segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Salto quântico


E, num instante, tudo muda. Não se é mais o Mesmo. O que o Mesmo se torna? O totalmente Outro, o divino e numinoso Outro, o diabólico e bacante Outro. E o que o Mesmo se torna, mesmo!? Ainda não se sabe. Não se é mais o Mesmo, mas ainda não se é um outro Mesmo. É o salto no escuro do homem de fé, do cavaleiro kierkegaardiano, esse tal Outro. É o movimento do eu, o Outro. O inverso nos esclarece: quando um outro se movimenta, o eu sente que algo efetivamente real acontece, quer um objeto tenha passado em frente a seus olhos, quer ele-Mesmo, o eu, esteja se movendo frente a este outro (que não é o Outro, atenção, atenção). Essa certeza-de-realidade do movimento fica ainda maior quando o eu-Mesmo o produz, depois de ter querido fazê-lo. A contração dos seus músculos reforça ainda mais a consciência deste movimento. Significa isto que apreende, ele-Mesmo, o movimento, internamente, como mudança. Quando distingue o som do silêncio, ou mesmo de outro som, o mesmo se dá. A passagem de um estado para outro é um fenômeno real. Absolutamente real. A vida se realizando como uma sucessão de estados, como um metacinema. Do frio ao calor, da alegria à tristeza, do trabalho ao ócio, a vida muda sem cessar. Uma mudança profunda, mudança que é muito mais do que parece e aparece no telão do cinema-da-consciência. O cartesiano, ele-Mesmo, sabe que existe. Sabendo disto, que existe, pergunta o que ele-Mesmo é: uma coisa que pensa, conclui pensando. Mas quem disse que ele-Mesmo, de antemão, era uma coisa? Ser é ser-alguma-coisa? O que é Ser? Ser é pensar um objeto, Ser é conhecer o mundo extenso, Ser é o caralho, escreve Descartes. Ora, Ser é mudar, é o movimento, diz a vida, canta a vida, pois. As gentes falam do tempo - está quente, está frio, está assim, está assado (o não-assim) - como uma sequência de momentos, de estados, e de cada um desses estados como se fossem blocos. E, ao dizer que mudam, entendem a mudança como a passagem de um desses blocos para um bloco outro (que não é o Outro). No que se refere a cada estado, cada bloco, creem que é idêntico a si mesmo durante todo o tempo em que dura. Uma preleção bergsoniana: o mais estável - o mais “bloqueado” - dos estados psicológicos seria a percepção visual de um objeto exterior que permanece imóvel durante todo o tempo em que é observado. Fita-se este objeto de um mesmo lado, numa mesma angulação, com a mesma luminosidade. A visão que dele se tem é idêntica à visão que dele se teve no instante imediatamente anterior, com uma única diferença: a imagem seguinte está um instante mais velha. A memória está presente no objeto, empurrando o passado para dentro do presente. Sensações, sentimentos, pensamentos, desejos, nunca param de se modificar, a todo instante, visto que, se cessasse seu movimento, cessaria o próprio fluxo que constitui sua duração. A psicologia cotidiana diz que a mente - seu objeto de estudo, sua coisa-que-pensa - salta dum bloco a outro. Seria mais acertado, no entanto, afirmar que se muda e se muda, sem cessar, visto que o próprio “estado” já é mudança. A descontinuidade da vida, da experiência psicológica, só se dá fenomenalmente, pois a atenção costuma operar através de atos, postos em série. A mudança, ininterrupta, só é notada quando imprime, no corpo, uma nova ação, uma nova atitude, logo, uma nova atenção. Percebe-se, assim, uma mudança de estado. É, pois, uma violência que demarca o ponto de mutação, que separa o frio do calor, o santo do apóstata, o anjo do diabo. E se o anjo caído vira diabo, um deus caído se vira em quê? Ganha corpo e vira gente. Mas Deus deposto não chora por perder seu trono, assim como o santo não chora por ser excomungado e o poeta não chora por ser incompreendido pelo gramático. Mas, sem choro, sem reação, como Deus, o santo e o poeta saberão que mudaram de natureza e se tornaram Outro? Não se sabe (mas eles sabem). O Mesmo sabe dele e do outro (que não é o Outro...), mas só o Outro sabe de si-mesmo (que não é o Mesmo, atenção), sem pensar muito sobre isso. Se pensar, vira outro, vira o outro de um Mesmo qualquer, vira um Mesmo qualquer e esquecerá que um dia já foi Outro. O melhor a fazer é esperar. E ver o Outro subir aos céus, mais uma vez, e virar outro Mesmo. Até que, num instante, num instante Outro, tudo possa mudar...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Sou do tempo em que Merthiolate© doía

