quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Ciência-Religião (da série "problemas mal-colocados")

A comunicação é pensada, (seja pelo senso comum, seja pelo bom senso cartesiano), a partir do seguinte modelo: o sujeito é encarado como um processador de dados brutos, de sensações oriundas de fora e estruturadas em sua mente por categorias pré-determinadas, produzindo as informações; esta informação organizada, ao relacionar-se com outras categorias num discurso coerente, torna-se conhecimento; e o conhecimento, quando deixa de ser simples retórica e encarna no sujeito enunciador, tornando-se "um" com ele mesmo, é chamado de sabedoria. Este esquema clássico – já há muito conhecido, já há muito sem-autor e por cada autor apropriado duma maneira diversa – pode nos fazer esquecer alguns aspectos cabais de sua realização, principalmente quando passamos a equivaler "comunicar" e "transmitir", transmitir algo, consequência direta do esquema caso tomemos os seus termos (dado, informação, conhecimento e sabedoria) como elementos contínuos, como átomos constituintes em escala; mas ele, o esquema, nos interessa justamente por operar uma distinção óbvia, mas pouco evidenciada, entre os acontecimentos e experiências em sua opacidade (dado), os modos lógicos de entendimento destes acontecimentos e experiências (informação), o saber institucionalizado produzido pela estruturação destes modos (conhecimento) e a mudança efetiva que este saber desenrola no sujeito conhecedor da verdade (sabedoria).

A lógica continuísta, em oposição à postura de alteridade radical em relação aos elementos do esquema, é tomada pelos sistemas totalitários de produção de sentido quando querem atacar outras modalidades de construção da vida e do conhecimento, em geral menores e marginais; estes mesmos sistemas totalitários, todavia, ao fazerem apologia de seus próprios louros e justificarem seus resíduos e entraves, trazem logo a lógica da distinção, e com isto dizem que o problema é apenas residual, acidental, mas não do sistema ele mesmo. O exemplo tomado pelo texto será desenvolvido durante todo ele e servirá tanto para esclarecer esse esquema e suas duas lógicas (a continuísta e a descontinuísta) quanto para expor o dualismo mal colocado entre Ciência e Religião (ou, noutros termos, razão e fé, inovação e arcaísmo, modernidade e medievalismo, racionalismo e escolástica, consciência e ideologia, conhecimento das coisas e cuidado de si).

* * *

Pululam manchetes, desde as últimas semanas, sobre A inocência dos muçulmanos, uma sátira ao profeta Maomé feita pelo diretor Nakula Besseley Nakula, e de como o curta causou a fúria de islâmicos no mundo inteiro. Postado no Youtube em julho (e ainda presente no website, afora os pedidos da União Nacional Islâmica pela retirada do vídeo), ganhou projeção ao ser promovido por Terry Jones, pastor evangélico e conhecido anti-islamita estadunidense. Uma onda de fúria e indignação surgiu em diversos países muçulmanos, em especial no Oriente Médio e no norte da África, o que parece ter servido de causa e condição para inúmeros incidentes, a título de exemplo ilustre a morte do embaixador dos Estados Unidos na Líbia, John C. Stevens, num ataque ao consulado americano em Bengazhi, dia 11 de Setembro (!), numa terça-feira.

O sujeito anti-religião, que em geral fundamenta sua retórica na instituição da Ciência, constrói o que ele acha ser a interpretação tacanha, reflexa e irracional do acontecimento pelos islamitas (ou o seguinte modo de entendimento, já que interpretação dá um caráter cognitivo e psicológico a um processo que tem consequências políticas e coletivas): “Estímulo: um infiel faz um vídeo de mau gosto sobre o Profeta e nós, o seu povo; resposta: matamos o embaixador do país onde vive o infiel.” Essa mesma concepção da “lógica islâmica” parece ser alastrada pelos próprios dirigentes do Estado americano e seus representantes, tanto no encaminhamento de políticas de embargo quanto na publicização de certa imagem ilusória e propagandística do islã como inimigo central do Ocidente e seus valores, o que acaba reverberando numa maré gigantesca de reações e preconceitos frente aos seguidores de Alá, aos árabes e, mesmo, àqueles que nada têm de ver com o islamismo, mas que a eles são assimilados devido a um e outro detalhe estético (como a barba e o turbante dos sikhs indianos). Hillary Clinton, condenando o ataque horas após o mesmo, alimenta essa “lógica islâmica” sem-querer-querendo. “Os Estados Unidos lamentam qualquer esforço para denegrir crenças religiosas, mas deixe-me ser clara: nunca há qualquer justificativa para atos violentos como este", comenta a secretária de Estado[1].

Uma variável que todo bom cientificista, branco, cristão e capitalista esquece de considerar é que tais “reações, se genuínas, deveriam ter acontecido seis meses antes. Ou seja, foi adiada para 11 de setembro. Eles escolheram esta data para entregar uma mensagem”, disse Mohamed Magarief, presidente da Líbia, ao referir-se ao atentado contra o WTC, dizendo tratar-se dum ato terrorista planejado “que não teve nada a ver com o filme”, e que os seus responsáveis “não representam o povo da Líbia”[2]. A tal da "lógica islâmica", vista de perto, revela-se um conceito vazio, um conceito que aponta para o nada, uma ilusão preconceituosa sustentada apenas no modo de funcionamento de alguns grupos fundamentalistas com base no islamismo (ex. Al-Qaeda, Hamas, Talibã, Hezbollah). A própria noção de fundamentalismo, aliás, é muito complicada, já que na própria tradição muçulmana o termo referencia os acadêmicos estudiosos do direito islâmico, mas cá no ocidente é utilizado para definir, preconceituosa e midiaticamente, certa ideologia político-religiosa que sustenta o Islã não como uma religião, mas como um sistema que também governa o Estado, este ditatorial e deslaicizado.

Levar adiante este raciocínio nos obrigaria a culpar a Ciência por todas as mortes e condenações arbitrárias ocorridas durante o período que sucedeu a Revolução Francesa, símbolo da modernidade e do livre-pensamento. Ou então desacreditar em noções como Bem ou Justiça devido às precariedades e burocratizações do nosso sistema penal. Ou, ainda, culpar o esporte e, mesmo, o espírito olímpico por todas as brigas entre torcidas organizadas ocorridas em finais de campeonato. Parece haver, assim colocado o problema, uma distinção ontológica, um abismo inconciliável entre uma noção ideal e o seu correlato concreto, tal qual posta por um Platão. Este, porém, não deve ser nem o cerne nem o termo da questão, ainda que se apresente mais adequado que o binômio psicologista que pensa a religião como um sujeito, e um sujeito cujos comportamentos são os atos defasados de instituições religiosas. É preferível retomar o quádruplo esquema inicial e pensar que, se há instituições religiosas (conhecimento) que atentam a vida, a estupram, a corrompem e a submetem, isso nada – nada, em seu sentido lucreciano e epicurista de nihil, de “nem mesmo um hilo de fava”, o que não é, o não-ser, o que jamais engendra coisa alguma – nada tem de ver com um certo ideal religioso buscado e quiçá encontrado por alguns iniciados (sabedoria), e ambos nada são para toda a documentação e escrituraria produzida acerca de ambos (informação) e, como desfecho, todos os três são nada para as opiniões e referências tomadas por naturais envolvendo a todos (dados), sendo essas opiniões e referências nada para todo o resto do esquema. O próprio Platão, em seu Fedro, já apontava para essa distinção, ao falar da escritura da filosofia como simulacro (eídolon) da inscrição do lógos na alma (met´epistéme), o filosofar ele mesmo.

* * *

O ocidental cientificista discordaria, e embasaria a sua antítese em diversas sentenças contidas nos livros sagrados das religiões, sentenças escolhidas a esmo e, quase sempre, desprendidas de seu contexto de enunciação, seja literário seja histórico. Exemplos extraídos do Corão:

“Os judeus dizem que Ezra é o filho de Deus, e os cristãos dizem que Cristo é o Filho de Deus, estas são as palavras que saem de suas bocas, eles imitam o provérbio dos incrédulos anteriores. Que a maldição de Allah esteja sobre eles, como eles serão mandados para longe!" [9:29-30]

"Ó fiéis, não tenham os judeus e os cristãos como seus protetores! Eles são apenas protetores uns dos outros e se você se vira para eles é um deles. Em verdade, Deus não guia um povo injusto." [05:51]

“Matá-los onde quer que vós os encontreis e expulsá-los dos locais onde eles vos expulsaram, porque a perseguição é pior do que o abate.” [2:191]

“Faça guerra contra os infiéis e os hipócritas. Seja duro com eles. Sua morada será o inferno, o fim de uma jornada infeliz.” [9:73]

Sentenças igualmente condenáveis poderiam ser encontradas nos escritos antigo-testamentários, nos Vedas hindus, num e noutro aforismo do Tao Te Ching, num poema budista tomado em avulso, numa carta paulina. A crítica mais imediata a um tipo de acusação é tentar voltá-la a seu promotor e, desta maneira, pode-se afirmar que também está escrito, em relatos medicalistas do século XIX, que a homossexualidade é uma doença (o DSM, código de patologias oficial dos conselhos médicos, sustentava essa afirmação até 50 anos atrás). Uma cavoucada a mais no baú de relíquias da Ciência traria à luz que muitos testes psicológicos, feitos no final da primeira metade do século XX, provavam que homens eram mais inteligentes e capazes, por natureza, que mulheres (e ignoravam toda a contextura social que produzia uma certa noção de homem e uma certa noção de mulher). Uma terceira busca nos porões laboratoriais revelaria que a antropologia evolucionista e a biologia, através de experimentos e pesquisas de campo, sustentaram a superioridade duma raça humana em relação a outra (o que justificou e endossou, em exemplo, Auschwitz).

