terça-feira, 26 de julho de 2011

Événementialisation!

A vida é um jogo. Uma coletânea de jogos, na verdade. Infinitos jogos, corrigindo, todos imbrincadinhos, se anulando, se fundindo, se clivando. E um jogo é um conjunto de eventos. E um evento, tomado isoladamente, é um conjunto de outros tantos jogos que, por sua vez, são estruturados, cada um, pela articulação de vários outros eventos. Parece que estou a cometer o erro a que os lógicos chamam "Círculo", deveras. Mas não. Esse círculo é virtuoso, produtor de diferença, alegria, movimento, potência e vida.
Falo de Deleuze, de Spinoza, de Bergson, de Nietzsche e de todos eles, invisíveis, na última frase do parágrafo anterior. Cada um desses filósofos, mesmo, é um jogo fechadinho, com suas regras, seu tabuleiro, seus peões, suas estratégias. Eu sou um jogo, igualmente. Sou diferença, alegria, movimento e potência. Você, idem. Mas também somos - eu, você e eles - repetição, tristeza, imobilidade e ressentimento. Somos sacrifício ético e obediência moral, criatividade e tecnicismo, espiritualidade e ritualismo, a gargalhada e a cara-de-paisagem.
Jogos e eventos parecem manter entre si uma reciprocidade atômica, na qual um é parte componente do outro, e esse outro é parte componente do primeiro. Mas não é bem isso que eu quis dizer. Jogos e eventos falam muito mais de um ponto de vista - ou de uma postura cognitiva - que de uma relação entre o todo e as suas partes. Dizer de algo como jogo ou evento é dizer de um posicionamento nosso frente a esse algo. Peguemos um jogo de cartas simples - o Solitaire, vulgo Paciência - para explicar o que digo.

Colocamos sete pilhas de um baralho enfileiradas em ordem crescente de quantidade (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, totalizando 28 cartas da esquerda para a direita), sendo que as cartas da superfície de cada monte tem a sua face voltada para cima, ao contrário das cartas embaixo dela. As 24 cartas restantes são colocadas num bolo, à parte desses sete montes. O objetivo do jogo é colocar todas as 52 cartas em quatro montes - um para cada naipe - em ordem crescente de valor e numeração (Ás, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, Valete, Rainha, Rei), manuseando as cartas das sete colunas e do bolo, que serve de "fuço". As cartas podem ser agrupadas numa destas sete colunas em ordem decrescente de valor (Rei, Rainha, Valete, 10, 9...) mas os naipes devem ser de cores opostas para que a truncagem se dê. Enfim, é um jogo cheio das minúcias, das regras implícitas e das estratégias e, mesmo que não saibamos expô-las todas, sabemos jogá-lo quando abrimos o game disponível em toda e qualquer versão do Windows. Mesmo sem saber o jogo, entramos no jogo e nos divertimos! Só este fato já nos fala muito, mas vou guardar meus comentários nessa direção, por enquanto, e continuar com o baralho.
Digamos que eu faça uma jogada específica enquanto me divirto no Paciência; por exemplo, que eu encontre uma Rainha de Espadas, negra, no fuço e a coloque por sobre um Rei de Ouros, vermelho, que está numa das 7 colunas. O movimento é esse: pego uma Rainha de Espadas e a ponho sobre um Rei de Ouros. Este movimento simples é um evento e o que define todo evento é, pois, a sua simplicidade, no sentido cartesiano duma realidade subsistente, que baste a si mesma. O mesmo evento pode fazer parte de um outro jogo, atentem. Caso eu estivesse jogando Black Lady - a versão tradicional do jogo de Copas - com um amigo meu que pôs o Rei na mesa (e eu não tinha nenhuma carta de Ouros, em mãos), este mesmíssimo movimento seria uma jogada extremamente desvantajosa para ele, já que num único movimento eu o faria ganhar 13 pontos (e, no jogo de Copas, quanto menos pontos você fizer, melhor)! Caso, ao invés de Paciência ou de Copas, estivéssemos jogando Burro, eu não poderia fazer essa jogada; este evento é uma realidade impossível dentro do universo do Burro, mas é real (ainda que não se atualize, ainda que continue sendo apenas uma realidade virtual), provável e possível dentro dos universos de Paciência e Copas.