Não, o post não vai discutir o quanto o passado é melhor que nosso presente, o quanto a tradição é mais valorosa que as vanguardas atuais, o quanto a minha infância é superior à dos infantos atuais etc., etc. (esse dualismo ingênuo, que anda pululando nas imagens compartilhadas do Facebook, poderia ser temática dum texto futuro, inclusive...). O que venho conversar aqui é, num resumo, a compressão espaço-temporal proporcionada pelas tecnologias do cotidiano. Ou seja, venho conversar sobre resumos. O abstract de um artigo científico, por exemplo, é a redução extrema doutra experiência textual maior; a sinopse dum blockbuster hollywoodiano é a síntese da crise pela qual o cenário e os personagens da película passam e têm de atravessar para retornar a sua organicidade original; um manual teórico é a concatenação de diversos pensamentos em pequenos preconceitos sobre um e outro conceito desses sistemas. A ideia pronta é um mal irrefletido, é o mal da falta de reflexão? Não exatamente.

A ideia pronta é como uma ferramenta e uma ferramenta, redundando, é um algo pronto, um algo acabado, que às vezes nos convém e às vezes não. Claro, quando o primeiro sujeitinho percebeu que amarrando aquele pedregulho num pedaço de madeira firme teria ele maiores chances de abater a caça, não deu outra: todo o bando se pôs a usar e abusar do invento, quer os usuários tenham muita noção ou não da fagulha de genialidade que brotou em nosso cientista selvagem. Quando o martelo (mesmo o nietzscheano) não nos serve em nosso ofício, não se deve destratá-lo, nem jogá-lo fora, e sim guardá-lo na caixa e buscar uma outra ferramenta. Ou seja, a ferramenta é subserviente ao problema e não o inverso (o psicanalista que estupra o sofrimento do paciente e lhe deturpa os dizeres em nome do Pai teria muito o que aprender com o ferreiro pré-totêmico).

Qual é a treta em se usar os martelos sem a intuição direta de suas experiências originárias? Nenhuma. Mas, ao se usar o martelo, perde-se a inserção no campo problemático que lhe serve de condição. E daí? E daí se a motricidade é a inimiga do afeto? Não é a ação que importa, no fim das contas? Talvez no fim das contas, mas não no desenvolvimento da demonstração geométrica e na postura da equação. O esquema de Schopenhauer: se o talentoso é aquele tribal que tão bem sabe usar o martelo, o genial é aquele caçador meio desengonçado que, sem pontaria para arremessar pedras no animal, constrói uma técnica de caça - ainda que acidentalmente; principalmente em acidente - que exige mais da sua força que da sua pouca destreza; e, nessa, o martelo se faz; fiat lux. O martelo se faz mas poderia não se fazer. Poderíamos ter outra ferramenta ou o caçador poderia ter sido expulso do bando devido a sua inaptidão e morrido ao relento, solitário. Mas foi essa a solução que o problema encontrou e produziu, legando àquele coletivo um novo membro, um novo atuante, ator carregado de histórias.

Um resumo que pode nos ajudar a pensar este princípio (se problematizo, não resolvo; se resolvo, não problematizo) na História é a abordagem inédita do cinema realizada pelo dromólogo Paul Virilio, que diz da participação das técnicas cinematográficas nos grandes conflitos do século XX. Não se está a falar, tão somente, duma fusão câmera-arma. De fato, temos aparatos de mira indireta, visores telescópicos nos aviões artilheiros, veículos travelling, satélites espiões. Para além disso, temos o já sabido “serviço cinematográfico dos exércitos”, a propaganda militar dirigida aos civis, através do cinema. Mas a novidade da crítica cinematográfica viriliana reside em seus comentários acerca do “serviço militar das imagens”, o conjunto das representações táticas e estratégicas dos conflitos. As “distâncias” vão sendo anuladas a partir de métodos cada vez mais rápidos de comunicação, como a estratégia militar de abreviação das informações, as fotos instantâneas e as sequências fílmicas de reconhecimento aéreo. O uso indiscriminado de materiais de transmissão instantânea promove uma maior elaboração na codificação das mensagens mentais e uma redução do tempo de retenção dessas mensagens e da possibilidade de recuperação ulterior, numa virada das antigas estratégias de combate para uma logística da percepção. Antes, tínhamos o espetáculo das “armas de teatro” (mísseis, foguetes, bombas nucleares), verdadeiro princípio guerreiro de dissuasão; temos, assim, uma inversão: se a arma de destruição em massa deve ser conhecida para dissuadir, aposta-se, agora, na furtividade, na incerteza e no ocultamento.

