quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Ciência-Religião (da série "problemas mal-colocados")

A comunicação é pensada, (seja pelo senso comum, seja pelo bom senso cartesiano), a partir do seguinte modelo: o sujeito é encarado como um processador de dados brutos, de sensações oriundas de fora e estruturadas em sua mente por categorias pré-determinadas, produzindo as informações; esta informação organizada, ao relacionar-se com outras categorias num discurso coerente, torna-se conhecimento; e o conhecimento, quando deixa de ser simples retórica e encarna no sujeito enunciador, tornando-se "um" com ele mesmo, é chamado de sabedoria. Este esquema clássico – já há muito conhecido, já há muito sem-autor e por cada autor apropriado duma maneira diversa – pode nos fazer esquecer alguns aspectos cabais de sua realização, principalmente quando passamos a equivaler "comunicar" e "transmitir", transmitir algo, consequência direta do esquema caso tomemos os seus termos (dado, informação, conhecimento e sabedoria) como elementos contínuos, como átomos constituintes em escala; mas ele, o esquema, nos interessa justamente por operar uma distinção óbvia, mas pouco evidenciada, entre os acontecimentos e experiências em sua opacidade (dado), os modos lógicos de entendimento destes acontecimentos e experiências (informação), o saber institucionalizado produzido pela estruturação destes modos (conhecimento) e a mudança efetiva que este saber desenrola no sujeito conhecedor da verdade (sabedoria).

A lógica continuísta, em oposição à postura de alteridade radical em relação aos elementos do esquema, é tomada pelos sistemas totalitários de produção de sentido quando querem atacar outras modalidades de construção da vida e do conhecimento, em geral menores e marginais; estes mesmos sistemas totalitários, todavia, ao fazerem apologia de seus próprios louros e justificarem seus resíduos e entraves, trazem logo a lógica da distinção, e com isto dizem que o problema é apenas residual, acidental, mas não do sistema ele mesmo. O exemplo tomado pelo texto será desenvolvido durante todo ele e servirá tanto para esclarecer esse esquema e suas duas lógicas (a continuísta e a descontinuísta) quanto para expor o dualismo mal colocado entre Ciência e Religião (ou, noutros termos, razão e fé, inovação e arcaísmo, modernidade e medievalismo, racionalismo e escolástica, consciência e ideologia, conhecimento das coisas e cuidado de si).

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Pululam manchetes, desde as últimas semanas, sobre A inocência dos muçulmanos, uma sátira ao profeta Maomé feita pelo diretor Nakula Besseley Nakula, e de como o curta causou a fúria de islâmicos no mundo inteiro. Postado no Youtube em julho (e ainda presente no website, afora os pedidos da União Nacional Islâmica pela retirada do vídeo), ganhou projeção ao ser promovido por Terry Jones, pastor evangélico e conhecido anti-islamita estadunidense. Uma onda de fúria e indignação surgiu em diversos países muçulmanos, em especial no Oriente Médio e no norte da África, o que parece ter servido de causa e condição para inúmeros incidentes, a título de exemplo ilustre a morte do embaixador dos Estados Unidos na Líbia, John C. Stevens, num ataque ao consulado americano em Bengazhi, dia 11 de Setembro (!), numa terça-feira.