O "atentado" não foi um movimento religioso, um movimento da religião islâmica, tampouco da religião-em-geral, tomadas como sujeitos do enunciado, mas uma prática humana articulada e justificada por um documento histórico atrelado a essa religião (o Corão, os Evangelhos e Epístolas, o Torá, a Gitá, ademais seu caráter de livros religiosos, são documentos históricos e reais; documentos “verdadeiros”, neste sentido específico). Do mesmo jeito, não foi "A Ciência" que enunciou estes discursos acima, mas práticas humanas articuladas a laboratórios, poderes jurídicos, investimentos financeiros, políticas públicas etc. Seria do interesse de qualquer indivíduo preocupado em levar adiante uma discussão sensata (que nem seja senso comum nem bon sens) a saída desta distinção razão-fé, religião-ciência, obscuridade-esclarecimento, ou que seja, e partir para uma analítica dos problemas que os coloque em termos de práticas, humanas e históricas, práticas que produzem dados e informações, conhecimento e sabedoria, e não colocar a culpa em Religião, Ciência, Razão, Fé ou em qualquer "outro", em qualquer “sujeito” que não a vida ela mesma, em toda a sua complexidade.

Já prevendo o argumento cientificista de que a sua prática está sempre evoluindo em direção ao verdadeiro e se altera constantemente – em oposição a livros e doutrinas religiosos que estão séculos, milênios atrasados em relação à vida atual – pode-se dizer que a ciência não "evolui", mas apenas altera a sua postura frente aos problemas que vão sendo operacionalizados e encaminhados (tanto problemas epistemológicos, no próprio campo da ciência, quanto problemas de natureza política e social, e isto é dito ignorando a própria arbitrariedade da distinção natureza-cultura). De fato, há um aprimoramento e delineamento cada vez maior no instrumental técnico e resolutivo que as práticas científicas legam à população (ou parcela dela), mas isto não significa que haja uma evolução, um desenrolar progressivo e linear do esclarecimento humano na história, no que toca à razão científica nos dar uma melhor capacidade de governo ou, mesmo, de vida. A pergunta clássica e inocente de J.-J. Rousseau: "pode o aprimoramento das ciências e das artes nos trazer mais felicidade?" Esse aprimoramento das tecnologias (físicas, sociais, políticas) nos lega mais "conforto" e “estabilidade”, decerto, mas esse conforto e essa estabilidade não equivalem, de antemão, à tal felicidade (conceito que encabeça a lista dos conceitos vazios por excelência...) mas sim a um embotamento nos afetos e vontades de mudança no indivíduo estável, adaptado e imerso no conforto. 

Se a religião é perigosa seria, justamente, por essa capacidade de capturar, agregar e ditar o modo tido por privilegiado para a condução da vida. A ciência, durante a história e ainda hoje, também legou, também lega pequenas ditaduras e "comprovou", através de seus encaminhamentos, diversos preconceitos e sensos-comum. O que garante o rigor da prática científica – em oposição a sua pretensa racionalidade soberana – é a sua pluralidade (mesmo em Física, a mais dura das ciências, temos modelos e modelos de entendimento da natureza, nem sempre parceiros...), e o mesmo se dá com as religiões e seus grupos, movimentos e investidas. Repetindo: um determinado grupo fundamentalista pode por a termo um determinado movimento, mas isto não legitima ninguém, lógica e eticamente, a afirmar que o "sujeito" desse movimento é um "indivíduo" chamado "Religião"; o mesmo para a Ciência, a Arte, as práticas de estado, determinadas correntes da filosofia e por aí se vai. 

* * *

Tendo em mãos o Corão, pode-se fazer uma leitura extremamente pacifista dele, ao se tomar a jihad como uma luta e um cuidado que o fiel tem para consigo mesmo. E pode-se tomar a jihad, noutro extremo, como um conflito fundamentalista de aniquilação da diferença. Esta é, aparentemente, a distinção entre o sunita e o xiita como tomada pelo ocidental para “relativizar” a estupidez dos islamitas (“um deles é estupidez e perigo à civilização; o outro é só estupidez”). O que não é investigado e pensado como variável relevante pelo cientificista é que a maioria da população muçulmana (mais de 80 entre 100 fiéis, diz o site da CIA) é de filiação sunita, e se a sua contraparte extremada é mais visível, talvez isto se deva às suas investidas mirarem, justamente, visibilidade (ameaças públicas, instalação de bombas em locais de grande visitação, atentados a personalidades e monumentos ilustres), ao contrário das filantropias, asceses e meditações que, estas sim, mereceriam ser associadas ao islã. Tem-se o agravante fato duma mídia que parece trabalhar, desde os atentados do 11 de Setembro, nesta produção de imagens anti-islâmica – o inimigo público da rodada.

Utilizando um pouco mais de minúcia neste ponto que não é o foco da discussão, pode-se questionar a própria divisão reificada em dado, em dois dados – sunismo e xiismo – da história do islã, já que esta divisão se dá em decorrência do falecimento de Muhammad (o profeta Maomé), no ano de 632 da era cristã, e do problema – tanto político quanto religioso; diferença inexistente não só para a sociedade árabe como para os impérios europeus seus contemporâneos, a exemplo de todo o sacro império romano-germânico que na época ainda se configurava – da herança do governo da comunidade islâmica: parte da comunidade havia escolhido, na Nidwa (“assembleia”, transliterado do árabe), como representante do profeta seu genro Ali ibn Abu Talib; mas, enquanto sua família preparava e se preparava para o evento funerário, alguns companheiros de Maomé (os sahaba, indivíduos que gozavam de prestígio na comunidade pelo seu contato mais proximal com Maomé) elegeram Abu Bakr como califa (“sucessor”, em árabe); Abu Bakr foi sucedido por Umar ibn al-Khattab, que foi sucedido por Uthman ibn Affan que, por sua vez, foi sucedido enfim pelo genro do profeta. O sunita, nesta narrativa, é aquele que segue a sunna (a prática) dos sahaba, apoia Abu Bakr como herdeiro legítimo do profeta e investe num movimento de unificação da comunidade islâmica pela autoridade de um califa. O xiita é aquele que apoia a decisão arregimentada pela Nidwa e crê que Ali ibn Abu Talib é o escolhido de Maomé. Usando mais da minúcia como método, é possível a chegada a um terceiro grupo, os kharijitas, já que, durante uma disputa xiita-sunita para a tomada do poder entre os homens de Ali (ainda não consagrado califa) e os do governador de Damasco Muawiyah (primo de Uthman ibn Affan, o último califa), foi realizada uma trégua política entre os dois pretendentes, o que desagradou a muitos fiéis, para os quais um tal julgamento só caberia ao próprio Alá (kharijita seria algo como “os que saíram”, em árabe). Os próprios kharijitas, levando a sério o ofício da minúcia, ainda podem ser divididos em Azraquitas, Najadat, Sufris, Ibaditas... O sunita, hoje, se subdivide em maliquita, shafiita, hanefita e hanbalita. O xiita pode ser categorizado em duodecimano, ismailita e zaidita. Nenhum dado é simples, e se assim ele se nos revela é em detrimento de toda a malha histórica que o sustém e o constitui como pacotinho de linguagem. De qualquer maneira, não é este o ponto que aqui interessa.

O problema, diria o cientificista, é que usando tal ou qual interpretação – seja literal ou alternativa – é possível transformar qualquer livro mal-intencionado num livro bom, do “bem”, bastando usar a ladainha religiosista de que “veja, não é bem assim, temos de ver o contexto, não se deve interpretar o texto tão literalmente...” A argumentação – que tem o seu valor, por sinal – é que se o texto deixa margem a esse tipo de interpretação pode e vai continuar sendo usado para fazer maledicências e a culpa é, sim, dele. A maior luta do mundo científico, continua, é ser o mais claro e distinto possível, é argumentar visando a construção de certezas e evidências; já com relação à religião dá-se o contrário: quanto mais obscuro, confuso e paradoxal melhor, já que, assim, é possível adequá-lo a qualquer utilização. “Se é pra matar, gritamos jihad e nos explodimos; se é pra discurso na TV, então jihad é uma luta e um cuidado que o fiel tem para consigo mesmo.” O cientificista se enfurece com a ambiguidade dos “discursos da Religião”, seja ela qual for, e apresenta-se pouco tolerante em relação a todo registro que não sabe bem o que quer dizer ou não diz bem o que sabe (aí inclusos a pintura modernista, o cinema experimental, a musica serial, o anarquismo, todo sistema enfim que não pretenda representar nenhum objeto em específico).

O filósofo muçulmano Averróis insistia, isto no século XII, que a busca da verdade das coisas a que chama filosofia devia se dar através da razão, mas esta deveria ser amparada pela religião, entendida como conhecimento íntimo da obra de Deus e como preocupação em relação às ações humanas. A verdade (razão sobre as coisas) não contradiz a verdade (religião de Deus e dos homens), e se um entendimento mútuo não se dá é por um problema de interpretação de uma na esfera da outra, por uma desarmonia que separa a ciência-do-filósofo da mística-do-teólogo, e ambas das verdades óbvias do povo. 

