sábado, 11 de fevereiro de 2012

Sou do tempo em que Merthiolate© doía II (ou "Que é isto, o Conceito?")

A filiação seminal de Sartre e Camus se finda - o marco-zero da queda - quando este escreve o seu L´homme révolté. Freud e Jung, mesmo concordando sobre a existência dum inconsciente e de seus mecanismos de repressão, não conseguem mais suportar o relacionamento devido à fixação do primeiro pelo caráter sexual do desejo e pela coletivização e espiritualização do inconsciente estabelecida pelo segundo. Muitos concílios foram conjurados para resolver uma querela quase pessoal entre dois marmanjos da comunidade cristã, a saber, se o plano de salvação deveria ser restrito aos que abraçavam as tradições judaicas, como dizia Pedro da Galiléia, ou se a Boa Nova tinha de ser traduzida na realidade dos povos pagãos, como ensinava Paulo de Tarso. Como sujeitos tão próximos, tão unha-e-carne, ou mesmo os indiferentes - podemos pensar noutros exemplos: Agostinho e Pelágio, Schopenhauer e Hegel, Nietzsche e Wagner, Benda e Bergson, Habermas e Derrida, Beauvoir e Foucault - podem distanciar-se e inimizar-se, tão somente, devido a uma brigadela conceitual? E daí que um prefere pimenta e azeite, o outro? Que amizade chega ao fim porque um toma a sopa pelas bordas e o outro devora logo os nacos de carne que bóiam na cuia? Joãozinho acha que a coisa existe nela mesma e Mariazinha acredita que representa a coisa em seu espírito. O resultado: divórcio.

O que sempre esquecemos de notar - e esquecer é ignorar o passado que nos constitui, a história que nos suporta - é que o conceito de revolta talhado por Albert Camus, por exemplo, o colocava ao lado dos anti­mar­xis­tas, ao passo que o humanismo ateu sartreano o filiava aos soci­a­lis­tas e à União Soviética. A Guerra Fria, guerra de mentirinha, de trincheirismo político, de "agora eu era o herói...", articulou e configurou diversos outros conflitos de natureza aparentemente distinta da política de Estado, mas a ela atreladas: guerrinhas de mercado, guerrinhas midiáticas, guerrinhas pedagógicas, guerrinhas cinematográficas, guerrinhas literárias, guerrinhas fashionistas, guerrinhas científicas e, enfim, guerrinhas intelectuais, todas elas facetas dum grande conglomerado coletivo de práticas de submissão historicamente condicionadas e condicionantes (mas não determinadas nem determinantes). O capitalismo financeiro contemporâneo à Sartre e Camus cria condições para que noções como "o revoltado", "o existencialismo", "o intelectualismo engajado" tornem-se problemas interessantes à discussão dos intelectuais; discutir "revolta", porém, pouco sentido faria na Grécia de Sócrates, embora a democracia ateniense tenha criado condições - mas não determinado, remarco - para que conceitos como "ideia", "dialética", "sofisma" ou mesmo "verdade" tornem-se de interesse político, da pólis, e que ganhem os espaços de debate nas arenas do senado. Dizer, com Paulo, que o batismo está aberto aos pagãos é pactuar com uma política de universalização do divino e não mais restringí-lo aos filhos de Abrãao, Isaac e Jacó (e Pedro é escanteado). Ao anunciar o "je pense, donc je sui", Descartes dá consistência a uma governamentalidade ligada a um poder centralista e racional, como as monarquias absolutistas vindouras, em detrimento dum sistema político escolástico e doutrinário como o da Igreja medieval. Se toda essa conversa é fiada intencionalmente pelos conceituadores é uma outra discussão, que pode e merece ser posteriormente discutida, mas não agora.