O sujeito anti-religião, que em geral fundamenta sua retórica na instituição da Ciência, constrói o que ele acha ser a interpretação tacanha, reflexa e irracional do acontecimento pelos islamitas (ou o seguinte modo de entendimento, já que interpretação dá um caráter cognitivo e psicológico a um processo que tem consequências políticas e coletivas): “Estímulo: um infiel faz um vídeo de mau gosto sobre o Profeta e nós, o seu povo; resposta: matamos o embaixador do país onde vive o infiel.” Essa mesma concepção da “lógica islâmica” parece ser alastrada pelos próprios dirigentes do Estado americano e seus representantes, tanto no encaminhamento de políticas de embargo quanto na publicização de certa imagem ilusória e propagandística do islã como inimigo central do Ocidente e seus valores, o que acaba reverberando numa maré gigantesca de reações e preconceitos frente aos seguidores de Alá, aos árabes e, mesmo, àqueles que nada têm de ver com o islamismo, mas que a eles são assimilados devido a um e outro detalhe estético (como a barba e o turbante dos sikhs indianos). Hillary Clinton, condenando o ataque horas após o mesmo, alimenta essa “lógica islâmica” sem-querer-querendo. “Os Estados Unidos lamentam qualquer esforço para denegrir crenças religiosas, mas deixe-me ser clara: nunca há qualquer justificativa para atos violentos como este", comenta a secretária de Estado[1].

Uma variável que todo bom cientificista, branco, cristão e capitalista esquece de considerar é que tais “reações, se genuínas, deveriam ter acontecido seis meses antes. Ou seja, foi adiada para 11 de setembro. Eles escolheram esta data para entregar uma mensagem”, disse Mohamed Magarief, presidente da Líbia, ao referir-se ao atentado contra o WTC, dizendo tratar-se dum ato terrorista planejado “que não teve nada a ver com o filme”, e que os seus responsáveis “não representam o povo da Líbia”[2]. A tal da "lógica islâmica", vista de perto, revela-se um conceito vazio, um conceito que aponta para o nada, uma ilusão preconceituosa sustentada apenas no modo de funcionamento de alguns grupos fundamentalistas com base no islamismo (ex. Al-Qaeda, Hamas, Talibã, Hezbollah). A própria noção de fundamentalismo, aliás, é muito complicada, já que na própria tradição muçulmana o termo referencia os acadêmicos estudiosos do direito islâmico, mas cá no ocidente é utilizado para definir, preconceituosa e midiaticamente, certa ideologia político-religiosa que sustenta o Islã não como uma religião, mas como um sistema que também governa o Estado, este ditatorial e deslaicizado.

Levar adiante este raciocínio nos obrigaria a culpar a Ciência por todas as mortes e condenações arbitrárias ocorridas durante o período que sucedeu a Revolução Francesa, símbolo da modernidade e do livre-pensamento. Ou então desacreditar em noções como Bem ou Justiça devido às precariedades e burocratizações do nosso sistema penal. Ou, ainda, culpar o esporte e, mesmo, o espírito olímpico por todas as brigas entre torcidas organizadas ocorridas em finais de campeonato. Parece haver, assim colocado o problema, uma distinção ontológica, um abismo inconciliável entre uma noção ideal e o seu correlato concreto, tal qual posta por um Platão. Este, porém, não deve ser nem o cerne nem o termo da questão, ainda que se apresente mais adequado que o binômio psicologista que pensa a religião como um sujeito, e um sujeito cujos comportamentos são os atos defasados de instituições religiosas. É preferível retomar o quádruplo esquema inicial e pensar que, se há instituições religiosas (conhecimento) que atentam a vida, a estupram, a corrompem e a submetem, isso nada – nada, em seu sentido lucreciano e epicurista de nihil, de “nem mesmo um hilo de fava”, o que não é, o não-ser, o que jamais engendra coisa alguma – nada tem de ver com um certo ideal religioso buscado e quiçá encontrado por alguns iniciados (sabedoria), e ambos nada são para toda a documentação e escrituraria produzida acerca de ambos (informação) e, como desfecho, todos os três são nada para as opiniões e referências tomadas por naturais envolvendo a todos (dados), sendo essas opiniões e referências nada para todo o resto do esquema. O próprio Platão, em seu Fedro, já apontava para essa distinção, ao falar da escritura da filosofia como simulacro (eídolon) da inscrição do lógos na alma (met´epistéme), o filosofar ele mesmo.