* * *

Numa última tentativa de sustentar sua posição preconceituosa, o cientificista dá um de seus braços a torcer e assume que a existência das instituições reguladoras é real, que, de fato, pode haver uma distinção entre tais e os documentos por elas coptados, entre tais e os personagens históricos capturados pelas mesmas, e que todas estas podem ser associadas à categoria simples a que nomeamos como dado. Concordando em parte com a lógica descontinuísta do esquema quádruplo, o advocatus da ciência ameniza os seus argumentos de promotor em relação à religião – o que torna a pena desta mais branda – mas não consegue, por mais que se esforce, por mais que pense, analise, esmiúce, quantifique, ele não consegue incluir a ciência nesse joio todo. Porque “ciência”, afirma, é apenas um nome para determinados procedimentos e programas de pesquisa, e não referencia nem implica nenhuma norma moral em sua atividade, nem, tampouco, nenhum guia que indique como proceder dentro da própria ciência, sendo, neste aspecto, autônoma em relação a todas as outras instâncias (como a religião, o estado, o mercado, estes sim aplicáveis ao esquema quádruplo). A atividade científica implica também atividades políticas, assume; envolve instituições financiadoras, querelas conceituais, mas não vê o problema na ciência ela mesma, na ciência-em-si, numenal e independente de todos esses fenômenos menores que manifesta, mas em coisas mais baixas, mundanas e – seguindo um platonismo barato, superficial e despolitizado – ilusórias, desvinculadas da epísteme, do real, do eidos da ciência, coisas como a influência intelectual, a busca de poder ou o dinheiro.

Ora, se a religião é acusada de impiedade e corrupção (asebas), à maneira de um Sócrates, e se tal acusação se ancora nas práticas institucionais associadas a esta religião, a culpa não é da religião, tomada em isolado, mas de toda instituição reguladora que justifica a sua dominação social através das verdades que profere e nas quais se sustenta. As instituições religiosas, por vezes, por muitas vezes e de fato, fazem valer as acusações de seus promotores, os paladinos da razão e do laicismo; mas a ciência idem, operando de maneira distinta à religião, porém, assim como ela, normatizando e regulando a vida dos homens de boa ou de má vontade. 

A "norma moral" da ciência existe, a contragosto do cientificista transcendental, e é uma noção de verdade (diferente de muitas outras noções de verdadeiro que foram construídas na história, como a emunah, a alethéia, a veritas, a parrhésia...) que visa não compreender e pensar as coisas, não tornar-se um com o que se sabe, mas prever e controlar essas “coisas mesmas”, o que cria uma descontinuidade radical entre o sujeito e seu objeto de conhecimento (ainda que, fenomenologicamente, se considere a existência de um como condição sine qua non para a existência do outro). Nos antigos saberes alquímicos – de origem judaica (kabbalah) e islâmica (al-kimia), principalmente – praticados durante todo o período pré-revolução científica, buscava-se a constituição de um conhecimento sobre o mundo e seus elementos no qual tanto o sujeito alquimista quanto o elemento alquímico em questão sairiam transformados dessa relação de enfrentamento. Entender a alquimia como uma pré-química – um saber escolástico como um saber racional em desenvolvimento – seria, em termos lógicos, fazer comparações entre elementos de conjuntos inconciliáveis. Não há intersecção possível entre a escolástica (saber do sujeito por ele mesmo através das coisas do mundo, resultando na transmutação de um e de outro) e o racionalismo (saber do mundo e suas coisas por um sujeito tomado por óbvio, um sujeito que é a primeira verdade, intuitiva e imediata, na cadeia das razões cartesiana). Enquanto a primeira visa uma indissociabilidade entre o homem e o mundo, a segunda translada o saber de uma experiência imediata para uma mediação utilitarista que, à proporção de seu rigor e delineamento, afasta ainda mais o homem de sua realidade como duas instâncias substanciais e independentes, como “dadas”. Para preencher este vão, esse abismo entre sujeito e mundo, é que se dá tanta importância ao método nos saberes modernos (a ponte entre um e outro; é o método que é o "guia que indica como proceder dentro da própria ciência").

Se o argumento usado para atacar "religião" provém das instituições a ela associadas, que insistamos nesse argumento e ataquemos, também, outras "instituições" (ciência, mercado, sociedade civil, a educação, o amor, a saúde, a justiça) e não nos deixemos capturar por elas, construindo, nelas inseridos, espaços de liberdade, de criação e de autonomia, individual e coletiva. A prática científica, abstratamente tomada por autônoma, deve, isto sim, ser vista como aristocrática, e apoiada por uma oligarquia financiadora de si mesma (a tripartição demos-aristói-oligoi postulada por Aristóteles em sua cidade ideal); afinal, cria um saber que regula e normatiza diversas práticas na sociedade civil e, principalmente, um saber que não é acessível a esta sociedade civil (talvez alguns, e só alguns, dos produtos desse saber utilitarista, mas não o saber e seu modo de procedência; afinal, não tomamos parte, democraticamente, das tecnologias maravilhosas já construídas pelas ciências da computação; os serviços públicos de saúde nem de longe, nem de muito longe, possibilitam acesso às terapêuticas mais avançadas que a ciência médica já desenvolveu; isto, inclusive, parece não denegrir a medicina ou as informáticas para o cientificista). Para além disso, e ainda insistindo neste ponto, é válida a lembrança da recente greve federal dos docentes de 57 (de 59) universidades e 34 (de 38) institutos federais, que tinha como pauta principal não o reajuste salarial, não a construção dum novo plano de carreira, mas o geral "melhores condições de trabalho". E isto por que? Porque devido ao sucateamento instrumental, o cientista é obrigado a pesquisar não o que quer, o que gosta ou o que acha necessário ao desenvolvimento duma "ciência pura", mas é obrigado a pesquisar temáticas do interesse de seus financiadores oligarcas (sejam eles do estado ou do mercado). Esta prática de financiamento, inclusive, é que é o lugar-comum nos modos de procedência em pesquisa, e não a tal da "pesquisa desinteressada".

Se a religião, em alguns contextos, incita fiéis a realizarem atos que julgamos loucura ou estupidez, a ciência, em alguns contextos, também produz e reforça relações de exploração (mercadológica, jurídica, etc.). Se a religião, em alguns contextos, parece obscurecer o pensamento, a liberdade, o bom governo, também produz e reforça situações ditas revolucionárias (cito, na esteira da discussão sobre o islamismo, a Revolução Iraniana, transformação do Irã monárquico de Reza Pahlevi numa república islâmica, comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, de 1979 até 1989; ou a ainda ressonante deposição do ditador egípcio Hosni Mubarak apoiada pela Irmandade Muçulmana, que combateu também a ditadura militar do Conselho Supremo das Forças Armadas, colocando na presidência um candidato civil).

Se há um "em-si puro e bom da ciência" também deveríamos ser mais complacentes com a existência de um "em-si" para a religião. Se o problema da ciência não está na "ciência em si", por que o da religião estaria? Problema insolúvel que merece, ele mesmo, dissolução. Deixar de lado esse "em-si" das coisas e focar seus efeitos e políticas, que não são acidentes, fenômenos ou detalhes. Não há saber – seja ele científico, religioso, governamental, jurídico, artístico – que não sustente regras de normatividade e produza efeitos (diretos e indiretos) na vida das pessoas. O que distingue uma ciência de outra é o objeto, pois o "sujeito" é invariante, é sempre o mesmo (racional, liberal, de direito). "Pensar a subjetividade" é pensar a malha de registros (informação) e instituições (conhecimento) que produzem as coisas em sua evidência (dado) e, ao mesmo tempo, cria condições para as práticas de liberdade (sabedoria). Mas se se insiste em falar num espírito científico como busca descompromissada da verdade das coisas (independente das picuinhas acadêmicas) por que não se pode falar num espírito religioso como busca implicada, sempre implicada, da verdade do sujeito (independente das escleroses que vemos nas instituições religiosas...)?
________________________

[1] Disponível em: 

