...o que não desinstalará a opção ao emprego assalariado.
Escólio 2: ...o que não desinstalará ou substituirá subsídios específicos (como bolsas de estudo e de combate a pobreza) ou o sistema de seguros (aposentadoria, previdência etc.).

Corolário 4: Segue-se que o indivíduo, não mais determinado a trabalhar por forças alheias, torna-se livre.
Escólio: ...o que define o indivíduo não como uma substância racional ou outra generalidade abstrata, mas como uma singularidade, uma composição sem limites.

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Objeção 1: "Mas seria impossível financiar"!
Demonstração: Pegue-se, a título de exercício, a renda disponível oriunda dos impostos diretos dum Estado Nacional qualquer (após o pagamento dos benefícios sociais e afins) e divida pelo número de pessoas (aí inclusas as crianças). Para um exercício de pensamento menos radical, pode-se trabalhar no registro da "linha da pobreza", garantindo ao menos uma renda incondicional "suficiente" [noção que merece ser mais discutida] para a população. Além disso, outras fontes de recursos podem ser consideradas, como a criação de novos impostos direcionados (um aumento da taxa sobre o consumo, impostos sobre patrimônios, taxas para grandes riquezas, taxas para especulação etc.), assim como um corte específico n´alguns gastos públicos (redução no salário dos representantes, anulação de algumas das suas muitas concessões etc.).

Objeção 2: "Mas daí o assalariado bancará a vagabundagem de quem não quer trabalhar"!
Demonstração 1: Ver Corolários 1, 2 e 3.
Demonstração 2: A renda universal incentivaria e traria reconhecimento às atividades desenvolvidas fora do mercado, além de permitir que as pessoas pensem e desenvolvam projetos por si mesmas - independentes de referenciais acadêmicos e retornos mercadológicos, ambos quase indistintos - já que está suspensa a obrigação de "trabalhar para viver" (e o seu gêmeo, o "viver para trabalhar").

Objeção 3: "A renda incondicional, juntamente com os impostos e taxas que lhe sustentam, não pode ocasionar um aumento dos preços e dos produtos, tornando insuficiente essa mesma renda incondicional? E, mesmo que não ocorra um aumento dos preços, as empresas não podem compensar o aumento das taxas sobre elas com a redução do salário de seus empregados?"
Demonstração 1: Sim, isso é não só possível como esperado e mesmo desejado. No entanto e assim sendo, ocorrerá aos poucos uma passagem das relações de troca que envolvem a mediação dos indivíduos pelo Mercado (relação mediada pelo capital) por modos de se estar juntos mais informais, ou melhor, modos cujas formas se produzem na singularidade da própria relação que os constitui.
Escólio: ...o que operará a passagem duma sociedade que justifica a violência através do contrato para uma comunidade que se sustenta através dum jogo de amizade coletiva cujas regras não são dadas de antemão.
Demonstração 2: Ver Corolário 4.
Escólio: ...o que marca a diferença entre liberdade (um projeto ético sem etapas, cadeias de razões ou desenvolvimentos progressivos, que visa harmonizar os indivíduos às necessidades que lhe são próprias) e livre-iniciativa (a versão moderna e repaginada do livre-arbítrio, duma ruptura decisiva e definitiva, do repente da vontade que decide, por si mesma, passar da servidão à liberação).

Objeção 4: "A passagem de uma sociedade mediada pelo Mercado para uma comunidade que privilegia as relações singulares não desinstalaria, conjuntamente, outras instituições que compõem essa mesma sociedade, como a escola, o exército, o sistema hospitalar, as políticas de bem-estar social, e mesmo outras instituições mais sutis, como a família, a sexualidade ou a espiritualidade?"
Demonstração: Não, já que a passagem da sociedade à comunidade não equivale à passagem de um indivíduo a outro, mas de um modo de ser deste indivíduo para outro modo, a comunidade entendida como um modo de relação singular intestino à própria sociedade, e não como um alheio à sociedade. A passagem não desinstalará as instituições, mas apenas dará às mesmas, e aos indivíduos que lhe constituem, a potentia de agir, a libertas para perseverarem em seu próprio ser, e não mais se verem dominados por paixões que não lhes são próprias. Ver, mutatis mutandis, os Corolários 1, 2, 3 (com seus correspondentes Escólios) e 4 (e seu respectivo Escólio).

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Apêndice 1: Spinoza recomenda que seus possíveis interlocutores se inteirem do assunto - ou, ao menos, entrem no espírito dessa brincadeira conceitual - antes de elencar outras Objeções, que, de fato, devem existir aos montes e ser enunciadas.

Apêndice 2: Objeções de estrutura semelhante a "isso é coisa de gente feia, boba e chata" serão desconsiderados pelo Spinoza economista.