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O ocidental cientificista discordaria, e embasaria a sua antítese em diversas sentenças contidas nos livros sagrados das religiões, sentenças escolhidas a esmo e, quase sempre, desprendidas de seu contexto de enunciação, seja literário seja histórico. Exemplos extraídos do Corão:

“Os judeus dizem que Ezra é o filho de Deus, e os cristãos dizem que Cristo é o Filho de Deus, estas são as palavras que saem de suas bocas, eles imitam o provérbio dos incrédulos anteriores. Que a maldição de Allah esteja sobre eles, como eles serão mandados para longe!" [9:29-30]

"Ó fiéis, não tenham os judeus e os cristãos como seus protetores! Eles são apenas protetores uns dos outros e se você se vira para eles é um deles. Em verdade, Deus não guia um povo injusto." [05:51]

“Matá-los onde quer que vós os encontreis e expulsá-los dos locais onde eles vos expulsaram, porque a perseguição é pior do que o abate.” [2:191]

“Faça guerra contra os infiéis e os hipócritas. Seja duro com eles. Sua morada será o inferno, o fim de uma jornada infeliz.” [9:73]

Sentenças igualmente condenáveis poderiam ser encontradas nos escritos antigo-testamentários, nos Vedas hindus, num e noutro aforismo do Tao Te Ching, num poema budista tomado em avulso, numa carta paulina. A crítica mais imediata a um tipo de acusação é tentar voltá-la a seu promotor e, desta maneira, pode-se afirmar que também está escrito, em relatos medicalistas do século XIX, que a homossexualidade é uma doença (o DSM, código de patologias oficial dos conselhos médicos, sustentava essa afirmação até 50 anos atrás). Uma cavoucada a mais no baú de relíquias da Ciência traria à luz que muitos testes psicológicos, feitos no final da primeira metade do século XX, provavam que homens eram mais inteligentes e capazes, por natureza, que mulheres (e ignoravam toda a contextura social que produzia uma certa noção de homem e uma certa noção de mulher). Uma terceira busca nos porões laboratoriais revelaria que a antropologia evolucionista e a biologia, através de experimentos e pesquisas de campo, sustentaram a superioridade duma raça humana em relação a outra (o que justificou e endossou, em exemplo, Auschwitz).

O "atentado" não foi um movimento religioso, um movimento da religião islâmica, tampouco da religião-em-geral, tomadas como sujeitos do enunciado, mas uma prática humana articulada e justificada por um documento histórico atrelado a essa religião (o Corão, os Evangelhos e Epístolas, o Torá, a Gitá, ademais seu caráter de livros religiosos, são documentos históricos e reais; documentos “verdadeiros”, neste sentido específico). Do mesmo jeito, não foi "A Ciência" que enunciou estes discursos acima, mas práticas humanas articuladas a laboratórios, poderes jurídicos, investimentos financeiros, políticas públicas etc. Seria do interesse de qualquer indivíduo preocupado em levar adiante uma discussão sensata (que nem seja senso comum nem bon sens) a saída desta distinção razão-fé, religião-ciência, obscuridade-esclarecimento, ou que seja, e partir para uma analítica dos problemas que os coloque em termos de práticas, humanas e históricas, práticas que produzem dados e informações, conhecimento e sabedoria, e não colocar a culpa em Religião, Ciência, Razão, Fé ou em qualquer "outro", em qualquer “sujeito” que não a vida ela mesma, em toda a sua complexidade.