O ofício do filósofo é criar conceitos, coloquemos assim. E conceituar não se opõe à "agir", não compõe um dualismo inconciliável à "ação". Essa mesma distinção, inclusive, já é conceitual, já é um conceito a operar. Se filosofar é conceituar, o filósofo é um senhor distinto, um senhor que distingue realidades, separa joios e trigos, define atuações e, mesmo em suas resoluções, coloca problemáticas. Se todo problema já encobre suas possíveis soluções, toda resposta é, já, o campo problemático atualizado, reduzido em sua complexidade coletiva, condicionante e criadora. Se canso de criar conceitos e digo que, a partir de hoje, me entregarei à ação, já estou colocando um campo problemático-conceitual e criando um dualismo filosófico entre o conceito, como simples devaneio sobre o mundo, e a ação, como mudança efetiva no mundo, o que pode desqualificar a intelectualidade como força de revolta frente ao cotidiano opressor; mas se digo que conceituar e agir são sinônimos estritos, posso estar desinvestindo os espaços de atuação coletiva (sindicatos, conselhos, diretórios...) em nome duma simples retórica solipsista. Que fazer, então, para sair desses dualismos que nossas conceituações mal colocam e com as quais não nos identificamos? Sou ateu ou teísta!? Erudito ou popular!? Duas saídas igualmente válidas mas politicamente distintas: 1) delimitar o conceito ainda mais, desenvolvendo novos conceitos para lhe fazer vizinhança e constituíndo um sistema que os correlaciona (o que pode afastá-lo ainda mais doutros conceitos), ou 2) criar novos conceitos, fazer um outro recorte do problema, uma outra colocação do problema. Temos, é verdade, intelectuais que se deram mui bem, ainda que seus sistemas de pensamento fossem como o norte e o sul, o sétimo dos céus e o quinto dos infernos (Lakatos e Feyerabend, Aristóteles e Platão, Guattari e Lacan...). Não são a maioria, contudo, e mesmo estas exceções raras possuem uma razão-de-ser que justifica e fortalece ainda mais a regra à qual resiste.

A pergunta inicial já deu sinais de sua resolução, o que poderia me desimplicar de escrever um texto maior. Gabarito: João e Maria se divorciam pois ambos investem (desejo, capital, cognições...) em mundos distintos e operam políticas distintas nesses mundos inconectáveis. Não pararei aqui, contudo, e levarei a discussão um pouco, e só um pouco, mais adiante, no que toca ao conceito não ser só uma ideia vaga, uma representação categórica de algo ou uma imagem mental dum objeto concreto. "Não!" para a palavra que referencia o mundo. Conceituar é operar cortes, é definir a realidade concreta nela mesma, é realizar políticas para o pensamento. As pessoas, no entanto, não gostam de pensar, nenhuma delas; pensar traz o tipo de dor que masoquista algum quereria experimentar. Pensar não é idealizar - embora o seja, no corte operado pelo idealista que separa o mundo da ideia, o discurso da prática, o conceito da ação - mas, ao contrário, é materializar e desmaterializar, é sacolejar as estruturas que condicionam os sujeitos e seus objetos, é inutilizar as distinções que oprimem arbitrariamente o corpo (homem-mulher, branco-negro, adulto-idoso, adulto-criança, heterossexual-homossexual, sudestinos-nordestinos) não dando as costas à temporalidade na qual foram criadas.