Não é à toa que o baralho use como ilustração as figuras de um reino. Uma das versões sobre o nascimento do baralho, como o conhecemos hoje, fala de um pintor francês - Jacquemin Gringonneur - que inventou as figuras e os naipes das cartas sob encomenda do rei Carlos VI, o louco. Cada um dos naipes representa uma posição social (copas para o clero, espadas para a nobreza, paus para os plebeus e ouro para a burguesia) e as imagens, de um naipe a outro, representam soldados e peões (grupos de 2 guerreiros, de 5 guerreiros, de 10 guerreiros, o "Ás" do exército...), reis (K, de King), rainhas (Q, de Queen), valetes e cavaleiros (J, de Jack) e, mesmo, a curiosa figura do bufão, do bobo-da-corte ou, se preferirem, do Coringa ("why so serious?"), que não tem razão alguma no jogo (e, por isso, é a mais perigosa de todas). Estamos em pleno século XV, aí: como lidar com os constantes levantes dos camponeses, a quem a nobreza faz morrer e deixa que vivam? E a igreja em decadência, como funciona? O absolutismo monárquico, ganha o quê com isso tudo? E que nova classe de mercadores é essa, a fazer fortuna com viagens e comércios!? Velásquez faz o rei e sua dama - refletidos no espelho ao fundo - se confundirem com o observador anônimo que, no momento, fita a tela. O olho do qualquer e a pompa da realeza se confundem como sujeitos teoréticos, em diversos jogos, mas jogos que não operam sozinhos: pintor-pintado, olho-quadro, sujeito-objeto, detalhe-foco.
Jogos, jogos, jogos. Cada um desses problemas são jogos que demandam respostas, movimentos, eventos, posturas, etiquetas para que continuemos a viver (com diferença, alegria, movimento e potência, de preferência). Jantar é um evento. Jantar com o bispo para que ele abençoe o condado antes da colheita é um jogo. Jantar com o duque e pedir a mão de sua filha para agregar territórios de nobreza é outro jogo. Jantar com a esposa, os cinco filhos, o cachorro e os dois cavalos, ao calor duma fogueira no quintal é um terceiro jogo. Um quarto jogo seria jantar numa taverna, quando se é um viajante e não se conhece ninguém na região. Ficar sem jantar por não conseguir esmolas o suficiente, naquele dia, é mais um jogo. Ficar sem jantar por não conseguir realizar penitências o suficiente, naquele dia, é um sexto jogo. Cada um desses jogos possui um regulamento próprio (ainda que não saibamos ou possamos listar regra por regra), personagens próprios, tabuleiros próprios, estratagemas próprios e - como não haveria de ser!? - modos próprios para a trapaça.

Falei que o lance da Rainha de Espadas por sobre o Rei de Ouros era uma jogada impossível no mundo de Burro. Proposição falsa, a minha. A trapaça é, justamente, isto daí. É o jogo que, ao impor seus movimentos e entraves, seus podes e não-podes, coloca também buracos nos quais a ação demanda uma reação imprevista. A trapaça é a invenção no sistema fechado. Quem, ao jogar Banco Imobiliário, nunca "fuçou" o caixa indevidamente, quando todos os outros banqueiros e especuladores de imóveis estavam distraídos? Quem, ao perceber uma fila grande demais, nunca se pôs a procurar "aquele" amigo para, com isto, ganhar dois ou dez minutos do dia?