domingo, 17 de junho de 2012

Carta a um viajante

Sempre que o sujeitinho empreendia uma viagem se referia ele ao deslocamento da sua terra natal até um ponto de destino, seja este qual for. A viagem equivalia ao movimento de saída, à própria caminhada daqui até ali, aos ventos no rosto, a chuva que assolou a caravana, os assaltos que a comitiva sofreu, a fome, a sede, o choro, o riso, a música, as amizades realizadas e as inimizades conquistadas, até que a chegada pusesse um fim à viagem e as histórias sobre o ocorrido pudessem, finalmente, se sedimentar. Kemp´s Jig. O destino não era o objetivo, mas o termo da viagem, a sua morte, fim e descanso. Com nossos aviões ultrapassando a velocidade da música e todas essas tecnologias da inteligência a facilitar a aquisição de dados e informações que lá se produzem, "viajar" e "conhecer" passaram a significar "sair dum lugar e ir para outro" ou "bem representar as coisas de lá", com estes lugares e caminhos situados no mundão extenso (res extensa) lá fora. "A verdade está lá fora", não é isto que dizia um já esquecido seriado da TV? Mas "ir pra fora" deixou de ser um desejo pelo ar fresco, pelo sol que escalda, e passou a operar como a saída de um dentro para outro dentro. Sai-se de casa para o trabalho, dos estudos para o mercado, de um país para outro, mas o fora parece que sumiu. Virou lugar de passagem, virou túnel. Que é este fora? Quem sabe!? Se se soubesse, seria um dentro. Achei bom, muito bom que você tenha se posto a nomadar, e achei bom, muito bom que você tenha aceitado a minha sugestão de "cartear" a nossa relação à distância. Os apóstolos carteavam. Os estóicos também. Os vagabundos todos adoram cartear. Beatniks, hippies, punkiesgrungies, indies, todos esses dentros que já foram foras, que já levaram foras, todos esses vagabundos que hoje são modulações de mercado demandam um fora, e demandam cartas, cartas que são como que placas sinalizadoras do caminho que já percorreram e, mais, sinalizadoras da tremulação que é olhar para o horizonte e não saber para onde se está indo. O vagabundo é o que vaga. Viajar à Paris e visitar a Torre, o Arco e o Louvre não é viajar, mas adquirir cartões-postais, adquirir dentros, e não sair pra fora. E os bares e cafés dos nauseabundos, as putas lânguidas da noite, as bibliotecas homéricas? Visitar Paris não seria conhecer a Paris que ninguém conhece, uma Paris que é só sua e que só existe por causa dessa sua vadiagem? Sair duma rotina é condição para a vida e a verdade que, como já dito, está lá fora; mas condiciona também a criação de outro dentro e, mais grave e crônico, condiciona a ilusão de que se está experienciando um verdadeiro fora, um verdadeiro ar fresco. Pobre viajor: mudou-se, mas sem se mudar. Antes, o contrário: permanecer em lótus, mas distinguir-se inteiramente de si - ah! o asceta, este ginasta da alma. A viagem é a criação dum fora e criar um fora é inverter a relação do dentro estável com o fora-que-passa. O sedentário - esse filósofo de gabinete, esse homem sentado - vive no dentro, e vai pra fora para se chegar a outro dentro; o viajante subverte esse esquema e faz do fora a sua rotina e do dentro - a cidade, a estalagem, o quarto - o seu lugar de passagem. O conhecimento de gabinete é ir ali, e só sair lá fora para que se chegue a um novo aqui, a um novo estabelecido, outro estabelecimento. Para o viajante, as cidadelas e seus conchavos muito pouco importam à verdade que ele busca, uma verdade que não é obtida na saída de um lugar para outro e nem é a boa representação, o álbum de fotografias, das coisas que por lá residem. O filósofo sentado vai pra fora em busca da verdade. O viajante, ao contrário, o viajante verdadeiro (mesmo estando imóvel), já vive no fora (mesmo fixado num dentro), já vive na verdade e na vida (que é o próprio caminho e a ele equivale, ponto por ponto) e faz apenas paradas ocasionais num e noutro dentro para descansar, tomar uma cerveja e ter mais uma história pra contar, até que, descansado, se canse de falar, de contar a história e se ponha em aventura, busca e construção de mais outra história, quer ela venha a ser narrada quer não. Vai lá, vai-te embora, vade retro, "bênça" à Deus e adeus...



quarta-feira, 16 de maio de 2012

A leitura como arte

Citação direta:

... não existe um tal substrato; não existe "ser" por detrás do fazer, do atuar, do devir; o "agente" é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito. Os cientistas não fazem outra coisa, quando dizem que "a força movimenta, a força origina", e assim por diante - toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem, não obstante seu sangue-frio, sua indiferença aos afetos, e ainda não se livrou dos falsos filhos que lhe empurraram, os "sujeitos" (o átomo, por exemplo, é uma dessas falsas crias, e também a "coisa em si" kantiana).

Que dizer da sentença acima? Depende, eu diria. De quê? Depender é sempre pender para um outro, a coisa que depende sempre depende de outro, depende de coisas que não ela mesma. O interlocutor de Sócrates, ao ignorar que ignora, precisa dele, esse filósofo chato, esse tavão, esse inseto ferroso, para lhe apregoar a verdade na carne viva, uma verdade que não é um modelo de vida nem, tampouco, um saber a ser transmitido, mas um incômodo em relação ao seu ser mesmo de sujeito e à sua existência inteira. Algo parecido ocorre com o stultus do estoicismo, esse indivíduo que cuida de seus bens, cuida da família, cuida do corpo, cuida das coisas públicas, mas não pratica o cuidado de si mesmo; disperso de seu eu enquanto objeto de cuidado, essa atenção para si não pode vir de si, já que o que caracteriza a stultitia, esse estado do homem comum, esse homem tão longe da sapientia estóica, é, justamente, a desatenção de si, o que torna a presença do outro imprescindível numa tal prática filosófica. Depender é, repito, pender para um outro para ser um eu, para ser um. Ora, se peço ao senhor leitor que comente a citação inicial, e não lhe dou nenhuma informação auxiliar para a hermenêutica da citação, muito pouco se avançaria em nossa conversa, já que o máximo a ser feito seria reproduzir algumas frases do período acima com outros termos. Esbanjaríamos vocabulário, mas sem avançar na discussão.


Se digo, porém, que a citação é de F. Nietzsche (e, de fato, o é; pode ser encontrada na primeira parte de seu Genealogia da Moral), tudo muda. Um outro aparece e retira a sentença da ignorância e da estultícia. Um movimento se dá, uma relação se estabelece e o pensamento pode se desenrolar, agora. Pelo martelo de Nietzsche, a frase pretende destituir o sujeito psíquico de sua individualidade, independência e liberalidade, colocando o homem como fruto dum conjunto de forças históricas e propondo uma filosofia destituidora de toda origem e fundamento universais, articulando uma política da saúde e um pensamento do corpo, em oposição aos idealismos e moralinas exangues que sanguessugam o ocidente. Caso o acaso, porém, tivesse lançado essa sentença num dos poucos livros de H. Bergson, filósofo de estilo imagético, escrita-pincel, teríamos agora uma crítica a todas essas filosofias abstratas que não abordam o objeto nele mesmo, em sua duração concreta e temporal, mas em seu correlato espacial e linguajeiro, tomando por problemas reais mal-colocadas aporias, problemas insolúveis. O psicólogo B. Skinner, por fim, poderia pronunciar a mesma sentença e, com a mesma, quereria propor um ataque mordaz ao mentalismo e, ao mesmo tempo, ao comportamentalismo meramente metodológico, propondo noções como Operante e Evento Privado, constituindo uma filosofia do comportamento independente tanto da introspecção quanto da análise e mensuração descontextualizada do organismo a ser estudado.

Escrever é uma arte, dizem. Bilac "trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua" e, "longe do estéril turbilhão da rua", escreve. No segundo parágrafo do mesmo soneto, A um poeta, diz:

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

E, assim dizendo, o que o poeta talha e constrói? A poesia de e para o Bilac é análoga a um processo fabril, uma maquinação industrial ou, ainda melhor, um ofício de escultor, de ourives. Poesia como templo grego e vaso chinês, como forma feita e bem feita. Já completada, essa boa forma deve olvidar todo o sacrifício do santo beneditino ao conceber, gerar e dar luz a seu rebento de palavras. A poesia como objeto da arte, como obra da arte. Essa fabricação artificial, destarte, é pensada em dois instantes: há o trabalho do sujeito-artista e há o objeto-de-consumo resultante deste trabalho. A imaterialidade do trabalho do sujeito é recomposta por biografias, correspondências pessoais, rixas deste sujeito-artista com outros sujeitos (artistas ou não, humanos ou não). A materialidade do objeto é, por sua vez, alvo dos exegetas, teóricos e estetas a interpretarem e alocarem esta obra entre tantas outras obras que já atravessaram o crivo dos acadêmicos ("parnasianos aqui, simbolistas um pouquinho mais pra cá, românticos lá pra trás e modernistas... modernistas... deixa eu ver, os modernistas ficam... er...").

A hermenêutica da atividade poética se divide em duas, então. Uma do sujeito (o que nos legará biografias, compêndios e relatos historiográficos) e outra do objeto (realizando interpretações sobre o que quis dizer a obra, qual a relação dela com as teorias de base da sua arte e como se pode categorizá-la num ou noutro movimento artístico, já estabelecido ou não). Um modo interessante de se recortar o problema - e que, usando o vernáculo husserliano, opera a distinção sujeito-objeto típica da atitude natural, compartilhada tanto pelo senso comum quanto pelo saber conceitual científico -, mas que põe no mesmo palco, em implícito, um terceiro personagem nesta historieta: de um lado, os especialistas do sujeito-artista; de outro, os especialistas do objeto-de-consumo; do lado de fora, como um terceiro excluído, está a figura do leigo. Que cabe ao leigo, este amador, este não-profissional, frente a esses latifundiários da arte? Consumir, apenas consumir, se nos mantivermos neste esquema no qual a arte se espartilha e se divide entre alguns como num conchavo de pós-guerra.

Este dualismo bilaquiano parece nos levar a uma contradição nos conceitos que subrepticiamente articula. De início, cria uma separação entre a linguagem poética - advinda de Apolo e das Musas, do Monte Parnaso, da ética, da estética, da noética, da ascética, palavra que dança, que musica, que teatra, que palavra, que palavra!, se insinua, nua, toda nua, nada sua, fora da rua, "No aconchego / Do claustro, na paciência e no sossego", palavra bela, forte e graciosa "na simplicidade" - e a linguagem prosaica, aquela mesma do "estéril turbilhão da rua". Temos, aí, não apenas duas apropriações da linguagem, ou dois usos duma mesma coisa chamada linguagem, mas duas coisas diferentes, duas noções da atividade linguística que diferem por natureza: uma voltada para a ação no cotidiano, a representação da coisa, a geometrização da experiência, a percepção do objeto, o dizer de algo; e outra que se dá como uma experiência nela mesma, uma intuição em velocidade infinita, um dito puro, uma primeiridade, um fluir, um submergir, um sufocar-se, um afogar-se nas águas espirituais da escrita artística. Neste ponto, duas metafísicas incompatíveis se desenrolam, já que o mundo prosaico não é nada além dum espaço vazio no qual coisas e homens constituídos se inserem e se comunicam, fornecendo uns aos outros informações e referências, ao passo que o mundo do poético, tomado e levado ao extremo, é, em verdade, uma infinidade de mundos, de existências, de atualidades e virtualidades, a se acoplarem, se interferirem e ressonarem mutuamente, ainda que cada um desses mundinhos se experiencie como um átomo, um individuum. A contradição que pretendo mostrar é uma outra, não obstante, é a sua consequente.