Já prevendo o argumento cientificista de que a sua prática está sempre evoluindo em direção ao verdadeiro e se altera constantemente – em oposição a livros e doutrinas religiosos que estão séculos, milênios atrasados em relação à vida atual – pode-se dizer que a ciência não "evolui", mas apenas altera a sua postura frente aos problemas que vão sendo operacionalizados e encaminhados (tanto problemas epistemológicos, no próprio campo da ciência, quanto problemas de natureza política e social, e isto é dito ignorando a própria arbitrariedade da distinção natureza-cultura). De fato, há um aprimoramento e delineamento cada vez maior no instrumental técnico e resolutivo que as práticas científicas legam à população (ou parcela dela), mas isto não significa que haja uma evolução, um desenrolar progressivo e linear do esclarecimento humano na história, no que toca à razão científica nos dar uma melhor capacidade de governo ou, mesmo, de vida. A pergunta clássica e inocente de J.-J. Rousseau: "pode o aprimoramento das ciências e das artes nos trazer mais felicidade?" Esse aprimoramento das tecnologias (físicas, sociais, políticas) nos lega mais "conforto" e “estabilidade”, decerto, mas esse conforto e essa estabilidade não equivalem, de antemão, à tal felicidade (conceito que encabeça a lista dos conceitos vazios por excelência...) mas sim a um embotamento nos afetos e vontades de mudança no indivíduo estável, adaptado e imerso no conforto. 

Se a religião é perigosa seria, justamente, por essa capacidade de capturar, agregar e ditar o modo tido por privilegiado para a condução da vida. A ciência, durante a história e ainda hoje, também legou, também lega pequenas ditaduras e "comprovou", através de seus encaminhamentos, diversos preconceitos e sensos-comum. O que garante o rigor da prática científica – em oposição a sua pretensa racionalidade soberana – é a sua pluralidade (mesmo em Física, a mais dura das ciências, temos modelos e modelos de entendimento da natureza, nem sempre parceiros...), e o mesmo se dá com as religiões e seus grupos, movimentos e investidas. Repetindo: um determinado grupo fundamentalista pode por a termo um determinado movimento, mas isto não legitima ninguém, lógica e eticamente, a afirmar que o "sujeito" desse movimento é um "indivíduo" chamado "Religião"; o mesmo para a Ciência, a Arte, as práticas de estado, determinadas correntes da filosofia e por aí se vai. 

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Tendo em mãos o Corão, pode-se fazer uma leitura extremamente pacifista dele, ao se tomar a jihad como uma luta e um cuidado que o fiel tem para consigo mesmo. E pode-se tomar a jihad, noutro extremo, como um conflito fundamentalista de aniquilação da diferença. Esta é, aparentemente, a distinção entre o sunita e o xiita como tomada pelo ocidental para “relativizar” a estupidez dos islamitas (“um deles é estupidez e perigo à civilização; o outro é só estupidez”). O que não é investigado e pensado como variável relevante pelo cientificista é que a maioria da população muçulmana (mais de 80 entre 100 fiéis, diz o site da CIA) é de filiação sunita, e se a sua contraparte extremada é mais visível, talvez isto se deva às suas investidas mirarem, justamente, visibilidade (ameaças públicas, instalação de bombas em locais de grande visitação, atentados a personalidades e monumentos ilustres), ao contrário das filantropias, asceses e meditações que, estas sim, mereceriam ser associadas ao islã. Tem-se o agravante fato duma mídia que parece trabalhar, desde os atentados do 11 de Setembro, nesta produção de imagens anti-islâmica – o inimigo público da rodada.