O jogo de Copas, o Burro, um jantar, o Banco Imobiliário, uma fila, são todos políticas de guerra. Uma guerra é um evento (o choque da espada na armadura do inimigo) e um jogo (anexação do território sarraceno às propriedades papais). O evento de golpear o inimigo faz parte de diversos jogos: a guerra santa dos templários contra os infiéis do oriente; o treinamento marcial para aprender a manusear a montante enquanto se segura um broquel; a garantia de ter a alma salva, mesmo que o corpo se perca no calor das lutas. Vários jogos, operando todos num mesmo e único instante, num mesmo e único evento. O subir e descer da espada é a atualização e o movimento de diversos jogos imbrincados a produzir soldados santos, lâminas e cotas mais leves para viagem, reservas no paraíso para os que perderam a vida na santidade e coisa e tal. Os jogos produzem eventos (verbos, o que ocorre, o que "tá pegando"), que são a manifestação dos jogos. Neste lá e cá dos jogos e dos eventos é que nascem as coisas (substantivos, indivíduos, sujeitos, objetos) e suas qualidades (adjetivos, o bom golpe de espada, o homem santo, o muçulmano feio, o mangual abençoado).
Entremos na fila, mais uma vez. Estou com pressa e utilizo do meu amigo para, assim, passar à frente de umas 20 pessoas. "Mas isto é um desrespeito a essas 20 pessoas", diria você. Discordo. Mas discordo, apenas, quanto aos números contidos na premissa. Não são 20 os desrespeitados mas, no mínimo, 21. Vinte pessoas e uma fila. Ou, ainda, poderia substituir todos esses desrespeitados por uma fila que não foi levada a sério. "Mas você está desrespeitando a fila" seria uma proposição mais adequada. Não são os sujeitos humanos, simplesmente, que são os afetados, mas é ela, a fila, que emperrou, deu bug, foi ela que não operou como deveria, por um motivo ou por outro. A fila é uma tecnologia, é um armistício, uma política de guerra construída para que possamos viver com diferença, alegria, movimento e potência nesta vida cheia de encontros. A fila, muito provavelmente, se inventou quando tínhamos muitas pessoas desejando uma mesma coisa ao mesmo tempo (mas um objeto que está disponível a todos eles; o único porém é quem irá ter um primeiro, um segundo e um terceiro acesso a eles). Se fossem só um, dois, três os desejosos, o problema poderia ser resolvido ali, cara-a-cara, no informal. Com 10, 20, 50, a situação muda. Cria-se um critério, então, acima de todos nós. "Quem chega primeiro, é atendido primeiro; quem chega em segundo, é atendido depois; quem chega em terceiro..." E a guerra assim se vai, a guerra se apazigua, até que um novo encontro coloque um novo problema. "E aquele senhorzinho de 92 anos, ali? Vai ter de esperar na fila como todos nós!?" Tá, tudo bem, deixamos esse senhorzinho passar à nossa frente, mas só ele. "E as mulheres grávidas? E os pais com crianças de colo? E os obesos? E..." E assim a vida se vai, em nosso ofício infinito e eterno de criar e recriar as filas. Fila versão 1.0, 2.0, 2.3... Versão beta, pois. Nenhum senhor saudável - ainda que tenha ultrapassado a marca dos 65 anos - deixará de ceder seu lugar a um jovem que esteja a passar mal, no ônibus, com o argumento de não querer desrespeitar o belo e sublime princípio da fila. Vejam só. Nossa vida consiste num trabalho de engenharia, de construir aparatos tecnológicos que bem representem, quase matemáticamente (aliás, retirem o "quase"), nossas posturas que, num momento em específico, foram adequadas ao encaminhamento da vida e da paz. Homo faber. Mas a paz, aqui, não é entendida como ausência de guerra, como puro armistício, mas como invenção, como principia individuationis, nos dizeres do Jung alquimista.