Se, como dito, escrever é arte, e arte é trabalho, constitui-se nessas equivalências um ambivalente produtor-operário do texto artístico e um consumidor dos objetos deste sistema de produção de bens. Mas, como a escrita tomada como trabalho artístico demanda uma metafísica da interferência, o leigo leitor de poesia vê-se na impossibilidade de consumir a obra como o homem consome a sua refeição, o modelo consome a sua moda, a família consome a sua novela, o percipiente consome o seu percipii ou o filósofo consome os seus princípios lógicos, por não se tratar duma monadologia, duma unidade atômica a apreender, cognitiva e cumulativamente, os dados lançados ao mundo, mas um mundo que, ele mesmo, se cria e se recria ao chocar-se com a alteridade, tornando o processo cognitivo um processo de invenção, de si e do outro. A contradição que tanto quero exprimir é a de que o leitor só pode ser entendido como um consumidor, um devorador, se nos mantivermos no registro da palavra que representa o mundo e faz a correspondência deste mundo no sujeito do conhecimento; mas se a palavra adentra no outro circuito, no circuito da arte e de sua velocidade infinita, saímos também da correlação produtor-consumidor, necessariamente, e caímos na relação produtiva ela mesma. O leitor de poesia não consome nada, já que a afirmação faz coligar duas metafísicas, dois partidos inconciliáveis. Aliás, a própria ideia de contradição só responde ao modelo geométrico da linguagem, no qual contradizer-se é sustentar uma representação e, no mesmo instante, a representação que lhe nega. Adendo: dizer que o leitor é um consumidor não é contraditório, já que a contradição se dá apenas no plano das formas, no plano das diferenças de grau. A poesia diferencia-se da linguagem cotidiana por natureza. O poético e o prosaico não são dois modos de abordar a palavra e as coisas, já que "as coisas" só existem, como realidades extensas e representáveis, no linguajar que comunica e referencia. Com a poesia, é a atividade criadora, o movimento inventivo e a produção que está em jogo, e em constante jogo.

Com a poesia cabe, tão-só, produzir. Escrever é arte e trabalho, sim, mas ler também. Cozinhar é arte (Culinária), mas comer, para além de consumir, também pode ser uma poética (o gourmet). Destilar a cerveja em quantidades ideais de água e álcool, de cevada e trigo e malte e lúpulo, é uma arte (Cervejaria), mas saber apreciar esta cerveja é, igualmente, uma arte (o sommelier). Organizar sonoridades de maneira agradável ou intencionalmente desagradável, harmônica ou atonalmente, visando este ou aquele efeito, esta ou aquela conjuntura, é uma arte (Música), mas saber acompanhar e recompor no espírito os movimentos articulados por estes sons demanda muita poesia. O cinema, considerado como o enquadramento, a decupagem e a montagem de diferentes imagens em movimento num plano-sequência virtual, configura uma superfície de legibilidade, como diria J-L Godard, que deve não apenas ser vista em sua evidência e obviedade, mas lida, criticizada. O crítico culinário, o crítico musical, o crítico de cinema, o crítico de poesia, o crítico de arte. O papel do leigo é criticizar, mas este leigo é tanto equidistante do leigo-senso-comum a devorar e tomar como óbvias as imagens que lhe são colocadas quanto do sábio de bon sens, o filósofo cartesiano que, aqui, assumiria aqueles papéis de especialistas do sujeito e do objeto artístico, de crítico de arte profissional, e não mais amador, o amador que ama e adentra no movimento da arte, tornando-se, ele mesmo, movimento, e não mais uma coisa-que-pensa. Se Kant criticava no sentido de colocar as condições formais de possibilidade do conhecimento - espaço, tempo, substância, relação de causalidade etc. - aos moldes de uma arquitetônica da razão, a crítica amadora e leiga investe numa "História da razão pura", aquela mesma que o prussiano diz ser uma lacuna a ser preenchida em sua doutrina transcendental. O filósofo-arquiteto busca fundamentar seus agregados sensíveis num sistema, apoiando e fomentando assim os fins essenciais da razão, isto é, a unidade dos conhecimentos diversos numa ideia; já o amador agencia ideias, faz com que pendam e se dobrem uma na outra, e produz sentido e calor ao atritar essas partículas moventes. O estilo, já dizia G. Deleuze, é o movimento do conceito, tanto em filosofia como alhures.

Félix Ravaisson - curador do Louvre de 1870 até a sua morte, em 1900 - utilizava da seguinte analogia para ilustrar essas duas críticas. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira é dizer que todas são cores (laranja, amarelo, verde, azul, anil...). Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que aponta para o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm.

Tomo quatro películas para uma demonstração ligeira: Um Cão Andaluz, filme surrealista de 1928, escrito e dirigido por Luís Buñuel e Salvador Dalí; Akira, um anime cyberpunk de 1988 baseado no mangá homônimo de Katsuhiro Otomo, e dirigido pelo mesmo; A Liberdade é Azul, filme de drama dirigido pelo polonês Kieslowski, em 1993; e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, comédia francesa de 2001 do diretor Jean-Pierre Jeunet. O que têm em comum: são filmes, todos. E o que é um filme? Qual a essência comum que os mantém reunidos nesta categoria una? Digo-lhes: nada. Simples e puramente. Temos decupagem e enquadramento, trilha sonora e roteiro, personagens e cenários. O que cada um destes filmes entende por cada uma destas coisas difere tão gritantemente dos demais que só com muita ignorância e mouquice de nossa parte podemos dizer que se tratam de uma mesma coisa, que se tratam de "filmes". Se todos nos apresentam 24 fotogramas por segundo, o modo como montam, modulam e enunciam tais imagens é díspare. Cada filme monta uma experiência diferente, configura uma noética muito particular e organiza um mundo de coisas assim e não assadas. Estética = Política? A mulher que tem a sua íris fatiada por Buñuel seria parte de um experimento na Neo-Tókyo de Akira. A viúva Julie não seria tão sorumbática caso vivesse na França de Jeunet. Kaneda não teria propósitos tão bem definidos no mundo onírico de Um Cão Andaluz. E a radiante Amélie não poderia co-existir com o mundo monocromático de Kieslowsli. Cada personagem, objeto, ator, jogo de câmera, plano de fundo é idêntico a seu mundo. Podemos dizer o mesmo da música e da literatura. O que faria Paulinho da Viola na orquestra de Carlos Gomes? Como soaria o piano de Ernesto Nazareth junto dos sintetizadores do Marcelo D2? E se pudéssemos ouvir a Ivete Sangalo cantando Chico Buarque junto da Bidu Sayão? Dowland, Buxtehude, Salieri, Beethoven, Listz, Debussy e Prokofiev - todos músicos clássicos, todos "eruditos", e todos dessemelhantes - fariam um bom jazz fusion, juntos? Jesus se inspiraria lendo o Manifesto do Partido Comunista? Como viveria o príncipe maquiavélico na politéia platônica? O que faria Kant para consolar as angústias de Werther? Como Freud interpretaria os sonhos de Josef K. e Gregor Sansa? O inimaginável, imagem impossível. Alocar um mundano para um mundo outro que não o seu causaria a entropia da parte recém-chegada, do ambiente a recebê-la ou de ambos. Choque de universos, de cosmos, de mundus, e mundos que não se colam (mas que podem se bricolar; a natureza da criação poética poderia ser investigada nestes termos, inclusive...). O que é uma música? E um livro? A resposta, mutatis mutandis, já foi dada no correr do parágrafo. Filmes, músicas e livros não são coisas, mas sim experiências políticas.

Podemos, insisto, definir a coisa tomada nela mesma, numa falsa imanência - assistimos comédia, ação, horror; ouvimos sambas, rocks, músicas clássicas; bebemos Skol, Brahma, Heineken; lemos Gogol, Wilde, Kafka; provamos yakissoba, macarronada, lámen -, o que nos legaria uma representação vazia, já que tomamos as coisas como elas se nos aparecem em sua obviedade fenomenal, já serializadas e entificadas em marcas, tipos, gêneros, categorias ("são todos filmes, músicas, cervejas, livros, comidas..."); ou dizer do modo como as suas partes se agenciam, configurando a sua totalidade, e como esta totalidade, imenso articulado de intensidades, produz essas mesmas partes. Falamos, agora, não em "filmes", mas em cinema expressionista por este jogar com contrastes (luz e sombra, forma geométrica e forma indefinida, bem e mal, belo e horrendo), ou em neo-realismo italiano (apresenta temáticas cotidianas em seus roteiros e, mais importante, constrói imagens puras, imagens que não demandam nenhuma ação, nenhuma resposta) ou outra estilística, podendo estas serem cômicas, de horror, que seja. Esse exercício de leitura, de inserção numa imanência pura pode e deve ser continuado para além dos procedimentos de montagem da imagem mesma (em exemplo, poderíamos supor que o neo-realismo surge produzindo imagens cinematográficas que não demandam reações dado o contexto pós-segunda guerra, a condicionar descrença quanto às ideologias totalitárias e organizadoras da vida, quaisquer que sejam). A imanência, então, clama uma filosofia da relação – filosofia da vida e de suas relações -, uma filosofia prática que não se pauta pela discussão do método (“como posso bem conhecer o objeto?”, “qual a melhor abordagem frente ao objeto?”...) mas da ação; se aquela pretende “conhecer absolutamente” antes de agir sobre as coisas (ou mesmo independente de tal ação), esta não quer conhecer para agir (visto que o mundo já é ação) mas inventar as articulações responsáveis por uma ação que já se dá, possibilitando mais e mais ação (logo, mais e mais conhecimento). Uma filosofia da imanência pura recusa as epistemologias identitárias (constituidoras das caixas-pretas do sujeito especialista, do objeto dominado e do leigo band à part) e transformam a teoria do conhecimento num exercício vital, de construção da vida, e vida construída à maneira duma obra de arte.