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sexta-feira, 17 de maio de 2013

Platão e a tal da "Bolsa Viciado"

À título de esclarecimento, a "Bolsa Crack" e o já há muito instalado Auxílio Reclusão não são um fundo de recursos e investimentos para o drogadito/recluso, e sim para a sua família, caso o mesmo se configurasse como provedor da casa; além disso, não é todo drogadito/recluso que tem acesso a tais "bolsas" e "auxílios", mas apenas aqueles que já contribuíam com a Previdência; para mais além, o dinheiro de ambas as fontes - tanto o da "Bolsa Crack" quanto o do Auxílio Reclusão - não podem ser gastos em qualquer coisa, devendo ser contabilizados e fiscalizados pelo Estado. Ainda assim, o reacionário  ressaltará - achando que sua fala se trata de um argumento legítimo e que contribui, efetivamente, para a discussão em voga - que todos os dias acorda cedo, pega transporte público lotado, viaja até o seu local de trabalho e que, sozinho e sem bolsa ou auxílio algum do Estado, sustenta sua família com o pouco que lhe sobra após todos os descontos que este mesmo Estado faz em seu salário; caso venha a se acidentar e mesmo a falecer, discursa que sua família não vai receber nenhuma mãozinha do Governo; e, se receber, pode ser que se limite a um mísero salário mínimo. Ele, logo ele que "trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua", e estuda, e paga imposto, e leva uma vida digna e descente, ele, por que logo ele teria de ser responsabilizado (ainda mais) por atos inconsequentes alheios? "O Estado que se vire pra combater isso de maneira que não venha a onerar ainda mais o meu custo de vida", pensa o reaça. Numa virada espetacular, termina a sua narrativa em tom catastrófico e alarda a todos sobre o aumento da impunidade neste país de merda ou sobre a capacidade de aporte de recursos em decadência no INSS. Depois de apresentar seu senso-comum econômico travestido de bom-senso, esperneia para que o Brasil acorde e perceba a incoerência que é levar adiante essa "Bolsa Viciado"!

A envergadura dos seus argumentos: "eu acordo cedo..."; "eu sustento minha família..."; "eu que levo uma vida digna e decente..."; "O Estado que se vire..."; "que não venha a onerar ainda mais o meu custo de vida" e variações do mesmo tema. Não se está em discussão a pauta, creio, de quem merece o Reino dos Céus e paraísos afins. Política pública não é meritocracia e não pode ser discutida em termos individuais. O Estado, qualquer que seja ele - democracia representativa, monarquia parlamentar, comunismo de Estado etc. - não é nem deve ser o resolutor dos problemas de um e de outro indivíduo que o compõe, mas é, ele mesmo, o princípio de organização de um povo, o seu modo de se gerir e de se estar junto. A Razão de Ser do Estado é, apenas, manter o próprio Estado, e toda discussão política pós-Maquiavel é burra se ignora tal premissa. Toda política pública visa a população - seja em sua totalidade, seja em algum subconjunto específico (uma população ribeirinha, a população indígena, a população de estudantes de colégios públicos etc.). A população componente do Estado, no entanto, não é nem pode ser entendida por esse mesmo Estado como uma reunião de indivíduos que merecem benefícios porque são boas pessoas, mas é entendida como ordem, como princípio de manutenção e de organização do corpo e da vida que esse corpo carrega. Argumentos de cunho pessoal são apenas opinião e devem ser postos longe de uma política democrática, do demos, o que já é sabido desde Platão (que leva esse pensamento ao limite e faz equivaler demos e doxa, desistindo de vez de sustentar a democracia em Atenas, corroída de blá-blá-blás e partidarismos). Se se milita a favor do aborto, por exemplo, não é porque se acha o aborto uma coisa legal, uma coisa boa, do "bem", mas sim porque o aborto tornou-se um problema - não de um e de outro, nem de muitos, mas um problema público - um problema que está afetando a manutenção desse princípio de organização a que chamamos de Estado, e regulá-lo torna-se uma necessidade para que se possa manter a porra toda funcionando, mesmo com as objeções dos templários da família, dos paladinos da tradição e dos defensores da civilidade (que diferem daqueles que, de fato, argumentam sobre os possíveis malefícios da legitimação do aborto no cenário brasileiro). Idem para a "Bolsa Viciado". Contra o aforismo de que o brasileiro apoiador dos auxílios de Estado precisa "se ligar" ou que ele terá de "arcar com mais esta conta", é-se facilmente colocado que já estamos a pagar o preço de investirmos numa vida individualista e meritocrática. Ou se acha, de fato, de verdade, que o problema do crime, da drogadição e da miséria em geral são devidos tão somente ao mau-caratismo de sujeitos individuais?

