domingo, 13 de novembro de 2011

Douze ou treze jours

 

O Sol titubeia por um microssegundo, um instante, um Kairós, e não sabe mais se estava a ir ou vir. É o momento dubitável por excelência, a Terra treme, os homens congelam, as pedras se calam. O crepúsculo se confunde com a aurora e o alaranjado tímido do céu não lembra se tem de avermelhar ou se vai amarelar de vez. É noite? É dia? Doze ou treze dias? Uma, dez ou cem vidas? Ao término da carta, o enamorado a lê, relê, edita, apaga, torna a escrever, volta a reler e, por fim, a sela num envelope. Pronto. Já pode atear fogo em sua obra. Zen? Não, nada de desprender-se dos desejos. Aporia budista: se a existência humana é sofrimento devido aos inúmeros desejos que não conseguimos trazer ao real, que acontece com o corpo pleno de realizações, com o corpo que tudo conseguiu realizar? Mais ainda, que acontece ao corpo cujo desejo não precisa vir à tona para ser saciado, um corpo que deseja, tão-só, desejar? O homem grego deseja cuidar de si - medicina, ginástica, dialética - para melhor cuidar dos seus; o romano, poeta do mundo privado, deseja a pax; o cristão deseja afogar o desejo e, mortos, ambos ganharão a vida e o gozo na eternidade (Chronos tomado por Aeon...); o humanista, descrente do presente e do futuro a que ele lhe condena, reinicia a ciranda de pedra e deseja um retorno a les bons moments helenos; o cientista, sobrinho-neto do humanista, deseja circunscrever o desejo dentro do seu campo visual (desejo = gado). E o enamorado - de todas as épocas, de todos os "tempos" -, aquele mesmo cujo corpo deseja, apenas, desejar? É fogo puro, este; o mesmo que, há pouco, incendiou a sua carta depois de lê-la, relê-la, editá-la, apagá-la et cetera. Ama o seu desejo, ama seu amor, o enamorado, mesmo que nada de sólido (ou líquido... ou gasoso...) lhe venha daí. O cancioneiro gagueja sua melodia, o poeta transborda versos de silêncio e o pintor enquadra o seu afeto pouco lúcido. E daí?  São todos o enamorado que esqueceu de destruir as provas deste crime monstruoso, desta anti-natureza, que é o sacrifício (sacrum facere...) do amor. O fogo é o elemento fátuo, é a invenção e a contravenção, matéria e luz. O enamorado é um incendiado e um incendiário. Tudo o que abraça retorna ao pó. Eis a paixão: consumir. E o amor?  E o enamorado? Não quer consumir o alheio mas sumir em seu desejo, como um suicida em plena queda livre.  É fluxo de graça e dívida, de beatitude e profanidade, de alma e de corpo. Sublime é o corpo capaz de atear o fogo do Sol num coração de homem e sublimar-lhe o espírito. Sim, o corpo sublime é epifania, é Deus feito mulher. Divina, diabolicamente divina, é a rainha amada. Ser-amada não é ser-objeto-de-amor. Assim como o cancioneiro, o poeta e o pintor são apenas o aspecto visível do enamorado, a rainha, que é fonte de amor, torna-se objeto-de-desejo quando vista pelos olhos dos aquáticos. Ser-amada é fazer o valete entregar-lhe as armas sem que este nada queira, nada deseje com isto - nem a paz, nem o reino, nem a rainha - além do amor ele mesmo, além do fogo. Arde de vida, o enamorado, e só quer crepitar. O enamorado pergunta: "doze ou treze dias?" Os homens lhe respondem: gregos, romanos, cristãos, humanistas, cientistas, cada um a sua maneira lhe dá o conselho, a resposta e o encaminhamento. O enamorado, pela primeira vez, pensa. E responde: "Que importa!? Quem se importa!?" Pra ele, sua rainha amada lhe basta. Não por a possuir, nem por ser o objeto dela - ainda que a possua, corpo e alma; ainda que por ela seja querido - mas por, devido a ela, sentir e ser, ele mesmo, o desejo sem um objeto-consumido-pelo-fogo, o fogo incansável e sibilante do Sol e o Sol a duvidar, no instante oportuno, de todo o universo. Menos do amor...