Utilizando um pouco mais de minúcia neste ponto que não é o foco da discussão, pode-se questionar a própria divisão reificada em dado, em dois dados – sunismo e xiismo – da história do islã, já que esta divisão se dá em decorrência do falecimento de Muhammad (o profeta Maomé), no ano de 632 da era cristã, e do problema – tanto político quanto religioso; diferença inexistente não só para a sociedade árabe como para os impérios europeus seus contemporâneos, a exemplo de todo o sacro império romano-germânico que na época ainda se configurava – da herança do governo da comunidade islâmica: parte da comunidade havia escolhido, na Nidwa (“assembleia”, transliterado do árabe), como representante do profeta seu genro Ali ibn Abu Talib; mas, enquanto sua família preparava e se preparava para o evento funerário, alguns companheiros de Maomé (os sahaba, indivíduos que gozavam de prestígio na comunidade pelo seu contato mais proximal com Maomé) elegeram Abu Bakr como califa (“sucessor”, em árabe); Abu Bakr foi sucedido por Umar ibn al-Khattab, que foi sucedido por Uthman ibn Affan que, por sua vez, foi sucedido enfim pelo genro do profeta. O sunita, nesta narrativa, é aquele que segue a sunna (a prática) dos sahaba, apoia Abu Bakr como herdeiro legítimo do profeta e investe num movimento de unificação da comunidade islâmica pela autoridade de um califa. O xiita é aquele que apoia a decisão arregimentada pela Nidwa e crê que Ali ibn Abu Talib é o escolhido de Maomé. Usando mais da minúcia como método, é possível a chegada a um terceiro grupo, os kharijitas, já que, durante uma disputa xiita-sunita para a tomada do poder entre os homens de Ali (ainda não consagrado califa) e os do governador de Damasco Muawiyah (primo de Uthman ibn Affan, o último califa), foi realizada uma trégua política entre os dois pretendentes, o que desagradou a muitos fiéis, para os quais um tal julgamento só caberia ao próprio Alá (kharijita seria algo como “os que saíram”, em árabe). Os próprios kharijitas, levando a sério o ofício da minúcia, ainda podem ser divididos em Azraquitas, Najadat, Sufris, Ibaditas... O sunita, hoje, se subdivide em maliquita, shafiita, hanefita e hanbalita. O xiita pode ser categorizado em duodecimano, ismailita e zaidita. Nenhum dado é simples, e se assim ele se nos revela é em detrimento de toda a malha histórica que o sustém e o constitui como pacotinho de linguagem. De qualquer maneira, não é este o ponto que aqui interessa.

O problema, diria o cientificista, é que usando tal ou qual interpretação – seja literal ou alternativa – é possível transformar qualquer livro mal-intencionado num livro bom, do “bem”, bastando usar a ladainha religiosista de que “veja, não é bem assim, temos de ver o contexto, não se deve interpretar o texto tão literalmente...” A argumentação – que tem o seu valor, por sinal – é que se o texto deixa margem a esse tipo de interpretação pode e vai continuar sendo usado para fazer maledicências e a culpa é, sim, dele. A maior luta do mundo científico, continua, é ser o mais claro e distinto possível, é argumentar visando a construção de certezas e evidências; já com relação à religião dá-se o contrário: quanto mais obscuro, confuso e paradoxal melhor, já que, assim, é possível adequá-lo a qualquer utilização. “Se é pra matar, gritamos jihad e nos explodimos; se é pra discurso na TV, então jihad é uma luta e um cuidado que o fiel tem para consigo mesmo.” O cientificista se enfurece com a ambiguidade dos “discursos da Religião”, seja ela qual for, e apresenta-se pouco tolerante em relação a todo registro que não sabe bem o que quer dizer ou não diz bem o que sabe (aí inclusos a pintura modernista, o cinema experimental, a musica serial, o anarquismo, todo sistema enfim que não pretenda representar nenhum objeto em específico).

O filósofo muçulmano Averróis insistia, isto no século XII, que a busca da verdade das coisas a que chama filosofia devia se dar através da razão, mas esta deveria ser amparada pela religião, entendida como conhecimento íntimo da obra de Deus e como preocupação em relação às ações humanas. A verdade (razão sobre as coisas) não contradiz a verdade (religião de Deus e dos homens), e se um entendimento mútuo não se dá é por um problema de interpretação de uma na esfera da outra, por uma desarmonia que separa a ciência-do-filósofo da mística-do-teólogo, e ambas das verdades óbvias do povo. 