Daí o ditado de que não adianta explicar quando o outro está indisposto, indisponível, numa posição pouco privilegiada ao entendimento. "Não entender o conceito" pode ser pensado como "não ter cognição suficiente para apreender a ideia", se mantivermos o dualismo psicologizante do qual queremos fugir. "Não entender", prefiro, será equivalente a "não pactuar com a política do conceito, não conseguir adentrar no movimento do conceito, não conseguir acoplar-se ao sistema que o conceito constitui nem conseguir configurar um novo sistema com esse conceito", sendo a "apreensão da ideia" o seu fenômeno, a sua psicologia. Uma dessas montagens do Facebook, repassada a mim e a outros por um reacionário anônimo, dizia algo como "só leu o Manifesto e se acha marxista", precedida de um "Ui!" e duma versão memética do físico Neil deGrasse Tyson. Ora, não se trata de ler só um ou todos os livros escritos pela dupla M&E©; mais importante que ler coisas na íntegra, ler coisas verdadeiras, é fazer verdadeiras leituras, é saber acoplar-se ao conceito e dele fazer ferramenta, afeto e articulação. Pode-se ler, fichar, resenhar, escrever sobre toda a obra de Karl Marx, o que nos legará um saber acadêmico e um privilégio estatutário invejáveis. No entanto, o "uni-vos" a que clama o manifesto do partido comunista, longe de ser um objeto de análise intelectual, é um convite de revolução à determinada classe que compõe o social, alienada num modo de produção burguês e capitalista ("revolução", "proletariado", "burguesia", "luta de classes", "capital", "alienação", são todos conceitos, recortes); para adentrar na onda, para acompanhar os movimentos do conceito, por vezes, basta um só livro, capítulo, frase, ou mesmo nada em escrito. O conceito é a vida! Por vezes, para atingí-la, necessitamos de livros bolorentos e professores miopes que nos instruem na leitura, mas, noutras vezes, o muito ler só confunde o pensamento, nos obnubilando o tempo presente que corre pelo lado de fora da biblioteca, bastando um olhar à janela entreaberta para ver o que o livro quer apontar (tempo que, muitas vezes, já passou...).

Então, não precisamos mais ler e estudar, não precisamos mais participar da Santa Missa, não precisamos mais seguir imperativo moral algum? Não, mais uma vez! A santidade (sanctus, separado) não é para todos, é droga pesada demais pra ser vendida e consumida em larga escala. In facto, organismo algum suporta doses elevadas de espiritualidade, já que o que define a espiritualidade - para além de todas as organizações que a capturam - é um algo que põe em questão o ser mesmo do sujeito; não seu status, suas relações de amizade e parentesco, o seu emprego, formação acadêmica e outras egoicidades, mas um si-mesmo que, submetido ao trabalho duro (askesis) e aberto aos arrebatamentos (éros), é transfigurado e tornado receptível à verdade, às revelações, aos sussuros dos deuses. E esse sujeito pós-verdade, pós-revelação, é um sujeito santo, é o beato ético de Spinoza, o senhor de si e governador dos outros de Sócrates, o barco vazio de Lao-Tsé, o übermensch nietzscheano. Pois! Exatamente o contrário duma espiritualidade é que ocorre, por exemplo, nas chamadas "redes sociais".

Lembremos do velho Orkut: ao modo maçon, um membro participante da sociedade convidava um estrangeiro para que fizesse parte da irmandade iniciada pelo turco Orkut Buyukkokten (a entrada é free, agora, sem precisão de fiador); inseridos nessa irmandade, somos compelidos a delimitar o nosso perfil, nosso eu-virtual (quem somos, de quê gostamos, o que fazemos, blá, blá, blá...) e a participar de comunidades, fóruns de debate que costumam circundar uma temática específica (filosofia, música erudita, animes, turmas de graduação, grupos de trabalho...). É desnecessário dizer que um instrumento de conversação potente como este não funciona como deveria funcionar, não funciona como rede social. As comunidades, todos sabemos, estão soterradas de jogos pueris, de correntes, de assuntos bobos e pouco interessantes ao debate político (no sentido que coloquei alguns parágrafos acima), sendo todo o interesse na irmandade do Orkut depositado nos perfis, nos egos perfilados dos sujeitos ("eu sou assim, eu gosto disso, eu faço isso, veja, veja minhas fotografias, conheça minha intimidade, saiba quem eu sou..."), o que acaba contaminando, inclusive, a relação desse sujeito egóico com as comunidades, tornadas simples instrumento de identificação e reconhecimento ("eu sou corinthiano, eu gosto de chocolate, eu tomo banho pelado, eu conheço o professor Sofronisco...") e não mais um espaço de construção da vida.

