sábado, 15 de janeiro de 2011

A natureza da duração

Olho para os muitos objetos, ao meu redor. Deles, tenho noções que podem ser mais ou menos corretas, claras ou obscuras, distintas ou confusas. Posso não estar inteiramente certo da existência deles, tal qual o delírio cartesiano. Mas sei – disto, eu sei! – duma existência especial dentre as outras, uma que conheço profundamente, interiormente, indubitavelmente: a minha existência mesma. Nossa existência como a existência da qual estamos mais certos. “Qual é, neste caso privilegiado, o sentido preciso da palavra ´existir´?” (2006, p.1).
Assim começa a argumentação de Henri Bergson ao tratar da natureza da duração, no livro
Memória e Vida, uma coletânea de textos escritos pelo filósofo, mas editados – bricolados – pelo Gilles Deleuze, então mestre de conferências de Paris VIII. A sessão I do livro – A Duração e o Método – é feita a partir de recortes de quatro obras do Bergson: Ensaios sobre os dados imediatos da consciência (uma de suas teses de doutoramento, inclusive); Matéria e Memória; A Evolução Criadora e O Pensamento e o Movente, em ordem de publicação. Dentro da sessão I, temos estas quatro subdivisões: a) Natureza da duração; b) Características da duração; c) A intuição como método [cuja resenha já foi postada, cá neste blog]; e d) Ciência e filosofia. A resenha, embora corresponda a diversos textos do Bergson, escritos e publicados em separado, será disponibilizada como um exercício de escrita unificado, linear e homogêneo, assim como os nossos estados de consciência se nos revelam. Do calor ao frio. Da alegria à tristeza. Do trabalho ao ócio. Da ação ao devaneio. Mudamos sem cessar. Essa tal mudança, no entanto, é muito mais profunda do que parece e aparece a nós. Qual a natureza da duração, enfim?
Em geral, falamos de cada um desses estados como se fossem blocos. E, ao dizer que mudamos, entendemos a mudança como a passagem de um desses blocos para um bloco outro. No que se refere a cada estado, cada bloco, cremos que é idêntico a si mesmo durante todo o tempo em que dura. Tomarei um exemplo do próprio Bergson (2006), no entanto, para dizer que não há sensação, sentimento, representação intelectual ou desejo que não para de se modificar, a todo instante, visto que, se cessasse seu movimento, cessaria o próprio fluxo que constitui sua duração. Então. O mais estável – o mais “bloqueado” – de nossos estados psicológicos seria a percepção visual de um objeto exterior que permanece imóvel durante todo o tempo que o observamos. Fitemos este objeto de um mesmo lado, numa mesma angulação, com a mesma luminosidade. A visão que
tenho dele é idêntica à visão que tive dele, no instante imediatamente anterior, com uma única diferença. A imagem seguinte está um instante mais velha. A minha memória está presente no objeto, empurrando o passado – se meu ou do objeto, discutiremos depois – para dentro do presente. “Meu estado de alma, ao avançar pela estrada do tempo, infla-se continuamente com a duração que vai reunindo; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo” (BERGSON, 2006, p.2).
A mudança, ininterrupta, só é notada quando imprime, no corpo, uma nova ação, uma nova atitude, uma nova atenção. Percebemos, assim, que mudamos de estado. Saltamos dum bloco a outro. Seria mais acertado afirmar que mudamos e mudamos, sem cessar, visto que o próprio “estado” já é mudança. A descontinuidade de nossa vida, de nossa experiência psicológica, só se dá em aparência, pois nossa atenção costuma operar através de atos, postos em série. “Nossa atenção se fixa neles porque a interessam mais, mas cada um deles vem inserido na massa fluida de nossa existência psicológica inteira” (BERGSON, 2006, p.3). Durante o sono, nossas funções orgânicas se vêem diminuídas, o que modifica a superfície de contato entre o eu e o mundo-lá-fora e nos priva da faculdade de perceber um tempo homogêneo. No sonho, não mais medimos o tempo, mas o sentimos. A quantidade dá seu lugar a um instinto vago. Marca-se a diferença entre um tempo que se desenvolve no espaço e a verdadeira duração, atingida imediatamente pela consciência.
Bergson (2006) distingue, assim, um eu múltiplo – cujos momentos heterogêneos se penetram, fundem-se e se organizam – de sua sombra projetada no espaço. Um eu que dura e um eu estanque, subdividido e substituído pelo símbolo; como este cabe feito luva nas exigências da linguagem – da vida social – vamos perdendo, pouco a pouco, o eu fundamental. A duração, no entanto, vai para além duma psicologia, sendo fato mesmo no mundo material, que se desenrola numa duração análoga à nossa.