O reacionário percebe a envergadura do seu braço, perna, do seu corpo e da sua mente, e o estado de esgotamento que fica ao final do dia, e percebe, paralelamente, que mais da metade do que seu trabalho produz é tomado pelo Estado com a suposta intenção de devolver o tomado em serviços que ele não vê. "Ora", objeta, "se eu não tenho um Estado também por mim então que se foda o Estado"! Um grito potente de anarquia, que seria minimamente efetivo se o próprio levasse sua dor à sério, ao extremo; o reacionário encara os discursos que lhe são contrários (mas que intentam lhe acudir) como conversinha barata de quem não labuta, de quem só estuda, de professorzinho que vive de suas abstrações, de intelectualzinho que vive de sua bolsa, simples papinho teórico e academicista que, embora bonitinho, é irrelevante do ponto de vista pratico, visto que não vivemos numa sociedade de direitos mas numa sociedade de obrigações e injustiças, o reacionário não achando certo que o homem-de-bem pague as despesas da vagabundagem. "Preso e drogado", continua, "tem que se foder e trabalhar e se tratar pra se sustentar e assumir as bostas que fazem; ao Estado, cabe combater o tráfico e o crime arduamente e com rigor, e fornecer condições para o 'tratamento' dessas pessoas, e não ficar dando calabocas e alentos com dinheiro público". Quem achar ruim o que ele diz que banque sozinho do próprio bolso os "coitadinhos dos presos e drogaditos".

Responder com cuidado e respeito acerca do que objeta um reacionário é uma ação sem garantias de retorno, já que o mesmo não argumenta em cima do que se fala, já que o mesmo não é justo com o interlocutor e martela infinitamente nas mesmas teclas, as do esforço individual e do méritoe ignora os argumentos que o seu adversário elenca com simples desprezo, com o clássico "nada a ver isso aí que você falou". Ignora se, de fato, o que lhe foi enunciado procede, ao menos minimamente, já que seu inimigo de ideias está operando noutro registro que não o do eu, está instalado num outro Estado que não o da punição e o da vigilância, e tenta, no mais das vezes, desarticular o discurso inimigo não incidindo sobre os argumentos que o sustentam, mas atacando o sujeito do seu enunciado (ou seja, o seu outro, o seu inimigo). O diálogo só tem início quando as partes da dialogia sabem que não dá para confundir discussão de foro público com muro das lamentações, e que não ganha aquele que mais merece, que mais sua, que mais batalha, mas, numa discussão, sai vitorioso o argumento que mais faça sentido - e isto na prática, e não só na retórica academicista - e pelo qual todos saem ganhando.

O outro sofisma reacionário típico, o de qualificar o discurso do seu outro como "papinho teórico e academicista" e opô-lo à vida de verdade, à vida da prática, como se o que se diz - e o que se luta, nos espaços que convém lutar por isso - não quisesse ou intentasse, isso sim, ser prático, ser um modelo para a prática, e não só uma conversinha de Facebook. A crise da democracia na Atenas de Platão tem como adversários o demos (imerso em doxa), os jogos políticos secretos dos partidos e confrarias esotéricas (daí a verdade democrática ser uma alethéia, uma não-ocultação) e, principalmente, a retórica (o sofista como aquele que percebe que a verdade pode ser substituída por uma performance, capaz de articular tanto o demos na praça quanto os aristoi e oligoi nos espaços públicos de tomada de decisão); o reaça, acuado em seu excesso de ego, de "argumentos" aritméticos que apelam para a dor e o prazer pessoais, faz uma inversão no esquema platônico e acusa o seu interlocutor de retórico, de abstrato, de acadêmico, sendo ele, agora, na encarnação atualizada do demos ateniense, o defensor da verdade e do discurso filosóficos através duma série de performances que privilegiam os oligoi e os aristoi de hoje (barões da mídia, banqueiros, empresários, especuladores financeiros, membros do judiciário). Se cito Platão mais uma vez, friso que não é por pedantismo ou por usar de argumento de autoridade para sustentar um discurso, mas para mostrar que esta mesmíssima conversa entre o político defensor da politéia e o retor liberal partidário da vitória do mais forte, em sua estrutura, já aconteceu a quase dois mil e quinhentos anos atrás, e atravessa toda a dialogia que funda o platonismo.

O ponto pelo qual a conversa deveria se dar é um outro, esse sim o verdadeiro problema que aparece nas orações do reacionário, que é a descrença em relação à sociedade de direitos (a que chama de "sociedade de obrigações e injustiças"), descrença em relação ao Estado, à política formal, aos nossos representantes etc. Também partilho dessa descrença com o reacionário. Mas não creio que jogar nos termos dessa injustiça - "tá tudo corrompido, então que se dane quem já está se fodendo nessa história toda" - seja o melhor estratagema. Seria como jogar gasolina para apagar um incêndio ou, numa metáfora ainda melhor, tomar analgésicos para curar uma dor de cabeça causada por um tumor cerebral. Também acho o nosso Estado corrupto - nosso Estado, em verdade, é um Estado ainda embrionário; nunca tivemos um Estado forte e disciplinador como o da França ou o da Alemanha, por exemplo. Mas aboli-lo seria acabar de vez com as políticas de bem-estar social que ainda funcionam e ficar à mercê de outra força que, essa sim, é ainda mais danosa: o Mercado. O que o senso-comum da política propõe, implicitamente, é algo que, em Economia, se chama anarco-liberalismo ou anarco-capitalismo, um sistema de trabalho sem um Estado para regulá-lo (ou sem um Estado para "atrapalhar tudo", nos termos do próprio). Se a proposta do reacionário não se tratar disto, de uma suspensão dos Estados nacionais, a única alternativa lógica seria a de melhor regular o próprio Estado, torná-lo menos corruptor e coptador, mais funcional, mais pragmático, regular o próprio atrator das regulações, discutir os próprios termos nos quais a discussão se apresenta. E percebamos, aí, que a história e o problema mudam completamente de tom, e isto dentro do próprio problema colocado pela esteira reaça.