Vemos, aí, subsídios para uma epistemo-técnica, uma postura frente à compressão espaço-temporal propiciada pelas tecnologias, já que, para Virilio, caberá ao homem enredado por esta logística da percepção apenas o consumo das informações produzidas pelas máquinas de cálculo e visão. Filósofo do tempo real, critica a imediaticidade que as tecnologias produzem e demandam. Neste sentido, Virilio caracteriza o cibermundo – mais atrelado ao percepto contemporâneo que as imagens cinematográficas, salientamos – como um totalitarismo global, sem fronteiras, que, justamente por ter perdido suas delimitações espaciais, não se restringe ao território (à maneira dos colonialismos, do fascismo italiano ou do nazismo). Quatro imagens fáceis de serem visualizadas que abordam os efeitos dessa logística: repassar o e-mail sem conferir a veracidade do mesmo; curtir uma citação ou compartilhar uma imagem no Facebook sem, de fato, ter gostado ou sentir-se parte de nada; parabenizar, genericamente, um aniversariante que seja seu contato numa rede social qualquer; achar que o post novo daquele weblog que você visita poderia ter sido menor. Se uma ameba numa solução aquosa tem um feixe de luz incidido sobre ela, imediatamente volve seu corpo para a fonte luminosa; a percepção do feixe e a ação sobre o feixe é um único e mesmo movimento, é a afirmação maior de um esquema sensório-motor, supressor do contexto, do tempo e do pensamento (logo, da subjetividade, da problematização e da invenção).

Pierre Lévy discordaria desse anti-instrumentalismo. Numa abordagem tradicionalista da comunicação, o comunicar teria, como função primeira, a transmissão de informações, o contexto intervindo, apenas, como um auxiliar na interpretação das mensagens dirigidas. Mas, para Lévy, o ato de comunicar define, fundamentalmente, a situação que significa e valora a troca de mensagens; agir e comunicar são sinônimos, sim, mas apenas quando consideramos o contexto como o próprio alvo da comunicação, dos atos-de-comunicação. Dentro de escalas variáveis (pessoas, aparelhos, técnicas, organizações), os atores da comunicação e os elementos das mensagens que emitem (falas, objetos, planejamentos, dispositivos) criam e recriam universos de sentido, mundos de significação. Para Lévy, essa estrutura hipertextual não dá conta, tão somente, dos processos comunicativos, mas sobretudo dos processos sociotécnicos. O hipertexto como uma metáfora para todas as esferas do real que tratem da produção e do consumo de bens e significações. Se Virilio condena a cibercultura por considerá-la a terrível encarnação dum totalitarismo desterritorializado, Lévy aposta, justamente, nesta ausência de chão para investir numa nova cultura centrada em coletivos inteligentes.  Falo, por telefone e Live Messenger, com um amigo residente no Japão enquanto tomo uma xícara de café para não dormir devido ao horário já avançado; o celular separa a minha voz do meu corpo e a faz viajar distâncias inalcançáveis às minhas pregas vocais e numa velocidade maior do que a velocidade dos ventos (a conversa se dá aqui ou lá?...); a xícara de café noturna não me deixa dormir e me faz experimentar a vigília para além de seu alcance dito natural (as ferramentas são extensões de meu corpo?...); enfim: meu eu, minha alma, minha luz natural está aqui ou lá, lá longe onde a minha escrita chega, minha voz atinge, minha visão alcança? Onde estou presente? E quando? Onde está meu corpo? Sou um corpo? Sou um corpo (e não dois, dez ou infinitos)?

Tanto na imagem cinematográfica (filmes, seriados, documentários, telejornais) quanto nas hiper-mídias (websites, chats, blogs...) temos redes sociotécnicas produtoras de significação, que se entrecruzam o tempo todo em suas potências (a televisão interativa, o spam comercial, o domínio virtual privado). O problema: como saimos de devoradores de imagens para produtores de sentido? Lévy e Virilio personificam dualidades que não são as de um Zaratustra: a potência revolucionária das tecnologias (o martelo a abater o bisão, o Facebook a abater Mubarak) e a anestesia dos encontros e afetos propiciada pela velocidade das tecnologias (o professor especializado em dar aulas sobre a boa utilização do martelo, o internauta perdido em movimentos circulares e inengendrados no Facebook). São excludentes? Deverasmente não.

Se quero aprender um pouco de música, posso encontrar muita informação disponível pela internet: história dos estilos, os instrumentos e a organização duma orquestra, leitura de pautas, cifragem européia, luthieria; uma simples busca no Google me apresenta bibliotecas e compêndios sem fim. Pesquiso um manual de teoria musical, leio um artigo sobre o nascimento da noção de harmonia, assisto interpretações históricas no Youtube, baixo CD´s diversos, converso com outras pessoas numa comunidade do Orkut dedicada à música instrumental. Depois disto tudo, quando, numa roda de conversa, me perguntam onde eu aprendi sobre, sei lá, "as diferenças entre o Tango e o Flamenco" ou onde eu - sei lá, mais uma vez - aprendi a interpretar Luiza, do Tom Jobim, daquele jeito, respondo: "na internet, oras". E esta resposta, embora correta, pode nos levar a colocar um problema inexistente, visto lidar com este misto mal-analisado que é a noção de espaço (o onde da questão).

