domingo, 17 de junho de 2012

Carta a um viajante

Sempre que o sujeitinho empreendia uma viagem se referia ele ao deslocamento da sua terra natal até um ponto de destino, seja este qual for. A viagem equivalia ao movimento de saída, à própria caminhada daqui até ali, aos ventos no rosto, a chuva que assolou a caravana, os assaltos que a comitiva sofreu, a fome, a sede, o choro, o riso, a música, as amizades realizadas e as inimizades conquistadas, até que a chegada pusesse um fim à viagem e as histórias sobre o ocorrido pudessem, finalmente, se sedimentar. Kemp´s Jig. O destino não era o objetivo, mas o termo da viagem, a sua morte, fim e descanso. Com nossos aviões ultrapassando a velocidade da música e todas essas tecnologias da inteligência a facilitar a aquisição de dados e informações que lá se produzem, "viajar" e "conhecer" passaram a significar "sair dum lugar e ir para outro" ou "bem representar as coisas de lá", com estes lugares e caminhos situados no mundão extenso (res extensa) lá fora. "A verdade está lá fora", não é isto que dizia um já esquecido seriado da TV? Mas "ir pra fora" deixou de ser um desejo pelo ar fresco, pelo sol que escalda, e passou a operar como a saída de um dentro para outro dentro. Sai-se de casa para o trabalho, dos estudos para o mercado, de um país para outro, mas o fora parece que sumiu. Virou lugar de passagem, virou túnel. Que é este fora? Quem sabe!? Se se soubesse, seria um dentro. Achei bom, muito bom que você tenha se posto a nomadar, e achei bom, muito bom que você tenha aceitado a minha sugestão de "cartear" a nossa relação à distância. Os apóstolos carteavam. Os estóicos também. Os vagabundos todos adoram cartear. Beatniks, hippies, punkiesgrungies, indies, todos esses dentros que já foram foras, que já levaram foras, todos esses vagabundos que hoje são modulações de mercado demandam um fora, e demandam cartas, cartas que são como que placas sinalizadoras do caminho que já percorreram e, mais, sinalizadoras da tremulação que é olhar para o horizonte e não saber para onde se está indo. O vagabundo é o que vaga. Viajar à Paris e visitar a Torre, o Arco e o Louvre não é viajar, mas adquirir cartões-postais, adquirir dentros, e não sair pra fora. E os bares e cafés dos nauseabundos, as putas lânguidas da noite, as bibliotecas homéricas? Visitar Paris não seria conhecer a Paris que ninguém conhece, uma Paris que é só sua e que só existe por causa dessa sua vadiagem? Sair duma rotina é condição para a vida e a verdade que, como já dito, está lá fora; mas condiciona também a criação de outro dentro e, mais grave e crônico, condiciona a ilusão de que se está experienciando um verdadeiro fora, um verdadeiro ar fresco. Pobre viajor: mudou-se, mas sem se mudar. Antes, o contrário: permanecer em lótus, mas distinguir-se inteiramente de si - ah! o asceta, este ginasta da alma. A viagem é a criação dum fora e criar um fora é inverter a relação do dentro estável com o fora-que-passa. O sedentário - esse filósofo de gabinete, esse homem sentado - vive no dentro, e vai pra fora para se chegar a outro dentro; o viajante subverte esse esquema e faz do fora a sua rotina e do dentro - a cidade, a estalagem, o quarto - o seu lugar de passagem. O conhecimento de gabinete é ir ali, e só sair lá fora para que se chegue a um novo aqui, a um novo estabelecido, outro estabelecimento. Para o viajante, as cidadelas e seus conchavos muito pouco importam à verdade que ele busca, uma verdade que não é obtida na saída de um lugar para outro e nem é a boa representação, o álbum de fotografias, das coisas que por lá residem. O filósofo sentado vai pra fora em busca da verdade. O viajante, ao contrário, o viajante verdadeiro (mesmo estando imóvel), já vive no fora (mesmo fixado num dentro), já vive na verdade e na vida (que é o próprio caminho e a ele equivale, ponto por ponto) e faz apenas paradas ocasionais num e noutro dentro para descansar, tomar uma cerveja e ter mais uma história pra contar, até que, descansado, se canse de falar, de contar a história e se ponha em aventura, busca e construção de mais outra história, quer ela venha a ser narrada quer não. Vai lá, vai-te embora, vade retro, "bênça" à Deus e adeus...