Entretanto e de fato, não estamos num Estado forte e bem-estruturado; pedir que o sistema de direitos funcione como uma meritocracia seria o mesmo que lançar todos os constituintes para o fogo do Mercado, no qual a exploração (ou, como dito, "a sociedade de obrigações e injustiças") seria ainda mais brutal, descarada e justificada. Não mais a gasolina no fogo, mas o próprio corpo servindo de combustível a essa máquina - não mais pública - que nos consome. É sempre bom atentar que tudo que é identificado pelo reacionário como dano advindo do Estado só o é devido às suas filiações com o Mercado (o Estado como um braço do Mercado Mundial). "Acabar com o Estado" só faria sentido se se acabasse, antes, essa lógica mercadológica que, ela sim, nos esgota e nos oprime. Desinstalar o Estado sem desinstalar o capital seria pular da frigideira para o fogo. Em verdade, na melhor das hipóteses o reacionário confunde "combater o Estado" com "mudar as suas leis", entendendo esse combate como uma reforma política, uma reforma do Estado. O discurso político-econômico do senso-comum ora desliza para uma regulação extrema do Estado sobre a sociedade civil (ditadura de Estado) ora desliza para uma suspensão do Estado, que "só atrapalha" o ímpeto meritocrático da Vida Liberal (anarco-capitalismo). Desinstalar o Estado, todavia, equivale muito mais a demolir a casa que a reformá-la, consistindo na discussão dos termos da política em sua positividade, e não no simples policiamento das velhas questões instituídas de sempre: "como relacionar um Estado de Direitos com um Mercado Liberal?" "como pode a Sociedade Civil ser representada pelo Estado?" "como pode a Lei prever e controlar as relações e os litígios entre os homens?". Ao invés de responder tais questões, ou mesmo reformá-las, deve-se deixá-las de lado e construir conceitos que apreendam os problemas da política em seu cerne; antes de tentar superar Platão e o Estado, é mister perceber que nunca fomos platônicos, que em momento algum já operamos um Estado democrático e que, parafraseando um famoso livro, "jamais fomos modernos", já que a condição da democracia é o governo do demos pelo demos, e formalização estatal alguma pode acompanhar as deambulâncias da feira cínica e da praça socrática, a democracia enquanto anarquia. Superar o Estado só faz sentido se expurgarmos todas as suas noções correlatas: sociedade, representatividade, trabalho, parlamento, movimentos sociais, previdência, código penal. A anarquia, quando deixa de ser analisada como o negativo do Estado, não é mais confundida com o caos, o nada e a barbárie, e passa a ser a condição para que a política efetivamente falando possa se desenrolar, a política agora entendida como a luta pelos termos da própria política e a discussão sobre os termos da própria discussão, seja tal política intestina a um Estado de Direitos ou não.

domingo, 28 de abril de 2013

"E se fosse com você?"

Dando continuidade à série "comentários escrotos a favor da redução da maioridade penal", é visível o quanto o sujeito do enunciado finge confundir justiça com vendetta na sua proposta de reforma penal. "Se fosse comigo", sou levado a responder, "ficaria infantil e egoisticamente injuriado, furioso e sedento para que o filho da puta pagasse, de alguma maneira, pelo que me fez passar". Certo; mas daí afirmar que a minha meninice de "dar o tapa de volta" possa ser o fundamento e o modelo para a organização da sociedade civil e de um Estado de direitos é forçoso demais. Em verdade, o que se quer neste movimento de equivalência da vingança (aritmética) com a justiça (justeza, geometria) é infligir num outro a mesma violência que recebemos deste mesmo outro, e isto sem que recebamos efeito de retorno algum, sem que sejamos indiciados por isto e sem que corramos o perigo de sermos violentados de volta, já que, agora, a nossa vingança pessoal foi legitimada, foi transformada em política pública. O discurso inicial é a denúncia de que a redução da maioridade penal não é justa, e que o seu sujeito, sem-saber-sabendo, sem-querer-querendo, quer ser Rei, quer agir e fazer da sua ação a lei geral (um kantismo iluminista tornado monarquia absolutista). O indivíduo desejoso de ser o próprio Estado. Nunca a expressão "microfascismo" fez tanto sentido quanto aqui, quanto agora...

domingo, 21 de abril de 2013

"Tá com pena? Leva pra casa!"