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Numa última tentativa de sustentar sua posição preconceituosa, o cientificista dá um de seus braços a torcer e assume que a existência das instituições reguladoras é real, que, de fato, pode haver uma distinção entre tais e os documentos por elas coptados, entre tais e os personagens históricos capturados pelas mesmas, e que todas estas podem ser associadas à categoria simples a que nomeamos como dado. Concordando em parte com a lógica descontinuísta do esquema quádruplo, o advocatus da ciência ameniza os seus argumentos de promotor em relação à religião – o que torna a pena desta mais branda – mas não consegue, por mais que se esforce, por mais que pense, analise, esmiúce, quantifique, ele não consegue incluir a ciência nesse joio todo. Porque “ciência”, afirma, é apenas um nome para determinados procedimentos e programas de pesquisa, e não referencia nem implica nenhuma norma moral em sua atividade, nem, tampouco, nenhum guia que indique como proceder dentro da própria ciência, sendo, neste aspecto, autônoma em relação a todas as outras instâncias (como a religião, o estado, o mercado, estes sim aplicáveis ao esquema quádruplo). A atividade científica implica também atividades políticas, assume; envolve instituições financiadoras, querelas conceituais, mas não vê o problema na ciência ela mesma, na ciência-em-si, numenal e independente de todos esses fenômenos menores que manifesta, mas em coisas mais baixas, mundanas e – seguindo um platonismo barato, superficial e despolitizado – ilusórias, desvinculadas da epísteme, do real, do eidos da ciência, coisas como a influência intelectual, a busca de poder ou o dinheiro.

Ora, se a religião é acusada de impiedade e corrupção (asebas), à maneira de um Sócrates, e se tal acusação se ancora nas práticas institucionais associadas a esta religião, a culpa não é da religião, tomada em isolado, mas de toda instituição reguladora que justifica a sua dominação social através das verdades que profere e nas quais se sustenta. As instituições religiosas, por vezes, por muitas vezes e de fato, fazem valer as acusações de seus promotores, os paladinos da razão e do laicismo; mas a ciência idem, operando de maneira distinta à religião, porém, assim como ela, normatizando e regulando a vida dos homens de boa ou de má vontade. 

A "norma moral" da ciência existe, a contragosto do cientificista transcendental, e é uma noção de verdade (diferente de muitas outras noções de verdadeiro que foram construídas na história, como a emunah, a alethéia, a veritas, a parrhésia...) que visa não compreender e pensar as coisas, não tornar-se um com o que se sabe, mas prever e controlar essas “coisas mesmas”, o que cria uma descontinuidade radical entre o sujeito e seu objeto de conhecimento (ainda que, fenomenologicamente, se considere a existência de um como condição sine qua non para a existência do outro). Nos antigos saberes alquímicos – de origem judaica (kabbalah) e islâmica (al-kimia), principalmente – praticados durante todo o período pré-revolução científica, buscava-se a constituição de um conhecimento sobre o mundo e seus elementos no qual tanto o sujeito alquimista quanto o elemento alquímico em questão sairiam transformados dessa relação de enfrentamento. Entender a alquimia como uma pré-química – um saber escolástico como um saber racional em desenvolvimento – seria, em termos lógicos, fazer comparações entre elementos de conjuntos inconciliáveis. Não há intersecção possível entre a escolástica (saber do sujeito por ele mesmo através das coisas do mundo, resultando na transmutação de um e de outro) e o racionalismo (saber do mundo e suas coisas por um sujeito tomado por óbvio, um sujeito que é a primeira verdade, intuitiva e imediata, na cadeia das razões cartesiana). Enquanto a primeira visa uma indissociabilidade entre o homem e o mundo, a segunda translada o saber de uma experiência imediata para uma mediação utilitarista que, à proporção de seu rigor e delineamento, afasta ainda mais o homem de sua realidade como duas instâncias substanciais e independentes, como “dadas”. Para preencher este vão, esse abismo entre sujeito e mundo, é que se dá tanta importância ao método nos saberes modernos (a ponte entre um e outro; é o método que é o "guia que indica como proceder dentro da própria ciência").