Se eu quiser preparar-me um copo de água com açúcar, por mais que faça, terei de esperar que o açúcar derreta. Esse pequeno fato é rico em ensinamentos. Pois o tempo que tenho de esperar não é mais o tempo matemático que continuaria podendo ser aplicado ao longo da história inteira do mundo material, mesmo que esta se esparramasse de golpe no espaço. Ele coincide com minha impaciência, ou seja, com uma certa porção de minha duração própria, que não pode ser prolongada ou encurtada à vontade. Não é mais algo pensado, mas algo vivido. Já não é uma relação, é um absoluto.” (BERGSON, 2006, p.6)
O copo. A água. O açúcar. A dissolução do açúcar na água. São abstrações, diz o Bergson (2006), recortadas do Todo pelos nossos sentidos, recortes que progridem à maneira duma consciência. E continua. Quando a ciência isola um sistema de seu contexto, não realiza uma operação artificial, totalmente. Se esta atividade não tivesse um fundamento, não se explicaria porque ela é tão acertada em certos casos. E contra-indicada em outros tantos. A matéria tem uma tendência a constituir sistemas fechados, isolados, podendo ser tratados geometricamente. É por esta tendência, mesma, que Bergson (2006) a define. Mas não passa duma tendência, de fato. A matéria nunca se isola por completo, e se a ciência o faz é apenas pela comodidade do estudo, deixando as influências externas de lado. Essas influências, no entanto, são como fios que ligam tal sistema a um outro, que o engloba; a um terceiro, que os engloba a ambos; um quarto, que contém a todos estes, sendo “por esse fio que se transmite, até a mais ínfima parcela do mundo onde vivemos, a duração imanente ao todo do universo (BERGSON, 2006, p.7).
É o universo que dura! E durar é inventar, criar, elaborar, sem cessar. Todos os sistemas que delimitamos só duram porque estão ligados ao universo, que dura ele mesmo, havendo – neste universo – um movimento de queda (o aparecimento dos sistemas, tal qual o desvelar de um rolo, a fazer aparecer as palavras já inscritas nele) e um de elevação (um trabalho de maturação e de formação do “absolutamente novo”, inseparável do primeiro movimento).
Dá-se o mesmo seja com a matéria bruta seja com a organizada. Bergson (2006), inclusive, mostra que uma filosofia como a sua – preocupada em resguardar a especificidade dos objetos ditos vivos – não postula um dualismo da matéria, uma distinção entre duas matérias. Diz, ao contrário, que a vida é uma espécie de mecanismo. Mas não se trata do mecanismo das partes independentes e isoláveis, e sim o mecanismo do todo, do real. Os sistemas que recortamos, destarte, não seriam simples partes, mas visões parciais do todo. No entanto, dispor estas mesmas parcialidades, lado a lado, não recomporá o sistema, assim como mil fotos de um objeto sob diferentes ângulos não recomporão sua materialidade.
Ao analisarmos, minuciosamente, um processo orgânico, encontraremos inúmeros fenômenos físicos e químicos. Mas daí não se deve concluir, tolamente, que “a química e a física devam nos dar a chave da vida” (BERGSON, 2006, p.9). Pensemos numa curva. Um elemento muito pequeno, desta curva, é quase uma linha reta, e quanto menor for esse elemento da curva sobre o qual deitamos nossa atenção, mais similar a uma reta ele será. Em cada um dos pontos da curva, inclusive, a mesma coincide com a sua tangente. A vida, do mesmo modo, é “tangente” às forças físicas e químicas. Tais pontos, entretanto, não passam de abstrações, de paradas no movimento gerador da curva. Dizer da vida como resultante de elementos físico-químicos seria afirmar uma curva como composta por linhas retas.
Agora, não nos parece razoável perguntar se a nossa duração, nossa experiência psicológica, poderia ser a única a existir? E que esta história de um universo que dura possa ser pura balela? Talvez. Mas seria o mesmo que perguntar se poderia não haver no mundo uma outra cor além da cor laranja. Uma “consciência colorida”, que simpatizasse – profunda e internamente – com o laranja, que fosse ela mesma o laranja, não sentiria a si mesma ao modo de uma análise exterior, uma suspensão no vazio, mas intuiria estar entre um vermelho e um amarelo, intuiria o contato com toda uma multiplicidade de durações, seja pra cima seja pra baixo do espectro de cor. Rumo a durações cada vez mais dispersas, a consciência transcenderia a si mesma, em direção tanto à repetição, às nossas sensações imediatas divididas em quantidades, quanto ao eterno. Não a eternidade conceitual, que é morte, mas um eterno vivo e movente. “Entre esses dois limites extremos a intuição se move e esse movimento é a metafísica” (BERGSON, 2006, p.10).

BERGSON, Henri; A natureza da duração; In: Memória e Vida: textos escolhidos; trad. Cláudia Berliner; São Paulo; Martins Fontes; 2006; pp. 1-10.