quarta-feira, 20 de abril de 2011

Pourparler

A vida como encontro. Não o encontro dos enamorados, mas o choque de dois corpos quaisquer, corpos estranhos. Esbarrão. A vida como um, dois, dez, muitos esbarrões. E é nesse atritar dos corpos que se produz o calor e a energia da vida. Por vezes, esses choques danificam os corpos, grafando-os de memórias e juízos. Corpo cheio de rachaduras, é o corpo vivo. Corpo de todos nós. De tanto ser cindido, o corpo cansa e quer des-cansar, na esperança tola de voltar a seu estado original, pré-dano, pré-juízo. Os processos são irreversíveis, no entanto. E, assim sendo, vai ficando cada vez mais difícil de encontrar um corpo outro que aceite as suas cicatrizes. Duas alternativas, para o corpo. Ou desiste de jogar o jogo dos encontros e se entrega à imobilidade; ou se lança, mais uma vez, na imprevisibilidade dessa dança, até encontrar um corpo segundo que aceite as suas feridas, carregadas de história. Dois corpos a sangrarem em uníssono. Duas vidas, dois tempos a se enlaçarem. Mas o jogo dos encontros tem a infeliz regra de nunca acabar, de nunca se deter. Não há “pause”. Não há represa para esse rio. Conclusão: fiquemos atentos para que o barqueiro não passe sem nos levar com ele. Aqueronte, mesmo imortal, não espera os corpos para sempre…

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Nerds e a Análise Institucional (ou o porquê de meu desgosto por Shoppings Centers)

Os dois pontos de concórdia de todas as escolas do movimento instituinte: a auto-análise e a auto-gestão. Um resumo pelo Baremblitt. A modernidade produziu demasiados conhecimentos, gerando experts, os conhecedores maiores desta estrutura cognitiva e da sociedade por ela configurada. Estes intelectuais, por serem mantenedores da sociedade que os mantém, produtos-efeitos, acabam servindo às entidades dominantes. O médico, o sociólogo, o pedagogo e o psicólogo a serviço do gerente, do magnata, do empresário e do tecnocrata. Não deliberadamente, claro. Mas por arvorarem seus discursos num esquema científico, cartelizado, laboratorial, acabam por despotencializar os saberes mais diretamente ligados à vida e ao cotidiano, relegando-os à categoria de alternativos e rudimentares. Não há, seguindo a trilha, necessidades naturais. A necessidade dum coletivo é produzida. A própria noção de necessidade é produzida. E a demanda da mesma é modulada de acordo com as tendências do mercado. A moda, maioria matemática, torna-se acessório de beleza (mas não de est-ética; nota para um outro post). As comunidades, através deste condicionamento moderno, acabam perdendo a noção do que aspiram em realidade. Por que?
Com o saber espartilhado, foi espartilhado, também, todo o sistema circulatório a carregar os nutrientes sem os quais não há corpo social: a arte vai para a cavernas do extremo norte, a ciência se refugia nas montanhas do sul, a religião erige seus castelos sobre as nuvens, a política se olvida nos subterrâneos. Mas nada disto se maquina, se conecta. Corpo social estripado e cada vez mais estripado, dissecado, "factuado". Continuando a biópsia. No pacote das artes, o músico não toca para o literato que não escreve para o pintor que não quer representar o dançarino que não se apresenta para o cineasta. Nas literaturas, o romancista não publica para o poeta que não compõe para o blogueiro que não posta para o filósofo que não teoriza sobre o historiografista. Na poesia, o modernista ri do parnasiano que despreza o romântico que não entende o concretista que só lê suas próprias artistagens. Matrioshkas. Cada um dos experts da modernidade é responsável por uma bonequinha e, quanto menor ela for, mais especialista é o sujeito do conhecimento. Piada velha: o verdadeiro sábio, numa sociedade segmentada e centralista, é o que sabe tudo de, absolutamente, nada!
É o médico que identifica a patologia e a normaliza, não o coletivo (antes dele, estávamos lançados à sorte, aos anti-corpos e às superstições); é o psicólogo que identifica os inaptos ao convívio social, não o coletivo (antes dele, convivíamos sem saber entre os vagabundos, esquizóides e desviantes afins); é o pedagogo que nos conduz à epísteme, não o coletivo (antes dele, não sabíamos nem "o que" aprender, que dirá "como"). É o advogado que conhece todos os mecanismos adequados para bem proceder "dentro" (antes dele, estávamos "fora", totalmente away à civilidade) do coletivo, e não o próprio coletivo. Todos estes sustentam a sua prática num saber acima dos homens - A Medicina, A Psicologia, A Educação, O Direito - assim como um navio que lança suas âncoras nas nuvens, e não na Terra. Em nome de Deus Pai! Para justificar relações de poder estratificadas (sempre há poder, controle e influência, da menor das células ao maior dos principados, do átomo à galáxia, residindo o problema apenas em sua estratificação permanente; nota para um segundo post futuro) invocamos alguém de fora da ciranda - o pai de alguém, geralmente - que irá valorar todo discurso e prática de alguns (só alguns) especiais. "Não fui eu, mas Ele quem disse".