Esse odioso "argumento" dos defensores da redução da maioridade penal possui um erro crasso e demonstra o quanto tal posicionamento é um imbróglio, um nó moralista que não intenciona pensar os problemas do Estado, da Sociedade Civil e da sua mal-colocada relação (o Sujeito e o Objeto da política), mas apenas manter as coisas como são, tais e quais, alocando o lúmpen da civilização aos lixões asilares que a própria civilização produz. A noção de "criminoso" não é nascida das relações diretas de um homem com o outro, mas sim um termo jurídico advindo do moderno código penal e de uma sociedade regulada por um Estado normalizador. Não existiram "criminosos", assim sendo, em nenhum outro momento da história anterior à modernidade. Sócrates, corruptor da juventude, não foi um "criminoso". Se o indivíduo (outra noção moderna) é coptado como "criminoso", é porque o próprio Estado já o identificou como figura que atenta o bem, a ordem e o progresso, logo, o próprio Estado: foi Platão o primeiro a identificar a geometria espacial com a ordem social, e esta com o bem, o belo, o justo, o verdadeiro, sendo todas as demais maneiras de se organizar a vida e de se estar junto identificadas com o caos, o nada, o não-ser; essa "torção platônica" dura até o hoje, ao que parece. Ser "criminoso" é ser obrigado a passar pelo crivo institucional da penalidade e do encarceramento, punições típicas da sociedade francesa desde o século XVII - as tais lettres-de-cachet - mas que, todos sabemos, não "reformam" nada. Logo, não posso levar o "criminoso" para minha casa, pois a própria noção de "criminoso" - criação via Estado - o obriga a ser condenado numa instituição asilar, assim como o filho mal-criado é obrigado a passar uma temporada trancado em seu quarto. Não posso nem devo, insisto, "levar pra casa", pois o "criminoso" é um problema "do Estado", "do Social", e não individual, subjetivo, um problema de um homem com o outro. Resolver problemas que são da esfera do Estado e de suas instituições pela via individual é crime, inclusive. Não é uma questão de "pena", mas de pactuar devidamente com a própria lógica do Estado. Não é um "problema meu", mas um "problema nosso", nosso enquanto estrutura geométrica e organização social regulada por um terceiro (o tal do Estado). O curioso é que a investida de "mandar levar pra casa", além de anti-lógica, é anti-estatal, e advém dos que ainda defendem e professam a sua fé no Estado, na ordem e no progresso. Os mesmos que, mais curiosamente ainda, dizem que "o Brasil não tem jeito" ou que "na política, só tem ladrão". É difícil - mais que difícil, a maior das dificuldades da retórica - argumentar com um pombo enxadrista.

sábado, 20 de abril de 2013

Música Nova

Frente ao adágio que diz que toda e qualquer música é a combinação sequenciada de 12 notas sonoras (ou que todo e qualquer texto é a combinação sequenciada de 26 letras, ou que toda pintura é a combinação de 7 cores e suas nuances numa tela etc.), objetar-se-ia com músicas microtonais, músicas que mandam para os infernos o sistema cromático de notação musical e suspendem, por um segundo que seja, toda a tradição sonora na qual os nossos espíritos foram modulados. Seria o equivalente a escrever usando de letras que não possuem correspondência no alfabeto, de jogos de palavras que não nos mobilizem exemplo algum e de expressões que não tenham referência outra que não elas mesmas, ou pintar com cores duvidosas, entremeadas entre o vermelho e o amarelo do sol no horizonte, o azul e o verde do mar profundo. Franz Kafka escreve em alemão como quem pragueja, como um burocrata, como um judeu, escreve em alemão como um não-alemão; Milan Kundera dispõe a sua literatura e desenrola a vida insustentavelmente leve de Tomas e Teresa (e Sabina e Franz e Karenin...) como quem faz filosofia. Para comentar a frase inicial de que tudo se resume às tais "12 notas" - o que equivaleria a dizer que o pensamento (musical, literal, pictural etc.) demanda sempre condições estruturais e bem formalizadas para se manifestar - a Crítica da Razão Pura tomada por Código de Direito Penal - nem é preciso chegar ao microtonalismo (a radicalidade desta discussão, o xeque-mate do sistema serial). 