Pensar a internet como um espaço no qual impera a livre produção de conhecimento e o compartilhamento de informações é assumir-se ingênuo se não remodelamos a própria ideia de espacialidade. Afinal, se aprendo japonês com aquele meu amigo nipônico (por telefone e Live Messenger, repito) e me perguntarem na mesma roda de conversa "onde você aprendeu o idioma?", seria estranho se eu respondesse "no telefone" ou "no msn". O telefone e o msn estruturam, isso sim, a rede cognitiva que condiciona o aprendizado (que não é o aprendizado simples de um organismo, de um eu, mas a atualização dum coletivo em virtualidade). Idem para a internet. A noção de internet pensada como um lugar só é válida se pensarmos o telefone, o livro, a televisão, a fala e tantas outras tecnologias da informação como outros lugares (o que logo nos soa como estranho, sem sentido). Se a internet for espaço seria um espaço trans-local, trans-lugar, espaço-trans-espacial, espaço ciborgue, ciber-espaço. Logo, o sujeito conectado, o ciborgue, é trans-egóico e identifica-se com o coletivo articulado de tecnologias que o condiciona.

Neste sentido, não há nada de mais antigo que a internet (rede-entre-redes) já que essa condição ciborgue é que funda a condição humana (je est un autre, diria Rimbaud). E o outro, a diferença, o trans-identitário, é sempre incômodo, doloroso e hostil. Se Beethoven tinha de dar seus pulos-de-gato para assistir os concertos de Mozart ou conseguir cópias bem transcritas da obra de Bach, o musicista de hoje só precisa visitar o Youtube e o IMSLP, que está tudo lá. Tanto este tem quanto Beethoven teve acesso a informações, a redes de significação que permitem ao meu contemporâneo e permitiam ao Ludwig van produzir e consumir música, com a distinção de que o repertório de conhecimento legado ao estudante de hoje é alarmantemente maior e de mais fácil acesso que o do cão da Renânia. Seriam os músicos da atualidade, então, potencialmente, melhores artistas que Beethoven? Não, nem ouso pensar em nada semelhante. O padre proibe o excesso pois este inibe a sensibilidade; Beethoven, na correria e no esforço ascético para ouvir e fazer som, produz afetos, encontros, coletivos inteiros. Toda a geração atual de músicos e ouvintes internautas - incluo-me aí - só precisa apertar o play dum executor de mídia qualquer em seu próprio PC e é isso. A música de Beethoven dói. A minha é um esquema sensório-motor. Beethoven é profundo não por conhecer a música em demasia, mas por tecê-la em rede e por conectá-la a outras redes produtoras de vida e de diferença. Ele é a engrenagem; eu (o eu...), o botão.

Se pareço pactuar com Virilio, não o faço rompendo com Lévy. Eles aprovariam essa promiscuidade maquínica e poligâmica que faço com ambos, acredito. Se a velocidade tecnológica sequestra e captura a subjetividade, ela também pode ser apropriada para a produção de liberdade (não o livre-arbítrio, que é apenas o ego de barriga cheia, plenamente saciado e anestesiado pelo seu coletivo). Com o martelo, o campo problemático instalado pelo bisão não mais existe; o caçador pode entregar-se à luxúria, à preguiça e ao conforto; mas, aí, já coloca possibilidades para a instauração de um novo problema (logo, de novas possíveis invenções; invenções do eu, dos objetos, do espaço, do tempo, do mundo). O Facebook-rede, que promoveu no dia 25 de Janeiro deste ano uma mobilização de centenas de milhares de pessoas na praça Tahrir em protesto ao abuso das forças de segurança e das políticas do governo que empobreceram o povo egípcio, fazendo o presidente-ditador Hosni Mubarak renuciar aos seus 30 anos de poder; e o Facebook-coisa, o que você utiliza pra ficar derivando improdutivamente nos espaços virtuais ("estou no Face, estou no msn, estou no Twitter...") e rindo dos mesmos memes num ritornelo infinito. Se perceber, aja: é o lema do esquema sensório-motor. A subversão desse esquema não é a imobilidade, o vazio, o caos, a entropia. O oposto do chão sólido e de sua segurança não é uma morte agonizante no mar revolto, mas os diversos barquinhos e navios, tábuas e iates, botes e trans-atlânticos, que nos levam a paragens antes desconhecidas. Revolucionar não é demolir o esquema S-M, mas apenas colocar o afeto entre um e outro e fazer a resposta durar, dar tempo à solução para que ela se mature e nos mature, nos legando não mais uma reação previsível e mecânica, mas uma ação propriamente dita. Invenire...