Se o argumento usado para atacar "religião" provém das instituições a ela associadas, que insistamos nesse argumento e ataquemos, também, outras "instituições" (ciência, mercado, sociedade civil, a educação, o amor, a saúde, a justiça) e não nos deixemos capturar por elas, construindo, nelas inseridos, espaços de liberdade, de criação e de autonomia, individual e coletiva. A prática científica, abstratamente tomada por autônoma, deve, isto sim, ser vista como aristocrática, e apoiada por uma oligarquia financiadora de si mesma (a tripartição demos-aristói-oligoi postulada por Aristóteles em sua cidade ideal); afinal, cria um saber que regula e normatiza diversas práticas na sociedade civil e, principalmente, um saber que não é acessível a esta sociedade civil (talvez alguns, e só alguns, dos produtos desse saber utilitarista, mas não o saber e seu modo de procedência; afinal, não tomamos parte, democraticamente, das tecnologias maravilhosas já construídas pelas ciências da computação; os serviços públicos de saúde nem de longe, nem de muito longe, possibilitam acesso às terapêuticas mais avançadas que a ciência médica já desenvolveu; isto, inclusive, parece não denegrir a medicina ou as informáticas para o cientificista). Para além disso, e ainda insistindo neste ponto, é válida a lembrança da recente greve federal dos docentes de 57 (de 59) universidades e 34 (de 38) institutos federais, que tinha como pauta principal não o reajuste salarial, não a construção dum novo plano de carreira, mas o geral "melhores condições de trabalho". E isto por que? Porque devido ao sucateamento instrumental, o cientista é obrigado a pesquisar não o que quer, o que gosta ou o que acha necessário ao desenvolvimento duma "ciência pura", mas é obrigado a pesquisar temáticas do interesse de seus financiadores oligarcas (sejam eles do estado ou do mercado). Esta prática de financiamento, inclusive, é que é o lugar-comum nos modos de procedência em pesquisa, e não a tal da "pesquisa desinteressada".

Se a religião, em alguns contextos, incita fiéis a realizarem atos que julgamos loucura ou estupidez, a ciência, em alguns contextos, também produz e reforça relações de exploração (mercadológica, jurídica, etc.). Se a religião, em alguns contextos, parece obscurecer o pensamento, a liberdade, o bom governo, também produz e reforça situações ditas revolucionárias (cito, na esteira da discussão sobre o islamismo, a Revolução Iraniana, transformação do Irã monárquico de Reza Pahlevi numa república islâmica, comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, de 1979 até 1989; ou a ainda ressonante deposição do ditador egípcio Hosni Mubarak apoiada pela Irmandade Muçulmana, que combateu também a ditadura militar do Conselho Supremo das Forças Armadas, colocando na presidência um candidato civil).

Se há um "em-si puro e bom da ciência" também deveríamos ser mais complacentes com a existência de um "em-si" para a religião. Se o problema da ciência não está na "ciência em si", por que o da religião estaria? Problema insolúvel que merece, ele mesmo, dissolução. Deixar de lado esse "em-si" das coisas e focar seus efeitos e políticas, que não são acidentes, fenômenos ou detalhes. Não há saber – seja ele científico, religioso, governamental, jurídico, artístico – que não sustente regras de normatividade e produza efeitos (diretos e indiretos) na vida das pessoas. O que distingue uma ciência de outra é o objeto, pois o "sujeito" é invariante, é sempre o mesmo (racional, liberal, de direito). "Pensar a subjetividade" é pensar a malha de registros (informação) e instituições (conhecimento) que produzem as coisas em sua evidência (dado) e, ao mesmo tempo, cria condições para as práticas de liberdade (sabedoria). Mas se se insiste em falar num espírito científico como busca descompromissada da verdade das coisas (independente das picuinhas acadêmicas) por que não se pode falar num espírito religioso como busca implicada, sempre implicada, da verdade do sujeito (independente das escleroses que vemos nas instituições religiosas...)?
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