Antes mesmo de Schoenberg (o atonalismo, a escala cromática levada a seu limite) ou de Pierre Boulez (o microtonalismo efetivamente falando), Claude Debussy já nos dava a ainda mais absurda lição - tanto em sua música quanto em sua literatura - que a nota Dó de uma oitava, por exemplo, difere do Dó da oitava seguinte, do Dó uma oitava acima. Só são "a mesma nota em oitavas diferentes" pois já nos acostumamos - tanto individual (ontogênese?) quanto historicamente (filogênese?) - a dividir o continuum do som em pacotes de 12. Se é duro educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal como música, é ainda mais duro educar o ouvido para conseguir distinguir como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em oitavas diferentes (ou em timbres diferentes; como o violão e o piano, muito distintos, e o violino e a rabeca, menos distintos mas, ainda assim, com timbres distintos). Numa partitura, a variação vertical da nota produz alteração de tonalidade; a variação horizontal produz mudança de ritmo. Vale apontar, a título de nota e de experimentação, que uma micro-mudança de ritmo - mais sutil que a mais sutil das semifusas - é ainda mais difícil de captar do que uma micro-mudança de tonalidade. É tanto mais difícil de captar quanto, captando, mais difícil de entender, de compreender, de se fazer música com essas variações moleculares. De qualquer maneira, escapar dessa fenomenologia musical, segundo a qual uma música equivale à sua estrutura, à sua gestalt, é atividade muito mais difícil do que acostumar-se a atonalismo ou microtonalismo ou microritmismo.

Para elucidar o pensamento musical de Debussy, é interessante lembrar de Victor Borge, o humorista-pianista, fazendo uma brincadeira ligeira com a sua Clair de Lune. Assim que começa a interpretar a suite, e embora as notas estejam certas e a platéia reconheça a música imediatamente, fica-se logo com a impressão de que "tem algo errado". Depois das pantomimas do maestro, todos percebem que ele estava a tocar a música uma oitava acima. Essa verdadeira aula de Borge reflete bem a música e a teoria musical debussiana: o que ocorreu não foi a mesma música executada uma oitava acima, mas sim uma outra música! A experiência musical é distinta, é uma outra, ainda que, "aparentemente", fenomenologicamente, pareça se tratar da mesma coisa. O mesmo se dá para uma música que, por exemplo, foi composta para o piano e está sendo executada num violão (variação no timbre). Debussy diria que não é a mesma obra pianística interpretada no violão, mas, isso sim, uma outra música, uma outra obra, ainda que as notas sejam exatamente as mesmas. Aí está o caminho das pedras: entender que "Clair de Lune ao piano" e "Clair de Lune ao violão" são experiências distintas, são músicas distintas, é algo mais difícil de exercer do que preparar o ouvido para o atonalismo e para o microtonalismo (e mesmo para o microritmismo). Noutros termos - e repetindo o já dito - é difícil educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal/microrítmica como música, mas é ainda mais difícil educar o ouvido para conseguir distinguir e entender como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em escalas ou timbres diferentes.

É mister não encarar a tal da "experiência musical" como algo subjetivo. A mudança de uma oitava para outra ou uma alteração de timbre, além de possuírem um correlato mensurável, é uma mudança tão violenta para a música quanto a alteração de seu ritmo ou de sua tonalidade. É nisso que Debussy insiste, quando toca a sua música: por que se diz que a alteração objetiva da tonalidade e do ritmo de uma sequência de notas produz uma outra música, enquanto que para outras mudanças - como alteração do timbre ou da oitava em questão, igualmente objetivas - diz-se que é da mesma música que se trata? Duas experiências: escutar Libertango com o bandoneon do próprio Piazzola, acompanhado de Yo-Yo Ma destruindo um violoncelo; e escutar um qualquer tocando o Libertango num solo simplificado de violão. Debussy não diria que são duas interpretações distintas da mesma música, mas duas músicas distintas, ainda que reconheçamos a mesma identidade nelas, o mesmo fenômeno.

Fugir da tal fenomenologia musical é a mais brutal das asceses da escuta que se pode praticar, já que não se resume a preparar o ouvido para outras "identidades musicais", outros estilos ou outras "coisas", mas se trata de erradicar a consciência da música, de expurgar da mesma a humanidade, e nela encontrar, como já tinha colocado o próprio Beethoven, as condições para a superação heroica de si  mesmo e do mundo no qual se está. O menino-exemplo de Husserl a escutar uma orquestra no disco riscado entra sem querer no jogo programático do sujeito-ouvido e do objeto-música e logo identifica a obra como sendo a mesma coisa que escutou numa ocasião passada ou que leu numa partitura. Ora, realmente se acredita que essas experiências se identificam? Se sim, mantém-se a consciência como dativa do sentido do mundo e, mesmo a contragosto de Husserl e da sua fenomenologia, o homem é um ser que representa a realidade. Caso contrário, se está a investir numa música sem intérprete nem compositor, sem gravação nem mixagem, uma música sem músico e sem ouvido, sendo a consciência - tonal, atonal, microtonal - efeito de suas práticas, fruto de sua atividade e criação de suas criações. O convite está lançado: ou a análise é focada no "sujeito que faz música", o tal do intérprete, o tal do compositor; ou se foca na música em seu amadurecimento criador, produtora de obras musicais, de músicos, de técnicas, de tecnologias, de instituições, de jogos políticos, de história, a música imanente à vida e a vida em notações musicais - venham elas em 12 ou não.