Arte, inclusive, vem de ars, termo latino que designa tanto um saber e as práticas, técnicas e obras que lhe são derivadas, quanto um ato, uma ação, uma energia, um movimento. Retomando Olavo Bilac, vemos que o poeta - tomado como o produtor de informações a serem fagocitadas por um terminal de recepção - deve enxugar o suor de sua testa, esconder as máquinas, guardar para si todo o trabalho hercúleo que teve na esculturaria de seu texto sacrossanto e só revelar, nos altares do templo, o objeto óbvio, a obra dada e acabada, pronta para o consumo do mortal. Os atos, ações, energias e movimentos que serviram de condição de suporte para o produto artístico nada tem de ver com ele, dizendo Bilac aos poetas que

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício

Este terceiro parágrafo do soneto desenvolve um pouco mais o que já foi prenunciado no segundo ("Mas que na forma se disfarce o emprego / Do esforço..."). Se a arte é a boa forma, o templo solidamente erigido, o crítico profissional deve buscar os "andaimes do edifício". Não é este o trabalho a ser desenvolvido pelo leigo amador, já que ele opera noutro regime de verdade. O profissional absolutiza, o profissional conhece a informação adequada, a que melhor corresponde e representa o mundo dado. O amador, o artista leitor, por sua vez, relativiza o saber; não o afrouxa mas, ao contrário, fabrica o seu rigor colocando-o em relação de dependência com outros saberes e, assim, estabelece um plano de tendências, uma inserção na história, uma reunião de imagens que não equivale a um conjunto de informações definitivas sobre um algo; ao invés de - pretensão de filósofo - fundar e findar o conhecimento, esta reunião de imagens demanda consistência, demanda mais imagens, mais criação.

Bergson e William James, em suas constantes trocas de cartas, já falavam desse modo de produzir conhecimento que demanda não só uma nova metafísica mas um novo modo de exprimí-la, deixando a dedução lógica à parte e investindo na metáfora, na criação de impressões de conjunto, intencionando levar o leitor para além dum simples convencimento, levá-lo a experimentar todas as nuances, cadências e tonalidades do pensamento, fazê-lo acompanhar os percursos e sinuosidades do pensamento, recriando-os em seu espírito. Escrita musical, pictural, escrita-dança, imagem-movimento (e não simples imagem-em-movimento, simples coisa-que-muda). O belo livro de Bergson sobre o riso cômico é um bom exemplo desta operação do espírito, no qual o filósofo recusa de pronto as concepções acerca do cômico que pululam em seu tempo. Dá atenção especial à definição de Yves Delage, que trata o riso como um relação abstrata entre ideias no espírito, uma desarmonia entre o efeito e a sua causa. Apresenta o trabalho de alguns psicólogos como Ribot, Stanley Hall e Kraepelin e diz que, embora as conceituações destes não se excluam, elas respondem o problema de maneira distinta. A inculcação de Bergson não se dá pelas respostas oferecidas – “estão certas, estão erradas” – mas pelo modo das mesmas abordarem a questão. O campo problemático é resolvido, sempre, com o cerceamento dum conjunto-solução, conjunto geométrico, a compreender este e aquele caso. Traça-se um círculo e, dentro dele, vamos jogando as experiências específicas. Duas estranhezas: teremos situações cômicas que não estão dentro do círculo demarcado (estreiteza conceitual) e situações desgraçadas que inapropriadamente estarão (generalização indevida).

Esta metodologia intelectual satisfaz as exigências da lógica no que toca à tessitura dum enunciado firme e vigoroso. Dão a “condição necessária”, mas abstém-se da “condição suficiente”. Bergson, daí, procura em fontes diversas - “uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina” – não uma essência generalista mas os procedimentos de fabricação do risível. Ao invés de encerrar o cômico numa gaiola conceitual, fala do funcionamento da comicidade (e, mais profundamente, da intenção da sociedade-que-ri), o que dará ao leitor de sua obra O Riso não uma formulação receituária, mas um conhecimento flexível e útil – como o de um amigo frente a outro – sobre o cômico, forçando-nos e nos incentivando a encontrar e produzir efeitos semelhantes ao cômico-ele-mesmo. Ao invés de sabermos sobre a risibilidade, teremos de trabalhar, teremos nas mãos trabalho e mais trabalho para criar o riso. Uma filosofia que demanda não só condições lógicas para o acesso ao conhecimento, mas condições práticas, éticas.

A binaridade construída ao início do texto - linguagem poética, linguagem prosaica - pode dar a entender, como já colocado, que existem duas maneiras de se utilizar a linguagem, a mesma "coisa" chamada "linguagem" quando, em verdade, tratam-se de duas "linguagens" de naturezas distintas, duas metafísicas inconciliáveis em operação. Dito isto, não dá para reduzir a problemática, meramente, à proposição de duas modalidades de produção de conhecimento, já que fazer isto seria separar singularidades em duas categorias unitárias, visando bem identificá-las e representá-las (e este é o procedimento de apenas uma dessas modalidades). Como a poética pode se dar, então? Ela pode sempre se dar, oras, já que sempre se produz algo, mesmo no consumo. A exigência de exclusividade e separação fica para a geometria do cotidiano. A poética não como um modo de construír, mas de fazer, de facere, de sacrum facere, sacrificar e dissolver o objeto na temporalidade transespacial que lhe constitui. Um movimento rumo à interioridade das coisas, de ruptura com os hábitos intelectuais condicionados. Poetizar é, antes de estruturar poemas, de construir formas ditas poéticas, uma inversão no percurso natural do trabalho de pensamento. O ato de liberdade poética deve abandonar os conceitos prontos que estão à mão, no espaço, ou, melhor, deve temporalizá-los, reconstituir seu processo de constituição, de individuação, criar novas semânticas e até novas maneiras de se conceber o pensar, entendido não mais como a correlação de um sujeito com a realidade dada, mas, agora, como a inserção no movimento criador das imagens anteriormente tomadas por óbvias. Não é somente a verdade sobre o mundo que muda, mas é o próprio mundo, coletivo articulado de proposições, de homens e coisas, que muda, o próprio mundo é mudança, nos legando problemáticas, diferenciações e histórias. A poesia é apenas o ofício de não deixar a prosa, imersa em ignorância e estultícia, esquecer-se disto...

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Sou do tempo em que Merthiolate© doía II (ou "Que é isto, o Conceito?")

A filiação seminal de Sartre e Camus se finda - o marco-zero da queda - quando este escreve o seu L´homme révolté. Freud e Jung, mesmo concordando sobre a existência dum inconsciente e de seus mecanismos de repressão, não conseguem mais suportar o relacionamento devido à fixação do primeiro pelo caráter sexual do desejo e pela coletivização e espiritualização do inconsciente estabelecida pelo segundo. Muitos concílios foram conjurados para resolver uma querela quase pessoal entre dois marmanjos da comunidade cristã, a saber, se o plano de salvação deveria ser restrito aos que abraçavam as tradições judaicas, como dizia Pedro da Galiléia, ou se a Boa Nova tinha de ser traduzida na realidade dos povos pagãos, como ensinava Paulo de Tarso. Como sujeitos tão próximos, tão unha-e-carne, ou mesmo os indiferentes - podemos pensar noutros exemplos: Agostinho e Pelágio, Schopenhauer e Hegel, Nietzsche e Wagner, Benda e Bergson, Habermas e Derrida, Beauvoir e Foucault - podem distanciar-se e inimizar-se, tão somente, devido a uma brigadela conceitual? E daí que um prefere pimenta e azeite, o outro? Que amizade chega ao fim porque um toma a sopa pelas bordas e o outro devora logo os nacos de carne que bóiam na cuia? Joãozinho acha que a coisa existe nela mesma e Mariazinha acredita que representa a coisa em seu espírito. O resultado: divórcio.

O que sempre esquecemos de notar - e esquecer é ignorar o passado que nos constitui, a história que nos suporta - é que o conceito de revolta talhado por Albert Camus, por exemplo, o colocava ao lado dos anti­mar­xis­tas, ao passo que o humanismo ateu sartreano o filiava aos soci­a­lis­tas e à União Soviética. A Guerra Fria, guerra de mentirinha, de trincheirismo político, de "agora eu era o herói...", articulou e configurou diversos outros conflitos de natureza aparentemente distinta da política de Estado, mas a ela atreladas: guerrinhas de mercado, guerrinhas midiáticas, guerrinhas pedagógicas, guerrinhas cinematográficas, guerrinhas literárias, guerrinhas fashionistas, guerrinhas científicas e, enfim, guerrinhas intelectuais, todas elas facetas dum grande conglomerado coletivo de práticas de submissão historicamente condicionadas e condicionantes (mas não determinadas nem determinantes). O capitalismo financeiro contemporâneo à Sartre e Camus cria condições para que noções como "o revoltado", "o existencialismo", "o intelectualismo engajado" tornem-se problemas interessantes à discussão dos intelectuais; discutir "revolta", porém, pouco sentido faria na Grécia de Sócrates, embora a democracia ateniense tenha criado condições - mas não determinado, remarco - para que conceitos como "ideia", "dialética", "sofisma" ou mesmo "verdade" tornem-se de interesse político, da pólis, e que ganhem os espaços de debate nas arenas do senado. Dizer, com Paulo, que o batismo está aberto aos pagãos é pactuar com uma política de universalização do divino e não mais restringí-lo aos filhos de Abrãao, Isaac e Jacó (e Pedro é escanteado). Ao anunciar o "je pense, donc je sui", Descartes dá consistência a uma governamentalidade ligada a um poder centralista e racional, como as monarquias absolutistas vindouras, em detrimento dum sistema político escolástico e doutrinário como o da Igreja medieval. Se toda essa conversa é fiada intencionalmente pelos conceituadores é uma outra discussão, que pode e merece ser posteriormente discutida, mas não agora.