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Tempos, espaços e zonas

Toda delimitação espacial é, necessariamente, asilar. Escola, hospital, prisão, igreja, manicômio. O teto não nos protege da chuva, tão só. Eis a logística da triagem dos corpos: na escola, o inculto (que, ao assumir-se como sabedor de coisa alguma, sairá de lá como douto e letrado em alguma coisa); no hospital, o doente (que, tratado, medicado e devidamente encaminhado, voltará esbanjando saúde); na prisão, o criminoso (que, depois de punido, terá a sua dívida expiada e o seu caráter reformado); na igreja, o pecador (que conseguirá, após uma e outra penitência, a redenção de seu espírito), no manicômio, o louco (que sairá convencido - através de eletrochoques, confinamentos, dietas forçadas, alguns tabefes e outros argumentos bem colocados - de que suas verdades não passam de delírio). E do lado de fora, que há? Há o homem. E não é à toa que, ao se falar "o homem", a imagem dum sujeito branco, adulto, bem alimentado, heterossexual, trabalhador e pai duma família de tradição nos venha à cabeça. E onde estão as mulheres? Os negros? As crianças? Os famintos? Os homossexuais? Os desempregados? Os desajustados, enfim? Estão "aprendendo" nas escolas, "se tratando" nos hospitais, sendo "reabilitados" nas prisões, "se confessando" nas igrejas e fazendo de tudo isto um pouco nos manicômios.
Um saber é a formalização duma série de dispositivos de poder. A pedagogia é a justificação das tecnologias escolásticas a modelar nossos garotos (colégios internos para preservar a pureza original do infanto, escolas técnicas que os preparam para o mercado...). A medicina é um conjunto de práticas que, mirando o corpo individual, visa fortalecer a nação (Staatsmedizin alemã), organizar as cidades (médecine urbaine francesa) e potencializar a produção (occupational medicine inglesa). O sistema jurídico põe nas tábuas da verdade as verdades que os vencedores ditaram aos povos pilhados ("Quid latine dictum sit, altum sonatur"). A metafísica cristã, através duma ladainha salvacionista, cria sujeitos ressentidos, alheios ao mundo do sensível e resignados com os sofrimentos que (acham...) não podem evitar e as asceses que (acham...) devem se submeter. A psicopatologia, por fim, assume a infeliz missão de racionalizar o que foi, previamente, excluído dos domínios da razão (a norma do anormal, a regularidade do desviante, o comum do monstro). A política, diz Michel Foucault, é a continuação da guerra por outros meios, e os saberes, antes de tudo, vêm da necessidade em se justificar as opressões a que o homem submete o ser. O Ser humano é a resultante duma malha de dispositivos; os saberes são a organização dos poderes num discurso unificado e centralista.

Indivíduos ou grupos, fala Gilles Deleuze, somos todos compostos de linhas, e é sobre (ou com...) essas linhas - produtoras de indivíduos, grupos, aléns e aquéns - que devemos nos ater (ou atar... ou desatar...). Já abordamos duas, em implícito: uma linha dura, estratificada, segmentada, institucionalizada; e uma linha flexível, linha de fuga, linha de ruptura. Infância-adultez-velhice (psicologias do desenvolvimento). Trabalho-casa-trabalho-casa-trabalho-férias (modulações do mercado). Casa-escola-universidade-mercado (projeto político-pedagógico). No entanto, não se envelhece do mesmo jeito, não se trabalha do mesmo jeito, não se aprende do mesmo jeito, não se descansa do mesmo jeito, não se vive e se morre do mesmo jeito. Há, por sob esses segmentos naturalizados (termo horroroso...), "diferenças" (que não são individuais, pessoais, privadas, mas tão coletivas quanto às identidades da linha dura, mas a sua maneira própria). São os devires revolucionários que adormecem por sob os Seres da Tradição. Dois movimentos: a territorialização (o sedentário, o agricultor, o homem da escrita, o espaço árido) e a desterritorialização (o nômade, o rastreador, o homem da oralidade primária, o tempo puro). Outro dos dualismos irresolvíveis a que a filosofia nos condena? Não desta vez.

A filosofia da diferença deleuziana é descendente direta da distinção grau/natureza feita por Henri Bergson, cuja metafísica da duração é fonte seminal à ontologia do virtual de Deleuze. A obra de Deleuze constitui-se como uma "filosofia da diferença" visto que faz movimentos críticos frente a todo pensamento "representativo". E por movimento crítico devemos assumir a distinção mesma entre dois "pensamentos": um pensamento moral/representativo/dogmático e um pensamento sem imagem (que não se identifica a mais uma nova imagem do pensamento; não é o novo, mas o inesgotado ou, antes, o inesgotável). Um ligeiro passeio pelo corpus deleuziano (o peccatum verum necessarium...).