sábado, 30 de março de 2013

Escrita Nova

Escrever não é representar uma realidade (um idealismo insosso) nem, tampouco, apontar um estado de coisas (um realismo ingênuo), mas sim montar uma armadilha para o leitor, é planejar acidentes (e não essências), é montar um alçapão de enunciados, ainda que ninguém dispare o mecanismo subcutâneo da palavra estruturada. Escrever é um ofício semelhante ao do marujo que não leva o tesouro consigo – não consegue, é grandioso demais – mas rabisca e marca xis num papelão velho a habitar garrafas; tudo isso para que seus convivas refaçam sua caminhada trôpega e povoem a ilha deserta na qual habita solitário. Contemporaneamente, ler não é perceber o ambiente (input), processar a informação (loading...) e emitir a resposta (output); o homem só "funciona" em fenômeno e aparência; não se trata dum organismo, dum conjunto de órgãos, a sofrer influências do fora, do alheio, do outro, nem se trata, igualmente, do interacionismo de um sujeito pronominal com o predicativo mundo dos objetos, ambos já postos de antemão, mas duma terra que suporta (dá suporte) e condiciona (cria condições) a ambos. Na escrita, o Eu do autor se desdobra em inúmeros Tus, Nós, Eles, e mesmo, e principalmente, em orações sem sujeito algum. Resta a ação, a retórica a-gramatical, a anti-escolástica, o verbo puro. 

O ato de escrever pode ser pensado como uma escultura da fala. Cansado de repetir a mesma ladainha para outrem, o falante inventa a escrita e eterniza seu discurso numa superfície de impressão. Sobrevivência, adaptação e necessidade. “O que quis dizer o autor?”, perguntamos. Uma escrita que simula a fala, porém, perde a sua própria especificidade, a sua potência criativa. Quando a invenção se dá num sistema fechado, num contexto determinado, esse elemento transviante deve manter algum tipo de semelhança com o conjunto originário para dele não ser expulso. Desta forma, em suas respectivas auroras, a escrita surge como cópia da fala, a fotografia como instantâneo do momento, o cinema como imitação da percepção natural, e por aí se vai. Tais invenções, no entanto, acabam ganhando autonomia em relação ao seu chão originário, e se tornam, potencialmente, falsas. A escrita monta jogos de palavra que a fala mesma não suporta; a fotografia pode objetivar instantes que não possuem correlato no real; o cinema opera, através da câmera móvel e dos procedimentos de montagem, imagens irreais. Com uma ferramenta que se tornou “inútil”, tornou-se arte e despregou-se do mundo, calcam-se os caminhos para a criação dum outro real, duma outra terra, doutros suportes e doutras condições, atualmente “desnecessárias”, “desajustadas” ou, mesmo, “perigosas”. 

A linguagem, pensada como o dedo-significante que aponta para a lua-dos-significados, não dá conta do solo natal (que não é o solo pátrio, a bandeira já fincada) dos discursos, solo em constante redefinição de fronteiras, solo plural, inominável, como diria Samuel Beckett. Devemos, então, calar as nossas escritas, quer elas ganhem ou não o papel? Decerto que não. Devemos adotar uma estratégia linguística oposta. Escrever, falar, gritar, gaguejar, ainda que sobre a impossibilidade de se falar “das coisas”, “sobre o mundo” e “para outros homens”. Beckett já relacionava, em seus roteiros, a linguagem com um de-fora da linguagem, fazendo brotar na platéia o silêncio, que não é o silêncio do conjunto vazio, mas antes a produção do invisível e do inaudível, num estilo produtor de visões e audições puras – para lá com o esquema sensório-motor! – que esburacam as palavras, os signos, as intenções, as respostas. Outro dramaturgo, Carmelo Bene, insistia em conceber as peças de teatro como ensaios críticos. O que se critica? Em seu Romeu e Julieta, é Shakespeare o criticado? Não necessariamente. Bene critica por amputações: amputa Romeu da peça original e deixa a história correr adiante, deixa o sistema rodar e transladar sem o seu sol, produzindo corpos mutilados a tal ponto que não sabemos mais se são já o organismo sem alguns de seus membros ou o membro ainda pulsante desprendido de sua unidade biológica. Pedaços costurados noutros pedaços, gerando vida e movimento. 