O ofício do filósofo é criar conceitos, coloquemos assim. E conceituar não se opõe à "agir", não compõe um dualismo inconciliável à "ação". Essa mesma distinção, inclusive, já é conceitual, já é um conceito a operar. Se filosofar é conceituar, o filósofo é um senhor distinto, um senhor que distingue realidades, separa joios e trigos, define atuações e, mesmo em suas resoluções, coloca problemáticas. Se todo problema já encobre suas possíveis soluções, toda resposta é, já, o campo problemático atualizado, reduzido em sua complexidade coletiva, condicionante e criadora. Se canso de criar conceitos e digo que, a partir de hoje, me entregarei à ação, já estou colocando um campo problemático-conceitual e criando um dualismo filosófico entre o conceito, como simples devaneio sobre o mundo, e a ação, como mudança efetiva no mundo, o que pode desqualificar a intelectualidade como força de revolta frente ao cotidiano opressor; mas se digo que conceituar e agir são sinônimos estritos, posso estar desinvestindo os espaços de atuação coletiva (sindicatos, conselhos, diretórios...) em nome duma simples retórica solipsista. Que fazer, então, para sair desses dualismos que nossas conceituações mal colocam e com as quais não nos identificamos? Sou ateu ou teísta!? Erudito ou popular!? Duas saídas igualmente válidas mas politicamente distintas: 1) delimitar o conceito ainda mais, desenvolvendo novos conceitos para lhe fazer vizinhança e constituíndo um sistema que os correlaciona (o que pode afastá-lo ainda mais doutros conceitos), ou 2) criar novos conceitos, fazer um outro recorte do problema, uma outra colocação do problema. Temos, é verdade, intelectuais que se deram mui bem, ainda que seus sistemas de pensamento fossem como o norte e o sul, o sétimo dos céus e o quinto dos infernos (Lakatos e Feyerabend, Aristóteles e Platão, Guattari e Lacan...). Não são a maioria, contudo, e mesmo estas exceções raras possuem uma razão-de-ser que justifica e fortalece ainda mais a regra à qual resiste.

A pergunta inicial já deu sinais de sua resolução, o que poderia me desimplicar de escrever um texto maior. Gabarito: João e Maria se divorciam pois ambos investem (desejo, capital, cognições...) em mundos distintos e operam políticas distintas nesses mundos inconectáveis. Não pararei aqui, contudo, e levarei a discussão um pouco, e só um pouco, mais adiante, no que toca ao conceito não ser só uma ideia vaga, uma representação categórica de algo ou uma imagem mental dum objeto concreto. "Não!" para a palavra que referencia o mundo. Conceituar é operar cortes, é definir a realidade concreta nela mesma, é realizar políticas para o pensamento. As pessoas, no entanto, não gostam de pensar, nenhuma delas; pensar traz o tipo de dor que masoquista algum quereria experimentar. Pensar não é idealizar - embora o seja, no corte operado pelo idealista que separa o mundo da ideia, o discurso da prática, o conceito da ação - mas, ao contrário, é materializar e desmaterializar, é sacolejar as estruturas que condicionam os sujeitos e seus objetos, é inutilizar as distinções que oprimem arbitrariamente o corpo (homem-mulher, branco-negro, adulto-idoso, adulto-criança, heterossexual-homossexual, sudestinos-nordestinos) não dando as costas à temporalidade na qual foram criadas.

Daí o ditado de que não adianta explicar quando o outro está indisposto, indisponível, numa posição pouco privilegiada ao entendimento. "Não entender o conceito" pode ser pensado como "não ter cognição suficiente para apreender a ideia", se mantivermos o dualismo psicologizante do qual queremos fugir. "Não entender", prefiro, será equivalente a "não pactuar com a política do conceito, não conseguir adentrar no movimento do conceito, não conseguir acoplar-se ao sistema que o conceito constitui nem conseguir configurar um novo sistema com esse conceito", sendo a "apreensão da ideia" o seu fenômeno, a sua psicologia. Uma dessas montagens do Facebook, repassada a mim e a outros por um reacionário anônimo, dizia algo como "só leu o Manifesto e se acha marxista", precedida de um "Ui!" e duma versão memética do físico Neil deGrasse Tyson. Ora, não se trata de ler só um ou todos os livros escritos pela dupla M&E©; mais importante que ler coisas na íntegra, ler coisas verdadeiras, é fazer verdadeiras leituras, é saber acoplar-se ao conceito e dele fazer ferramenta, afeto e articulação. Pode-se ler, fichar, resenhar, escrever sobre toda a obra de Karl Marx, o que nos legará um saber acadêmico e um privilégio estatutário invejáveis. No entanto, o "uni-vos" a que clama o manifesto do partido comunista, longe de ser um objeto de análise intelectual, é um convite de revolução à determinada classe que compõe o social, alienada num modo de produção burguês e capitalista ("revolução", "proletariado", "burguesia", "luta de classes", "capital", "alienação", são todos conceitos, recortes); para adentrar na onda, para acompanhar os movimentos do conceito, por vezes, basta um só livro, capítulo, frase, ou mesmo nada em escrito. O conceito é a vida! Por vezes, para atingí-la, necessitamos de livros bolorentos e professores miopes que nos instruem na leitura, mas, noutras vezes, o muito ler só confunde o pensamento, nos obnubilando o tempo presente que corre pelo lado de fora da biblioteca, bastando um olhar à janela entreaberta para ver o que o livro quer apontar (tempo que, muitas vezes, já passou...).

Então, não precisamos mais ler e estudar, não precisamos mais participar da Santa Missa, não precisamos mais seguir imperativo moral algum? Não, mais uma vez! A santidade (sanctus, separado) não é para todos, é droga pesada demais pra ser vendida e consumida em larga escala. In facto, organismo algum suporta doses elevadas de espiritualidade, já que o que define a espiritualidade - para além de todas as organizações que a capturam - é um algo que põe em questão o ser mesmo do sujeito; não seu status, suas relações de amizade e parentesco, o seu emprego, formação acadêmica e outras egoicidades, mas um si-mesmo que, submetido ao trabalho duro (askesis) e aberto aos arrebatamentos (éros), é transfigurado e tornado receptível à verdade, às revelações, aos sussuros dos deuses. E esse sujeito pós-verdade, pós-revelação, é um sujeito santo, é o beato ético de Spinoza, o senhor de si e governador dos outros de Sócrates, o barco vazio de Lao-Tsé, o übermensch nietzscheano. Pois! Exatamente o contrário duma espiritualidade é que ocorre, por exemplo, nas chamadas "redes sociais".

Lembremos do velho Orkut: ao modo maçon, um membro participante da sociedade convidava um estrangeiro para que fizesse parte da irmandade iniciada pelo turco Orkut Buyukkokten (a entrada é free, agora, sem precisão de fiador); inseridos nessa irmandade, somos compelidos a delimitar o nosso perfil, nosso eu-virtual (quem somos, de quê gostamos, o que fazemos, blá, blá, blá...) e a participar de comunidades, fóruns de debate que costumam circundar uma temática específica (filosofia, música erudita, animes, turmas de graduação, grupos de trabalho...). É desnecessário dizer que um instrumento de conversação potente como este não funciona como deveria funcionar, não funciona como rede social. As comunidades, todos sabemos, estão soterradas de jogos pueris, de correntes, de assuntos bobos e pouco interessantes ao debate político (no sentido que coloquei alguns parágrafos acima), sendo todo o interesse na irmandade do Orkut depositado nos perfis, nos egos perfilados dos sujeitos ("eu sou assim, eu gosto disso, eu faço isso, veja, veja minhas fotografias, conheça minha intimidade, saiba quem eu sou..."), o que acaba contaminando, inclusive, a relação desse sujeito egóico com as comunidades, tornadas simples instrumento de identificação e reconhecimento ("eu sou corinthiano, eu gosto de chocolate, eu tomo banho pelado, eu conheço o professor Sofronisco...") e não mais um espaço de construção da vida.

Com o Facebook, a história é ainda mais assombrosa. Para o conforto de nossas identidades e referências, o próprio website, ainda mais que o Orkut, não sabe mais o que deve ser: rede social, fórum de discussão, chat de bate-papo, central de jogos e aplicativos, compartilhamento de fotos e imagens, mural de frases soltas e citações e veículo de publicidade e propaganda (enquanto escrevo a postagem, mesmo, recebo, na barra lateral da minha página de atualizações, links comerciais a me oferecer informações sobre o aniversário de 157 anos da cidade onde moro, a possibilidade de fazer mobilidade acadêmica no exterior, as melhores roupas esportivas da Dafiti, as eleições para deputados na Assembléia Nacional Francesa em Junho deste ano e viagens com 70% de descontos pelo Groupon). Sem uma página de perfil bem definida na qual os usuários possam lapidar e externar a sua interioridade, o ego dos usuários encontrou outra maneira para tornar-se público: as constantes atualizações de imagens (uma imagem aleatória, uma frase aleatória e um autor aleatório que, necessariamente, não tem de ver um com o outro), piadas (puta merda, sou o único que sente "vergonha alheia" ao ver alguém rindo com memes!?!?...), referências pseudo-políticas (se você é contra a invasão de pinheirinhos, se você é ciente das abusivas taxas tarifárias que tornam nossa gasolina cara, se você está acompanhando a aprovação do Ficha Limpa no Senado... Dá um curtir, aí!) ou qualquer outra coisa já pronta pra ser encaminhada e comentada ("fato"; "sad but true"; "quem ver, cagará tijolos"; "genial"; "só os fortes entenderão", e outras placas e bandeiras já preenchidas com frases feitas...) no próprio mural de atualizações, além de comentários esporádicos e pouco consistentes nas atualizações de seus "amigos" (um toma-lá-dá-cá, obviamente, e não uma conversa sincera).