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Carta a um intelectual


Sou poeta, antes de qualquer coisa; mas poeta por incapacidade. Tenho certa inabilidade para com a ordem e o decoro. Olho pra você: engomado, perfumado, todo penteado. Escreve como um anjo. É encadeado, objetivo, cirúrgico e, como tal, é um enviado do divino. É a nossa diferença maior, inclusive. Indo direto ao assunto – o que não costumo fazer – digo que não partilhamos da mesma caneta. Escrevo para te dizer isto, e é só (somente, mas não sozinho, e por não ser sozinho, vou teimar e continuar a escrever, pra povoar isto aqui de gentes, bichos, monstros, demônios). A sua caneta aponta para as coisas, é caneta de adequação ao mundo, de referência ao real. Se eu te chamo de resignado? Sim! Claro! Mas não tenho muita certeza. A paixão, sim, mas não a certeza. Duvido, mas não como filósofo. Minha dúvida não é uma epoché, tampouco uma ignorância, mas uma doença. Você fala e escreve para informar um segundo sobre um terceiro. Seu mundo é um triângulo, seu mundo é uma trindade santíssima. Já eu não tenho um mundo meu. Sou incapaz de organizar e decorar a vida, e faço questão de não te deixar esquecer isso. Vê só, acabei de ler um texto seu; você fala de alguma-coisa usando o pensamento de não-sei-quem e aproximando com a escola de não-sei-onde. Seu texto é uma aula: todos os alunos calados (ou dormindo, já que calar é colocar os demônios pra dormir), uma cadeia de argumentos em desenvolvimento e alguma temática obscura  a se esclarecer. Quando escrever se resume a informar e comunicar, quando escrever se torna dar uma aula, a única lida que podemos ter com um enunciado é dizer da verdade ou da falsidade dele. Sintaxe, morfologia, semântica, gramáticas etc, etc. É verdadeiro, é falso, é ruído (o aluno que acorda). À sua fala que representa o mundo (epistêmica e politicamente), apresento a minha que o constrói. Minha linguagem é ferramenta, no literal. Um martelo para pregar, um violão para cativar, um punho para derrubar. Eu não “informo sobre o real”,  mas me insiro nele e o afeto. Gastar saliva para só dizer da verdade (ou da mentira, que é a verdade pelo  avesso; “desconstruída”, como diria você) é muito custo para pouco benefício. Salivo e faço poesia, e isto pela minha incapacidade de organizar a casa. Sou incapaz, já o confessei, e se sou um poeta é porque também não sei cuspir (o melhor custo-benefício da saliva,  inclusive;  nem Sócrates nem Cálicles, mas Diógenes). Você procede pela educação (a melhor das hipóteses), pela propaganda (o mal-por-vir) e pelo fascismo (os desejos de tirania; e falo dos cotidianos, mesmo) para construir um Mundo Melhor. O que faço em minha anti-filosofia é trabalhar, e trabalhar coletivamente, no incessante ofício de enxugar gelo que é construir nossas próprias histórias. Se o aluno acorda, isso não é lá algo ruim. Os ruidosos não precisam de educação, informação, punição, que seja; precisamos, isso sim, construir corpos que suportem esses ruídos e mundos nos quais esses ruídos possam tornar-se voz. Se sou incapaz de submeter os infinitos mundos e transformá-los num 3, é porque os próprios mundos não se prestam a essa tarefa. Minha incapacidade é respeito por esse desejo. Não sou parteiro das almas, mas um mago do câncer, um terrorista biológico. Você ajuda a dar a luz; eu, incito gangrenas. E isto porque amo, acredita? Já desisti de instruir o aluno, contextualizar o leitor e ler os textos de outros com os meus próprios olhos, e passei a trabalhar, inserido em meu próprio mundinho (e atento aos demais, que são bem mais que três), com minhas próprias ferramentas, numa história (e não mais num Mundo...) melhor.

domingo, 13 de novembro de 2011

Douze ou treze jours

 