Um retorno à Análise Institucional, agora. O objetivo dum analista desta natureza, grosso modo, não é o de levar um saber excelso para os infelizes e pobres de espírito, mas desencadear processos de auto-análise num coletivo em específico - uma empresa, um hospital, uma sala de aula - para que o próprio coletivo crie os dispositivos necessários a seu funcionamento. A este maquinismo imanente, e não transcendente ("mamãe mandou eu escolher este daqui"...) chamamos de auto-gestão ("mas como eu sou teimoso"...). Não a análise do expert que irá nos gerir, mas um processo de criação do novo pelos membros dum coletivo para o direcionamento de suas próprias articulações. Também não é a tomada de consciência marxista, mas a criação mesma de subjetividades outras, de novas mentalidades e agenciamentos do coletivo. A Análise Institucional não é uma profissão, mas uma atitude de todo e qualquer profissional frente às proposições e paradigmas que se lhe afiguram. O psicólogo e o médico, mas também o guarda e a atendente; a professora e a diretora, mas também o porteiro e a merendeira.
De um ponto de visão central e cheio dos estratos, o nerd clássico é um esquisitão, desleixado com as aparências, impopular com as garotas, possuidor de hobbies obscuros e, claro, sempre acompanhado por um e outro amigo, igualmente esquisitão. Ele não tem o seu lugar numa sociedade dos estratos. Anti-social!? Talvez. Fora do social não quer dizer excluído dos coletivos, entretanto. É o contrário, neste caso. O nerd, de todas as figurinhas escolares - o capitão do time de futebol, a líder de torcida, o representante da turma - é o mais bem articulado com seus próprios coletivos, é o que construiu planos de consistência fora dos aparelhos de Estado. O nerd que se interessa por computadores acaba comprando revistas especializadas, visita palestras sobre engenharia de software, compra livros sobre inteligência artificial, entra em contato com acadêmicos, faz amizade com mercadores de sucata, arruma dinheiros consertando os aparelhos da vizinhança e, como sombra de todo este corpo ao sol, acaba por tirar notas excepcionais em Matemática. O nerd RPGista arruma materiais sobre narratividade e interpretação, estuda sistemas representativos de personagens, visita museus para adentrar melhor noutras culturas, tenta montar grupos de jogo com desconhecidos, passa os momentos livres viajando em leituras, começa a redigir seus devaneios em contos, aprende diversos idiomas e, como consequência, é o melhor aluno de História e Literatura do colégio. O nerd quadrinista desenvolve um senso aguçadíssimo de organização ao catalogar todos os seus comic books, passa a acompanhar os últimos movimentos políticos por causa dum comentário do herói, faz uma pesquisa sobre termodinâmica para entender os superpoderes do vilão, tem contatos em livrarias e bibliotecas dentro e fora da cidade, desenha como ninguém, sabe explicar a relatividade restrita melhor que os seus professores colegiais e, como efeito, é o contraditório aluno com os melhores comentários nas aulas de Artes e Física.
As três figuras apresentadas seriam rotuladas, muito tranquilamente, como nerds pelas figuras centrais do representante, do quarterback e da cheerleader. No entanto, os três não se atravessam, necessariamente. Há a mesa dos estudiosos representantes de classe, há a mesa dos populares zagueiros do time de futebol e há a mesa das voluptuosas líderes de torcida. Não existe, por princípio, uma mesa dos nerds. Os três podem não estar sentados juntos, podem não se articular. Podem, cada um, ocupar a sua mesa solitária. Ou podem - espiões do cotidiano - se imiscuir em outras mesas, escondendo os seus obscuros segredos. O nerd-dos-computadores pode ser representante da turma 3A, o nerd-do-RPG pode ser o Offensive Guard do time da escola e o nerd-dos-quadrinhos pode ser o namorado intelectual de uma das meninas da torcida. O nerd não é, nunca, parte de um grupo de nerds. Não há o grupo nerd! Geeks, gamers, otakus e outras subdivisões são o nerd já capturado pelo esquema das mesas. É o marginal com um crachá, o delirante já medicado com a tarja preta. Ser nerd é encadear proposições que não as faladas pelas figuras centrais. É ser, por vezes, solitário, mas nunca está só em seu coletivo articulado e consistente. Às vezes se senta com outros nerds, às vezes se senta com as figuras centrais e, às vezes, se senta sozinho. Não importa. O que o define é o mundo marginal que o mesmo criou fora dos dispositivos dominantes, ainda que os adentre vez e outra.