A prática conceitual, hoje, assemelha-se ao Facebook. Sempre digo que a possibilidade e a facilidade de falar propiciada pela internet criou um monte de babacas (o troll, o fodão) a bancar e desbancar os discursos com os quais se esbarram por aí. Fala-se qualquer coisa pois deve-se falar qualquer coisa, levanta-se qualquer placa ou bandeira pois deve-se levantar uma placa e uma bandeira; uma ditadura às inversas, uma repressão que nos faz evacuar e vomitar e pôr todo o dentro para fora, ao invés de calcar e recalcar nossos fluidos que necessitam, antes, de amadurecimento. Articular o bom conceito e produzir uma coisa qualquer é insanidade, é pedir para ser incompreendido, visto que o pensamento já tem seus lugares e espaços demarcados de antemão. Quando a filosofia, enquanto estética da existência e prática de cuidado - de si e do outro -, torna-se disciplina acadêmica, o pensamento fica restrito ao decoro das aulas, aos discursos do magistrado e aos departamentos de pesquisa (você é behaviorista [curtir] ou cognitivista [compartilhar]?...). Pensar não é imaginar abstrações, publicar artigos, filiar-se a um grupo de pesquisa, afirmar-se partidário desta ou daquela filiação teórica, gostar ou não gostar de tal e qual autor, tal e qual metodologia, tais e quais termos. O filósofo, antes de ser um sábio, é um amigo, e amigo do pensamento, daquele pensamento que não cabe em nosso estado de coisas de outrora, tampouco no estandarte duma bandeira ou na moldura duma placa. Pensar é adentrar na vida e, como todo parto, causa dor e choro e sangue, muito sangue. Existem muitas e muitas teorias sobre o mundo, mas o pensamento e a verdadeira atividade conceitual - o conceito que corta e denuncia, conceito revolucionário, conceito-faca - não se identifica a nenhuma delas, já que pensar e conceituar é adentrar no mundo e nele operar. Desqualificar a força de um movimento concreto com um discurso é negar a dor de existir e inimizar-se com o próprio mundo. Tenho dito: uma teoria da vida é sempre posterior à vida ela mesma...

domingo, 1 de janeiro de 2012

Protocolo cíclico (ou Da inumanidade)

Dois-mil-e-doze é um ano que já começou a muito. É o protocolo de fim de mundo, o protocolo da eleição presidencial estadunidense, o protocolo astronômico do eclipse solar (dois; um anelar, em maio, e um total, em novembro), é o término do primeiro período de compromisso do protocolo de Kyoto, é o protocolo de implementação do acordo de Schengen. O protocolo do protocolo, afinal. Dentre todos, o protocolo mais praticado, que suscita mais mobilizações, mais implicação, mais-valia, mais gentes, é o protocolo das listas de responsabilidades para o ano vindouro. Claro, podemos sempre ignorar que, de um ano pra outro, nada, efetivamente, muda, visto que se trata da simples passagem de um dia a um outro dia. Ou não; como o humano e sua inteligência operam com repetições, ciclos e rotinas, o "Feliz Ano Novo" poderia, sim, marcar o ponto de virada para um outro estado de coisas (alegria, paz, saúde, dinheiro etc. ad nauseam). Que seja. É este o período das famosas promessas e penitências para o novo ano, já que, como reza o espírito do capitalismo (cristão, neoliberal e, mais do que nunca, de economia integrada e crowdfunding, economia Millennial), alegria, paz, saúde e dinheiro só vêm com tristezas, guerras, sacrifícios e suores (uma verdade que, contada pela metade, torna-se mentira alienante). Resolvi, então, fazer a minha própria lista, mas uma lista meio diferente (e, por ser uma meio-lista, é mentirosa, mas diferentemente mentirosa). O objetivo para 2012:  buscar a inumanidade. E o que o humano inumano se torna? Divino, diabólico, animal, maquinal, atômico, cósmico, tanto faz. Inumanizar é superar a condição atual, virtualizando-a; é sair das imediaticidades, grupalidades e identidades, e abraçar os devires sem sujeito, os devires que não se sujeitam à resposta imediata, aos grupos isolados ou à mesmice do idêntico. Sem mais delongas, lanço em tópicos algumas características avulsas (existem muitíssimas, infinitas características) desta tal condição humana, mas sem muitas explicações, apenas mostrando do meu compromisso em abandoná-las ou, tanto mais humilde (e menos humano), em reconhecê-las no que ainda resta de humano em mim e em nós. Todos nós...

1. Não mais confundir o não gosto com o não presta, o não entendo com o não está correto, o não me serve com o não serve a nada, seja em filosofia, em música, em política, em cinema... Gosto e entendimento são acoplamento estrutural, não evolucionismo cultural;

2. Não mais lutar contra um inimigo (Charles Chaplin versus Buster Keaton, Barcelona versus Real Madrid, Machado de Assis versus Dostoiévsky, Clarice Lispector versus Virginia Wolff, Sergipe versus Confiança, idealismo representacionista versus realismo materialista, ateus versus teístas versus agnósticos), mas pela vida (abandonando o um-contra-outro, luta-se pela comédia, pelo romance psicológico, pelo esporte, pela prosa poética, pela pluralidade do pensamento, pelo espírito, pela existência);

3. Não mais psicologizar os eventos, substancializar os verbos, essencializar os acidentes ou individualizar as proposições coletivas (modelos em que um crime = um criminoso; um movimento artístico = um punhado de artistas; uma corrente de pensamento = um bando de pensadores; um gol = um craque; o amor = dois enamorados; uma governabilidade corrupta = políticos corruptos);

4. Não mais trocar pense nisto por pense isto, realizando a parte mais difícil dos regimes (os dietéticos, os estatais, os eclesiásticos): a de não impô-los aos de-fora;

5. Não mais desqualificar o já desqualificado ou qualificar o já qualificado (falar mal, como toda a gente, da música emo; comentar, como toda a gente, que "o livro é melhor do que o filme"; dizer, como toda a gente, que a reforma psiquiátrica é o que há em substituição ao modelo manicomial), visto que tanto a crítica quanto o elogio perdem sua potência quando articulados a uma rede produtora de imagens e palavras prontas, buscando, isso sim, não mais a resposta para a situação mas algo que problematize e opere no contexto inicial (dizer da história do emotional hardcore e sua proposta político-afetiva de rompimento com o punk; falar que a adaptação d´O Senhor dos Anéis pelo Peter Jackson - ainda que tenha hiper-dimensionado alguns personagens e excluído outros - manteve o sabor épico-geográfico e a valorização da amizade trazidos pela narrativa de Tolkien; perguntar, inocentemente, se o militante já visitou um CAPS ou uma residência terapêutica alguma vez em sua curta vida);

6. Não mais aceitar, em excesso, os rebotes do afeto; rio de algo que me lembra uma situação engraçada, gosto de uma música que uma pessoa querida me apresentou, não vou com a cara daquele professor que o meu veterano detesta. O fato do afeto operar por rebotes fala muito de seu caráter relacional e articulador mas, ao mesmo tempo, este rebote pode servir como ferramenta de submissão - implícita ou explícita, consciente ou não - dum corpo ao outro (ele gosta, então é bom; ele não gosta, então não o é); o perigo deste rebote é a inércia, a aprendizagem vicária a substituir os comportamentos operantes, é rirmos eternamente da mesma piada ("Alguém disse memes, por aí? Não!?..."), não possuirmos gostos (musicais, cinematográficos, culinários, indumentários...) que mobilizem nossos sentidos ou prezar mais pela galera pop que pelo amigo sincero;

7. Não mais valorizar os processos quando o que importa é o seu produto final (prezar pela saúde e pela boa aparência elas mesmas, sendo que o seu valor vem da ação coletiva tornada possível por um corpo saudável e belo) nem valorizar os produtos finais quando o importante for o seu processo (afinal, uma boa pontuação ao fim duma avaliação nem sempre se correlaciona com o entendimento do alunado);

8. Não mais sofrer pelo inevitável mas, ao mesmo tempo, não se resignar a ele, compreendendo-o. Se a doce esposa do sujeito sempre acorda de mau-humor, ele não deve esperar os comentários graciosos que ela, de praxe, lhe faria; se tenho um copo de leite, em mãos, e o torno, voluntariamente, de ponta cabeça, não faz sentido eu chorar de raiva pelo leite que a gravidade derramou; se a casa do estudante sempre ferve de visitas, é insensato ele reclamar - consigo e com os seus - da impossibilidade que é fazer uma leitura atenta e minuciosa das suas apostilas, e isto enquanto continua no mesmo espaço, na mesma estrutura contextual.

9. Não mais identificar o movente com o movimento; interessar-se pela arte não te obriga a idolatrar o artista, concordar com uma política pública não te obriga a filiar-se ao partido e gostar daquele post não te obriga a gostar daquele blog, nem daquele blogger.

10. Não mais levar os protocolos a sério. Ou não (dupla negação: lógica, dialética ou duração?...).