O Sol titubeia por um microssegundo, um instante, um Kairós, e não sabe mais se estava a ir ou vir. É o momento dubitável por excelência, a Terra treme, os homens congelam, as pedras se calam. O crepúsculo se confunde com a aurora e o alaranjado tímido do céu não lembra se tem de avermelhar ou se vai amarelar de vez. É noite? É dia? Doze ou treze dias? Uma, dez ou cem vidas? Ao término da carta, o enamorado a lê, relê, edita, apaga, torna a escrever, volta a reler e, por fim, a sela num envelope. Pronto. Já pode atear fogo em sua obra. Zen? Não, nada de desprender-se dos desejos. Aporia budista: se a existência humana é sofrimento devido aos inúmeros desejos que não conseguimos trazer ao real, que acontece com o corpo pleno de realizações, com o corpo que tudo conseguiu realizar? Mais ainda, que acontece ao corpo cujo desejo não precisa vir à tona para ser saciado, um corpo que deseja, tão-só, desejar? O homem grego deseja cuidar de si - medicina, ginástica, dialética - para melhor cuidar dos seus; o romano, poeta do mundo privado, deseja a pax; o cristão deseja afogar o desejo e, mortos, ambos ganharão a vida e o gozo na eternidade (Chronos tomado por Aeon...); o humanista, descrente do presente e do futuro a que ele lhe condena, reinicia a ciranda de pedra e deseja um retorno a les bons moments helenos; o cientista, sobrinho-neto do humanista, deseja circunscrever o desejo dentro do seu campo visual (desejo = gado). E o enamorado - de todas as épocas, de todos os "tempos" -, aquele mesmo cujo corpo deseja, apenas, desejar? É fogo puro, este; o mesmo que, há pouco, incendiou a sua carta depois de lê-la, relê-la, editá-la, apagá-la et cetera. Ama o seu desejo, ama seu amor, o enamorado, mesmo que nada de sólido (ou líquido... ou gasoso...) lhe venha daí. O cancioneiro gagueja sua melodia, o poeta transborda versos de silêncio e o pintor enquadra o seu afeto pouco lúcido. E daí?  São todos o enamorado que esqueceu de destruir as provas deste crime monstruoso, desta anti-natureza, que é o sacrifício (sacrum facere...) do amor. O fogo é o elemento fátuo, é a invenção e a contravenção, matéria e luz. O enamorado é um incendiado e um incendiário. Tudo o que abraça retorna ao pó. Eis a paixão: consumir. E o amor?  E o enamorado? Não quer consumir o alheio mas sumir em seu desejo, como um suicida em plena queda livre.  É fluxo de graça e dívida, de beatitude e profanidade, de alma e de corpo. Sublime é o corpo capaz de atear o fogo do Sol num coração de homem e sublimar-lhe o espírito. Sim, o corpo sublime é epifania, é Deus feito mulher. Divina, diabolicamente divina, é a rainha amada. Ser-amada não é ser-objeto-de-amor. Assim como o cancioneiro, o poeta e o pintor são apenas o aspecto visível do enamorado, a rainha, que é fonte de amor, torna-se objeto-de-desejo quando vista pelos olhos dos aquáticos. Ser-amada é fazer o valete entregar-lhe as armas sem que este nada queira, nada deseje com isto - nem a paz, nem o reino, nem a rainha - além do amor ele mesmo, além do fogo. Arde de vida, o enamorado, e só quer crepitar. O enamorado pergunta: "doze ou treze dias?" Os homens lhe respondem: gregos, romanos, cristãos, humanistas, cientistas, cada um a sua maneira lhe dá o conselho, a resposta e o encaminhamento. O enamorado, pela primeira vez, pensa. E responde: "Que importa!? Quem se importa!?" Pra ele, sua rainha amada lhe basta. Não por a possuir, nem por ser o objeto dela - ainda que a possua, corpo e alma; ainda que por ela seja querido - mas por, devido a ela, sentir e ser, ele mesmo, o desejo sem um objeto-consumido-pelo-fogo, o fogo incansável e sibilante do Sol e o Sol a duvidar, no instante oportuno, de todo o universo. Menos do amor...