Em Diferença e Repetição, Deleuze apresenta quatro postulados sobre a imagem dogmática do pensamento. 1) O Cogitatio natura universalis; o pensamento possui formalmente o verdadeiro e o busca materialmente; 2) tal pensamento é potencialmente compartilhado por todos os homens; 3) o modelo da recognição, exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo; e, por fim, 4) a unidade de todas as faculdades no príncipio geral do "Eu penso". Já em Nietzsche e a filosofia, os caracteres que constituem o pensamento dogmático são um pensador que, enquanto pensador, quer e deseja a verdade, e um pensamento que, enquanto faculdade, é naturalmente e universalmente reto; este pensamento é desviado do verdadeiro devido às forças estranhas ao mesmo – "malditas sejam as paixões da carne e os erros dos sentidos!" – que nos fazem cair no erro, tomando uma coisa falsa por verdadeira, nos legando um princípio singelo: para pensar retamente, precisamos apenas dum método que nos adeque a caminhada. Com Proust e os signos, vemos Deleuze fazer dessa imagem dogmática do pensamento uma imagem racionalista da filosofia, filosofia moral e representativa, visto que constituída de pressupostos, analisando a temática do tempo em Recherche du temps perdu; Marcel Proust, pela leitura de Deleuze, contrapõe este pensamento dogmático a uma nova imagem do pensamento, que enfatiza a relação entre as chamadas "forças externas", fazendo o pensamento sair de sua imobilidade e lhe provocando encontros ou, como Deleuze os chama, intercessões.

Do que escrevo, até aqui? De possibilidades para o exercício do pensar e de uma filosofia que não equivale à contemplação do mundo ou das ideias, nem à dialéticas intersubjetivas ou mesmo reflexões metódicas sobre istos e aquilos. O ofício do filósofo é forjar conceitos, é  produzir ideias, mas não a idéia do platônico, do pensamento representativo e da verdade dada, mas a diferença mesma produzida pelas intercessões, um rompimento das amarras da representação. Pensar é radicalizar, buscar a raiz, as gavinhas, os rizomas que dão consistência ao espaço e suas coisas. O conceito, em síntese, é a ferramenta do filósofo, e este se assemelha mais a um artífice cuidadoso a namorar o mármore (aquele mesmo que Platão tanto denegriu em sua politéia) do que a um mestre esteta (o padre no altar, o orador no púlpito, o professor na cátedra).

Galileu, Descartes, Newton, Leibniz, Einstein, Gödel, estes matemáticos, exemplificando, não recorreram à filosofia para problematizar questões que são próprias da matemática. O mesmo para o pensamento cinematográfico de Eisenstein, Bazin ou Godard. Todos pensaram os problemas colocados por seus próprios domínios, sem recorrerem, diretamente, aos "campos da filosofia". Deleuze, ao contrário, muito utiliza de outras regiões do Ser (usando um termo de Husserl) para tecer a sua palavra, para fiar a sua conversa. O que importa nessas intercessões não são as análises empreendidas sobre tal e qual obra mas os conceitos que estas liberam à atividade filosófica. Tanto o espaço filosófico quanto os espaços "de-fora" forçam-nos a pensar, seja a favor duma constante delimitação espacial dos poderes, saberes e sujeitos, seja contra essa imagem moral e dogmática do pensamento, em prol da invenção, do coletivo e do tempo. Se o primeiro visa capitalizar seus investimentos ("o capital é o corpo-sem-órgãos do capitalista"), este último preza pela capilarização dos seus afetos, numa teoria da imanência pura.

Duas lutas, então, que não equivalem às duas linhas (a linha dura e a linha de fuga) que Deleuze nos lega: uma luta pelos estratos, pelo instituido; e uma luta pela vida e seus movimentos. A vilania e o heroísmo? Ora, lutar pela vida não é pregar a desterritorialização, o que nos condenaria ao vazio, ao não-Ser. Mais ainda, poderia nos legar o tipo de resistência que fortalece àquilo que pretende combater (as bandeiras do drogado orgulhoso da sua condição marginal, do homossexual que assume para si a condição de anormal, do idoso que luta por "espaço" no mercado de trabalho...). Pelo outro lado, lutar pelos estratos é apoiar, ainda que ingenuamente (mas nunca em inocência), as máquinas a oprimirem e docilizarem os corpos, mas não se pode, como queria Descartes, derrubar os fundamentos do erro para, sobre uma nova base, fundar os edifícios da verdade sem que, no processo, desmantelemos a nós mesmos (o sujeito não é, pois, o seu objeto?...). Se o espaço é, já, a decadência (o Verfallen heideggeriano) e o tempo, por sua vez, é o fluxo indefinível, o anti-espaço e a anti-matéria (o devir de Heráclito), que podemos fazer neste mundo pendular no qual as únicas alternativas apresentadas são ou assumir-se um ego, um moi, e excluir dessa redoma da consciência toda a alteridade (marxismos, freudismos e sindicalismos vulgares) ou apostar na dissolução do eu-autoral, do ele-relacional, do nós-grupal e tomar um caminho que, a sua própria maneira, despreza a diferença (nietzscheanismos, deleuzismos e foucaultismos vulgares)?