Com o Facebook, a história é ainda mais assombrosa. Para o conforto de nossas identidades e referências, o próprio website, ainda mais que o Orkut, não sabe mais o que deve ser: rede social, fórum de discussão, chat de bate-papo, central de jogos e aplicativos, compartilhamento de fotos e imagens, mural de frases soltas e citações e veículo de publicidade e propaganda (enquanto escrevo a postagem, mesmo, recebo, na barra lateral da minha página de atualizações, links comerciais a me oferecer informações sobre o aniversário de 157 anos da cidade onde moro, a possibilidade de fazer mobilidade acadêmica no exterior, as melhores roupas esportivas da Dafiti, as eleições para deputados na Assembléia Nacional Francesa em Junho deste ano e viagens com 70% de descontos pelo Groupon). Sem uma página de perfil bem definida na qual os usuários possam lapidar e externar a sua interioridade, o ego dos usuários encontrou outra maneira para tornar-se público: as constantes atualizações de imagens (uma imagem aleatória, uma frase aleatória e um autor aleatório que, necessariamente, não tem de ver um com o outro), piadas (puta merda, sou o único que sente "vergonha alheia" ao ver alguém rindo com memes!?!?...), referências pseudo-políticas (se você é contra a invasão de pinheirinhos, se você é ciente das abusivas taxas tarifárias que tornam nossa gasolina cara, se você está acompanhando a aprovação do Ficha Limpa no Senado... Dá um curtir, aí!) ou qualquer outra coisa já pronta pra ser encaminhada e comentada ("fato"; "sad but true"; "quem ver, cagará tijolos"; "genial"; "só os fortes entenderão", e outras placas e bandeiras já preenchidas com frases feitas...) no próprio mural de atualizações, além de comentários esporádicos e pouco consistentes nas atualizações de seus "amigos" (um toma-lá-dá-cá, obviamente, e não uma conversa sincera).

A prática conceitual, hoje, assemelha-se ao Facebook. Sempre digo que a possibilidade e a facilidade de falar propiciada pela internet criou um monte de babacas (o troll, o fodão) a bancar e desbancar os discursos com os quais se esbarram por aí. Fala-se qualquer coisa pois deve-se falar qualquer coisa, levanta-se qualquer placa ou bandeira pois deve-se levantar uma placa e uma bandeira; uma ditadura às inversas, uma repressão que nos faz evacuar e vomitar e pôr todo o dentro para fora, ao invés de calcar e recalcar nossos fluidos que necessitam, antes, de amadurecimento. Articular o bom conceito e produzir uma coisa qualquer é insanidade, é pedir para ser incompreendido, visto que o pensamento já tem seus lugares e espaços demarcados de antemão. Quando a filosofia, enquanto estética da existência e prática de cuidado - de si e do outro -, torna-se disciplina acadêmica, o pensamento fica restrito ao decoro das aulas, aos discursos do magistrado e aos departamentos de pesquisa (você é behaviorista [curtir] ou cognitivista [compartilhar]?...). Pensar não é imaginar abstrações, publicar artigos, filiar-se a um grupo de pesquisa, afirmar-se partidário desta ou daquela filiação teórica, gostar ou não gostar de tal e qual autor, tal e qual metodologia, tais e quais termos. O filósofo, antes de ser um sábio, é um amigo, e amigo do pensamento, daquele pensamento que não cabe em nosso estado de coisas de outrora, tampouco no estandarte duma bandeira ou na moldura duma placa. Pensar é adentrar na vida e, como todo parto, causa dor e choro e sangue, muito sangue. Existem muitas e muitas teorias sobre o mundo, mas o pensamento e a verdadeira atividade conceitual - o conceito que corta e denuncia, conceito revolucionário, conceito-faca - não se identifica a nenhuma delas, já que pensar e conceituar é adentrar no mundo e nele operar. Desqualificar a força de um movimento concreto com um discurso é negar a dor de existir e inimizar-se com o próprio mundo. Tenho dito: uma teoria da vida é sempre posterior à vida ela mesma...