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Tempos, espaços e zonas

Toda delimitação espacial é, necessariamente, asilar. Escola, hospital, prisão, igreja, manicômio. O teto não nos protege da chuva, tão só. Eis a logística da triagem dos corpos: na escola, o inculto (que, ao assumir-se como sabedor de coisa alguma, sairá de lá como douto e letrado em alguma coisa); no hospital, o doente (que, tratado, medicado e devidamente encaminhado, voltará esbanjando saúde); na prisão, o criminoso (que, depois de punido, terá a sua dívida expiada e o seu caráter reformado); na igreja, o pecador (que conseguirá, após uma e outra penitência, a redenção de seu espírito), no manicômio, o louco (que sairá convencido - através de eletrochoques, confinamentos, dietas forçadas, alguns tabefes e outros argumentos bem colocados - de que suas verdades não passam de delírio). E do lado de fora, que há? Há o homem. E não é à toa que, ao se falar "o homem", a imagem dum sujeito branco, adulto, bem alimentado, heterossexual, trabalhador e pai duma família de tradição nos venha à cabeça. E onde estão as mulheres? Os negros? As crianças? Os famintos? Os homossexuais? Os desempregados? Os desajustados, enfim? Estão "aprendendo" nas escolas, "se tratando" nos hospitais, sendo "reabilitados" nas prisões, "se confessando" nas igrejas e fazendo de tudo isto um pouco nos manicômios.
Um saber é a formalização duma série de dispositivos de poder. A pedagogia é a justificação das tecnologias escolásticas a modelar nossos garotos (colégios internos para preservar a pureza original do infanto, escolas técnicas que os preparam para o mercado...). A medicina é um conjunto de práticas que, mirando o corpo individual, visa fortalecer a nação (Staatsmedizin alemã), organizar as cidades (médecine urbaine francesa) e potencializar a produção (occupational medicine inglesa). O sistema jurídico põe nas tábuas da verdade as verdades que os vencedores ditaram aos povos pilhados ("Quid latine dictum sit, altum sonatur"). A metafísica cristã, através duma ladainha salvacionista, cria sujeitos ressentidos, alheios ao mundo do sensível e resignados com os sofrimentos que (acham...) não podem evitar e as asceses que (acham...) devem se submeter. A psicopatologia, por fim, assume a infeliz missão de racionalizar o que foi, previamente, excluído dos domínios da razão (a norma do anormal, a regularidade do desviante, o comum do monstro). A política, diz Michel Foucault, é a continuação da guerra por outros meios, e os saberes, antes de tudo, vêm da necessidade em se justificar as opressões a que o homem submete o ser. O Ser humano é a resultante duma malha de dispositivos; os saberes são a organização dos poderes num discurso unificado e centralista.

Indivíduos ou grupos, fala Gilles Deleuze, somos todos compostos de linhas, e é sobre (ou com...) essas linhas - produtoras de indivíduos, grupos, aléns e aquéns - que devemos nos ater (ou atar... ou desatar...). Já abordamos duas, em implícito: uma linha dura, estratificada, segmentada, institucionalizada; e uma linha flexível, linha de fuga, linha de ruptura. Infância-adultez-velhice (psicologias do desenvolvimento). Trabalho-casa-trabalho-casa-trabalho-férias (modulações do mercado). Casa-escola-universidade-mercado (projeto político-pedagógico). No entanto, não se envelhece do mesmo jeito, não se trabalha do mesmo jeito, não se aprende do mesmo jeito, não se descansa do mesmo jeito, não se vive e se morre do mesmo jeito. Há, por sob esses segmentos naturalizados (termo horroroso...), "diferenças" (que não são individuais, pessoais, privadas, mas tão coletivas quanto às identidades da linha dura, mas a sua maneira própria). São os devires revolucionários que adormecem por sob os Seres da Tradição. Dois movimentos: a territorialização (o sedentário, o agricultor, o homem da escrita, o espaço árido) e a desterritorialização (o nômade, o rastreador, o homem da oralidade primária, o tempo puro). Outro dos dualismos irresolvíveis a que a filosofia nos condena? Não desta vez.

A filosofia da diferença deleuziana é descendente direta da distinção grau/natureza feita por Henri Bergson, cuja metafísica da duração é fonte seminal à ontologia do virtual de Deleuze. A obra de Deleuze constitui-se como uma "filosofia da diferença" visto que faz movimentos críticos frente a todo pensamento "representativo". E por movimento crítico devemos assumir a distinção mesma entre dois "pensamentos": um pensamento moral/representativo/dogmático e um pensamento sem imagem (que não se identifica a mais uma nova imagem do pensamento; não é o novo, mas o inesgotado ou, antes, o inesgotável). Um ligeiro passeio pelo corpus deleuziano (o peccatum verum necessarium...).

Em Diferença e Repetição, Deleuze apresenta quatro postulados sobre a imagem dogmática do pensamento. 1) O Cogitatio natura universalis; o pensamento possui formalmente o verdadeiro e o busca materialmente; 2) tal pensamento é potencialmente compartilhado por todos os homens; 3) o modelo da recognição, exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo; e, por fim, 4) a unidade de todas as faculdades no príncipio geral do "Eu penso". Já em Nietzsche e a filosofia, os caracteres que constituem o pensamento dogmático são um pensador que, enquanto pensador, quer e deseja a verdade, e um pensamento que, enquanto faculdade, é naturalmente e universalmente reto; este pensamento é desviado do verdadeiro devido às forças estranhas ao mesmo – "malditas sejam as paixões da carne e os erros dos sentidos!" – que nos fazem cair no erro, tomando uma coisa falsa por verdadeira, nos legando um princípio singelo: para pensar retamente, precisamos apenas dum método que nos adeque a caminhada. Com Proust e os signos, vemos Deleuze fazer dessa imagem dogmática do pensamento uma imagem racionalista da filosofia, filosofia moral e representativa, visto que constituída de pressupostos, analisando a temática do tempo em Recherche du temps perdu; Marcel Proust, pela leitura de Deleuze, contrapõe este pensamento dogmático a uma nova imagem do pensamento, que enfatiza a relação entre as chamadas "forças externas", fazendo o pensamento sair de sua imobilidade e lhe provocando encontros ou, como Deleuze os chama, intercessões.