A linha criativa, como sempre, é pensar o terceiro excluído, que não é o meio-termo, a média ou o consenso. Além do nômade (a condição originária do homem) e do sedentário (o homem capturado pelas tecnologias de si), há a figura do migrante, ora parceiro dos revolucionários nômades, ora aliado dos confederados sedentários. Se o nômade é o forasteiro (não o estrangeiro, que é o forasteiro, o "de-fora", já capturado) a caminhar pelas areias do tempo e o sedentário é o nativo da terra, o agricultor dos espaços, o migrante é o homem das zonas, do eu-fragmentado, da gestão coletiva do espaço-tempo. A zona é sempre uma criação parcial, demanda sempre um olhar precário e deseja, antes de tornar-se permanente (permanecer é perecer, é perder a potência), tornar-se ação. A zona não entra para a História, mas a constrói.

Foucault conta que a onda bergsonista que assolou a França na primeira metade do século passado causou um extremo esvaziamento do espaço enquanto categoria epistêmica e política. Todo espaço é um continente, é uma instituição de asilo e de captura; o tempo é a liberdade (liberdade pra quê, mesmo?...). A zona é o espaço destilando tempo, ou o tempo moldado em espaço. A zona é o movimento ainda em operação, é o corpo (indivíduo ou grupo, tanto faz) em atuação e contato com outros corpos - corpos e sujeitos vivos, não suas contrapartes de palha, como diria Bruno Latour -, é o conceito que não pretende representar, definir ou controlar, mas afirmar, conectar e libertar os povos aprisionados nos espaços desinvestidos. Quais as minorias que ainda fervilham nos espaços totalitários que habitamos (e que nos habitam) e como podem ser apropriados para a promoção das condições de felicidade de um coletivo (cito Latour, mais uma vez)?

Pergunta sem resposta. Não por ser mal-colocada ou por exigir uma tecnologia intelectual para além das atuais. É que a solução, por fim, não é discursiva, não encadeia proposições. Parodiando Kant, poderia dizer que a organização dos territórios, sem a experiência das proposições concretas com as quais pretendemos nos conectar para agir, é vazia (o Psicólogo, o Sociólogo, o Médico, o Pedagogo... áreas, campos, espaços...); mas a vivência bruta e imediata do cotidiano, sem a articulação necessária para atuar e construir, é cega. O espaço esvaziado, o monumento largado em plena praça, e o tempo cego sem saber se guiar neste coliseu dos discursos. O espaço-tempo é a zona, a barraca armada, a feira a se fazer no dito (e não só no escrito). A zona (Kairós) é ação, é batalha, que periga cair tanto nos aparelhos totalitários do espaço (Chronos, encarnado também em micro-aparelhos e pequenos fascismos a nos engolfar, nos legando novos totens e nos condenando a imperceptíveis tabus, segundo a segundo) quanto nos desmantelos informais do tempo (Aeon, a Grande Marcha descrita por Kundera). É a vida...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Pelo quê você luta?

Trabalho é amor feito visível. E o amor, Khalil? É a vida do morimbundo (zumbi ou fantasma?...), o gozo do santo (cínico ou estóico?...), o riso do palhaço (Chaplin ou Keaton?...), a lágrima da atriz (primeiro plano ou bastidores?...), o calor gelado do avermelhadamente lindo céu azul (aurora ou crepúsculo?...), a questão colocada e resolvida (filósofo ou sofista?...). Indecidibilidade. Trabalho é amor, e amor é luta, e luta constante, integral, cósmica, de corpo, alma, espírito e verdade. E essa verdade, precisa de estudo? Estudo é luta, também, assim como o trabalho e o amor. Luta-se contra o sono, contra a vontade doutras coisas (vontade minha ou das coisas?...), contra uma avaliação, contra o texto, contra a equação e contra o problema. E essa luta, tem o seu porquê? Qual a batalha maior na qual está inserida? Em qual guerra, nativista, colonial, mundial, cósmica, está metida? O esforço tem algum sentido?  Máquina, o ser (humano?...) é. Máquina que deseja. Tédio: a histeria contemporânea. Não se luta "contra", oras. Afinal, quem é o inimigo? Luta-se contra si!? E o que se é? Se lutar é ir de encontro, o que se constrói com o sangue derramado (alheio ou próprio?...)? Luta contra o luto, luta por um "a favor de". Planta-se para comer, caça-se para comer, colhe-se para comer. O trabalho e a luta constróem comilanças. O amor é um banquete (Platão ou Xenofonte?...). Quando se deu a alienação, a inversão, a reversal? O filósofo luta "contra" o sono, mas "pelo quê"? "A favor de quê" se luta (agora, sempre agora!..)? Uma graduação, uma carreira, um "mundo melhor"? Indecidibilidade, mais uma vez. Guarda a pena e vai descansar. Ou lutar "contra" essa indefinição até que um "a favor" apareça...