O nerd clássico é, em si mesmo, a realização dum coletivo. O analista institucional adentra em coletivos já configurados, querendo levar-lhes a auto-análise e a auto-gestão. O nerd assume uma função semelhante: percebe-se como parte dum coletivo de inteligências embotadas, afetos anestesiados e respostas automáticas mas, ao contrário do institucionalista, não pretende fazer irromper as forças instituintes dali mas, sim, cair fora daquele ar denso e sufocante que lhe pesa os pulmões e voar noutros ares. O nerd é um devir, um informe, uma razão nômade, uma paixão sem objeto, uma atenção flutuante. É Platão que sai da caverna mas que esquece de retornar. Ilha deserta que não se comunica com os fluxos do continente. Saída válida. O nerd, no entanto, pode perigar e deixar de ser clássico, de ser grego, e desenvolver uma agorafobia típica dos modernos. Do nerd clássico caímos no nerd moderno. O sujeito-dos-coletivos vira o menino-dos-blogs. O elfo construtor e afirmador da diferença vira troll preconceituoso. Enquanto as figuras centrais navegam planejadamente nas redes sociotécnicas - virtuais, atuais, reais ou potenciais - e o nerd clássico deriva nas mesmas - deambulância nômade e inventiva - o nerd moderno, capturado pelos estratos, só sabe boiar. Nem estabelece relações centrais com os poderosos nem se articula com a resistência contra-conducente. É a marginalidade capturada e já executada.
É o nerd dos memes, dos sites de piadas prontas, dos vídeos virais, dos fóruns de discussão depreciativa. É Trollface, é Fuu rage, é Forever Alone. Este último, inclusive, é a síntese do nerd moderno. Enquanto o nerd clássico corre de lá para cá - mesmo sem se deslocar - atrás de conexões com fulanos e cicranos, puro movimento, o nerd moderno busca o conforto de sua poltrona e o alternar das realidades com um simples Alt+Tab, um Shift+Delete, um Ctrl+C/Ctrl+V. O homem dormente de Matrix e a humanidade imóvel de Wall-E são a máxima realização do nerd moderno ou mesmo do homem da modernidade. É estar imobilizado, em seu próprio canto, sem precisar mover um dedo sequer para resolver as problemáticas do real, já que delegou toda a responsabilidade pela sua alma aos muitíssimos experts da ciência, da arte, da política e da religião, cada um dono por direito divino de um pedacinho do mundo.
Chego, finalmente, onde queria chegar. E pergunto. Que é um Shopping Center? É o mundo inteiro concentrado num único espaço, respondo. Todos os estratos do universo dispostos para o nosso consumo. Conforto dos confortos. É o mundo, repito. Mundo, este, mais potencial que atual, percebam. É um mundo de espaço e tempo suspensos - mundo fora do mundo - no qual mais importa o nosso vislumbre frente a todas as possibilidades de ação disponíveis que a aquisição mesma dos produtos. Ademais, mesmo que consigamos levar um e outro objeto do nosso desejo para casa, não há relacionamento para além das lógicas do mercado. Todas as tribos a desfilarem suas modas pelos corredores dos Shoppings não são uma afirmação da diferença do mundo, mas a multiplicação de suas identidades. Não há afet-ação, não há outro, mas há sempre Um. Vários uns, encapsulados e insensíveis à diferença do outro. In-diferente é o Shopping Center aos devires de fora, às minorias, ao nerdismo clássico.
Vou ao cinema, a uma loja de instrumentos e a um restaurante, todos dentro da mesma nave espacial. O que eu, nerd moderno, ganhei: um filme, um violão novo e um estômago cheio. O que eu, nerd clássico, sempre posto na "linha fora", fora do centro, fora do Shopping Center, ganharia: conseguiria algumas cópias de filmes daquele mesmo diretor com o projetista, amigo seu, para conhecer melhor essa tal de Nouvelle Vague; pegaria dicas com o luthier de como lustrar o violão, lixar o cavalete e afinar sem a necessidade dum diapasão, além de tomar emprestado algumas partituras do Renascimento, tão difíceis de encontrar na net; iria até a cozinha aprender a receita com a Dona do fogão, beberia com o garçom e chamaria o dono do restaurante para ir a sua casa, provar sua moussé de cappuccino. O nerd moderno é o herói da resistência capturado pelos aparelhos de Estado. É o Capitão América! Claro. O Shopping Center não é mau, assim como não são maus - por si mesmos - o saber médico, os sistemas psicológicos e os códigos penais. São as subjetividades produzidas por estes modos e seus dispositivos que aqui condeno. Subjetividades sem sistema circulatório, anêmicas, buracos negros nascidos para o consumo das coisas do mundo. Nota: eu pratico shopping window, eu visito sites de humor e eu utilizo da medicina, da psicologia e do direito quando necessitado. Não sou um ermitão da montanha, um Buda do Himalaia ou um santo cristão. O problema: ser capturado por estas lógicas e não saber dizer "sim" ou "não" à técnica quando se deve (Heidegger?...), é ser carregado no colo, levado pelo braço, não aprender a caminhar e nem se tocar do ocorrido. É isso e só isso. E tudo isso. Enfim...