Filosofia Frankenstein, pensamento ciborgue, escrita revolucionária, uma escrita em pedaços, uma colagem de fragmentos, uma montagem por falsos raccords, uma bomba de estilhaços, uma composição, várias trilhas, temas, tonalidades, trinados, se confundindo, se amarrando, dando nós, fazendo contraponto uns com os outros tal qual cravo barroco. O encadeamento lógico cede passagem ao pathos, a demonstração conceitual dá seu lugar à visão direta e o modelo da verdade totalitária desmorona frente às potências do falso como devir, expressão que tomo emprestada (mas sem devolver; roubo consentido) de Gilles Deleuze. Cada um dos pedaços que compõem a escrita - letras, palavras, frases, orações, parágrafos, livros e obras inteiras - tem uma alma sua, toda sua, está repleto de divindades (pilho Heráclito, desta vez) mas, embora existam em independência e possam ser lidos em separado, é em conjunto que podem ser melhor apreciados, como os diversos movimentos duma sonatina ou, ainda mais preciso, como o material para que novas lógicas e novos sentidos possam se dar em relação aos mesmos pedaços (o bibliotecário de Babel, de Borges). Cada pedaço pode ser analisado, dissecado, anatomizado dentro de si mesmo, mas é apenas em relação e acúmulo com os demais - sejam os demais pedaços dispostos pelo escritor numa mesma superfície de inscrição, sejam por outros pedaços já lançados ao mundo - que revela sua grandeza ou, antes, a sua miudeza, o seu sabor fugidio, sua obviedade. Potencializar o óbvio é exatamente o trabalho realizado por um Monet ou um Renoir, é o momento inicial de uma arte que desiste de pintar a realidade e passa a criar impressões puras. O mesmo se dá com a filosofia bergsoniana, pensamento que exalta a inteligência representativa e utilitarista, mas apenas quando banhada nas águas vivas da intuição, da vida e de seu movimento.

A linearidade da escrita operada pelo sujeito escritor é a falsificação do processo criativo, disruptivo, caótico e inumano que lhe originou (a escrita e o escritor). Um artigo científico, um capítulo de romance, um movimento musical, uma obra qualquer é a confluência de diversos outros pontos que bancaram sua existência. A escrita é um ponto cristalino duma rede de efervescências. E não opero com metáforas, aqui. Que é uma rede senão um monte de pontos e buracos? Se toda escrita é uma “trama”, se todo texto é já um hipertexto, é assim que o escritor comprometido com o devir da sua obra dispõe a palavra, respeitando os inúmeros nós (e tus, e eles...) que a constituem e seguindo o fio fino, o sprit de finesse pascaliano, que coliga uns nos outros e o outro no um. Cada pedaço que o escritor pede emprestado (mas sem devolver, friso) de outros escritores é utilizado como ferramenta; entra em cena, opera uma função e retorna à caixa para que uma outra ferramenta realize o trabalho específico que ela não dá conta e o trabalho geral que ela, sozinha, não concebe. Walter Benjamim, em seu Rua de Mão Única, não fia tão-só um texto-sobre-a-rua, mas um texto-rua, um texto tal qual uma rua, texto que nos coloca na rua. 

Pode-se argumentar que o escritor dos movimentos periga cair num hermetismo esotérico devido ao modo peculiar a que submete a escrita (ou, antes, o inverso; a que uma certa estética lhe submete): textos compactos, densos; sentenças aparentemente desconexas; argumentos mais imagéticos que lógicos; maior primor poético que gramático; uso de palavras diferenciadas e neologismos; uso de palavras comuns, mas com outro sentido diferente do prosaico. Os vícios de linguagem tornados virtude na pena do escritor revolucionário, que se afigura como uma alternativa política a uma escrita velha, "clara e distinta", que se refere, esta, a um algo em específico, que enuncia ordens, fundamenta verdades, diz de uma realidade já bem estabelecida, seja para o próprio escrevente seja para o mundo para o qual ele enuncia; o mesmo não se dá com a escrita nova. O texto revolucionário, ao invés de falar adequadamente das coisas que já existem, e antes mesmo de falar de "coisas que não existem" para um mundo que já está posto, fala com "uma fala que ainda não existe", uma fala que não é uma fala, escreve uma escrita que não é uma escrita, no intento de que o sujeito leitor saia de sua condição de mente racional, de "cérebro extirpado" - para usar a belíssima imagem do antropólogo B. Latour - e ganhe um corpo, e um olho, e olhe as modulações do mundo com esses novos olhos e esse novo corpo que ainda não se materializou por completo. O mundo a que a escrita nova se destina, ao contrário da escrita velha, não é o mesmo a que ela se refere no corpo de seu texto, no corpo de seu autor, já que este mundo referido ainda não existe. O estoico, já sabido dessas questões, não escrevia sobre o mundo e nem mesmo para o mundo; "escrevia-se", escrevia-se a si mesmo, tão somente (a hypomnemata). Sócrates, sem escrever, também já o sabia (a epiméleia heautoi e seu correlato cognitivo, o gnothi seauthon). Se a escrita velha pensa o texto como uma caixa do tamanho do mundo, uma caixa do tamanho exato do mundo, para ele adequada e para ele conter, a escrita da revolução é afetiva antes de cognitiva, criadora antes de burocrática, engrenagem antes de caixa. Antes de instruir o leitor, tomando-o de antemão como ignorante, busca-se com ele estabelecer uma parceria produtiva de um novo sentido para ele, que lê, para o mundo, a que se destina (mas a que não se refere) e ao virtual, mundo novo, a que sonha.