Todos os nossos processos legais são jogos, jogos iguaizinhos aos da fila. Todos os nossos sistemas teóricos são jogos. A arte, então! É jogo que não acaba mais. As religiões, mesmo, são conjuntos de jogos a atualizarem eventos. O Padre levanta o pão ázimo, já bento, e diz: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo." O que este momento tem de ver com o tal Cristo, reunido secretamente com seus 12 amigos e à vespera de sua já sabida morte? O Padre opera jogos que atualizam eventos. Um homem benzendo o pão e tornando-se um com os seus, durante um banquete (tradição muito mais grega que judaica...). Qual a ligação entre os dois? Há uma ligação entre o evento original e o seu jogo correlato? Este jogo, hoje, ainda tem a sua razão de ser para os homens de boa vontade!?
Não há uma resposta, visto que não há uma maneira correta de se jogar os jogos da vida. De Paciência à Filosofia Moderna, de Banco Imobiliário à Teoria da Gravitação Universal, da fila ao Código de Direito Canônico. Daí o coringa. Daí o café-com-leite! É um modo do próprio jogo dizer para não levá-lo, assim, tão a sério. De que adianta jogar corretamente se, com isso, deixamos os jogadores infelizes? De que adianta seguir a risca todo o regulamento do Banco Imobiliário se o seu irmão menor não está acompanhando vocês? De que nos adianta tomarmos todos os remédios e pípulas que embotam nossos delírios se estabelecemos uma relação de tristeza com eles? E de que adianta tocar o instrumento perfeitamente, respeitar os comandamentos, fazer uma resenha exemplar do filósofo e, enfim, ser um modelo de vida, evento, jogo e procedimento se, com isso, não nos tornamos felizes, não trazemos felicidade para os outros nem tornamos a própria vida, ela mesma, mais alegre e jovial?
O "peso leve" e o "jugo suave" do messias. Não adianta a virtude individual (virtu, força) se não atingimos, com isto, o universo inteiro (cosmos, beleza). O cristo, o buda, o santo, o gênio, o mahatma, não são sujeitos esforçados, mas eventos est-éticos. O jogo é a atualização dum evento. E evento, aqui, já deixou de ser um simples enxerto da totalidade. O movimento da espada, o jantar, o movimento da carta não são partes de um todo, não são pedacinhos de Lego que usamos para montar nossas tecnologias frágeis. O movimento, ele mesmo, é a expressão da mudança de um todo. O evento deixa de ser uma coisa: é, agora, evento-ação, é eventualização! Uma espada em movimento é uma guerra em movimento. Uma colherada suscinta na sopa é uma boa maneira para conquistar o sogro. A Rainha de Copas por sobre o Rei de Ouros é uma noite de bebedeira, música e muita risada entre dois ou três amigos chegados. São todos jogos. E jogos que permitem - que incentivam - a trapaça, a invenção de movimentos fora dos jogos jogados (o que pode suscitar, mesmo, a montagem de novos jogos), quando estes não mais nos colocam no movimento da vida. Não digo para jogarmos todos os jogos fora e nos entregarmos a um suposto espontaneísmo humanista. Que nada! Digo do contrário!
Aprendamos todos os jogos que conseguirmos - das cartas ao Código Penal, da Psicologia Experimental à Análise Institucional, do Cristianismo ao futebol, passando por física dos quanta, filosofia da mente, robótica, pintura renascentista, música orquestrada do século XX - mas não para sermos especialistas do saber. Isto seria jogar o jogo e ser engolfado pelos algorítmos do mesmo sem saber aonde iremos chegar com nosso esforço todo (igual ao menino que, mesmo sem saber como montar a mesa para o Paciência, dá um clique duplo no programa e se põe a mexer as cartas, pra cá e pra lá). Estudemos os jogos, construamos os jogos, joguemos os jogos. Mas saibamos trapacear. Não quando for necessário, já que necessidade é a regra, mas quando a vida demandar, pedir, nos convidar a embelezá-la, a torná-la cada vez mais diferente, alegre, movimentada e potente. E quando saberemos o momento certo? Nunca. Quem sabe é quem tem o poder, quem conhece o manual de regras que veio junto do tabuleiro, e o momento - a eventualização - não consta na programação. Aposta-se. Um jogo de apostas, é essa vida. Vamos nos divertir, então...