Do que escrevo, até aqui? De possibilidades para o exercício do pensar e de uma filosofia que não equivale à contemplação do mundo ou das ideias, nem à dialéticas intersubjetivas ou mesmo reflexões metódicas sobre istos e aquilos. O ofício do filósofo é forjar conceitos, é  produzir ideias, mas não a idéia do platônico, do pensamento representativo e da verdade dada, mas a diferença mesma produzida pelas intercessões, um rompimento das amarras da representação. Pensar é radicalizar, buscar a raiz, as gavinhas, os rizomas que dão consistência ao espaço e suas coisas. O conceito, em síntese, é a ferramenta do filósofo, e este se assemelha mais a um artífice cuidadoso a namorar o mármore (aquele mesmo que Platão tanto denegriu em sua politéia) do que a um mestre esteta (o padre no altar, o orador no púlpito, o professor na cátedra).

Galileu, Descartes, Newton, Leibniz, Einstein, Gödel, estes matemáticos, exemplificando, não recorreram à filosofia para problematizar questões que são próprias da matemática. O mesmo para o pensamento cinematográfico de Eisenstein, Bazin ou Godard. Todos pensaram os problemas colocados por seus próprios domínios, sem recorrerem, diretamente, aos "campos da filosofia". Deleuze, ao contrário, muito utiliza de outras regiões do Ser (usando um termo de Husserl) para tecer a sua palavra, para fiar a sua conversa. O que importa nessas intercessões não são as análises empreendidas sobre tal e qual obra mas os conceitos que estas liberam à atividade filosófica. Tanto o espaço filosófico quanto os espaços "de-fora" forçam-nos a pensar, seja a favor duma constante delimitação espacial dos poderes, saberes e sujeitos, seja contra essa imagem moral e dogmática do pensamento, em prol da invenção, do coletivo e do tempo. Se o primeiro visa capitalizar seus investimentos ("o capital é o corpo-sem-órgãos do capitalista"), este último preza pela capilarização dos seus afetos, numa teoria da imanência pura.

Duas lutas, então, que não equivalem às duas linhas (a linha dura e a linha de fuga) que Deleuze nos lega: uma luta pelos estratos, pelo instituido; e uma luta pela vida e seus movimentos. A vilania e o heroísmo? Ora, lutar pela vida não é pregar a desterritorialização, o que nos condenaria ao vazio, ao não-Ser. Mais ainda, poderia nos legar o tipo de resistência que fortalece àquilo que pretende combater (as bandeiras do drogado orgulhoso da sua condição marginal, do homossexual que assume para si a condição de anormal, do idoso que luta por "espaço" no mercado de trabalho...). Pelo outro lado, lutar pelos estratos é apoiar, ainda que ingenuamente (mas nunca em inocência), as máquinas a oprimirem e docilizarem os corpos, mas não se pode, como queria Descartes, derrubar os fundamentos do erro para, sobre uma nova base, fundar os edifícios da verdade sem que, no processo, desmantelemos a nós mesmos (o sujeito não é, pois, o seu objeto?...). Se o espaço é, já, a decadência (o Verfallen heideggeriano) e o tempo, por sua vez, é o fluxo indefinível, o anti-espaço e a anti-matéria (o devir de Heráclito), que podemos fazer neste mundo pendular no qual as únicas alternativas apresentadas são ou assumir-se um ego, um moi, e excluir dessa redoma da consciência toda a alteridade (marxismos, freudismos e sindicalismos vulgares) ou apostar na dissolução do eu-autoral, do ele-relacional, do nós-grupal e tomar um caminho que, a sua própria maneira, despreza a diferença (nietzscheanismos, deleuzismos e foucaultismos vulgares)?

A linha criativa, como sempre, é pensar o terceiro excluído, que não é o meio-termo, a média ou o consenso. Além do nômade (a condição originária do homem) e do sedentário (o homem capturado pelas tecnologias de si), há a figura do migrante, ora parceiro dos revolucionários nômades, ora aliado dos confederados sedentários. Se o nômade é o forasteiro (não o estrangeiro, que é o forasteiro, o "de-fora", já capturado) a caminhar pelas areias do tempo e o sedentário é o nativo da terra, o agricultor dos espaços, o migrante é o homem das zonas, do eu-fragmentado, da gestão coletiva do espaço-tempo. A zona é sempre uma criação parcial, demanda sempre um olhar precário e deseja, antes de tornar-se permanente (permanecer é perecer, é perder a potência), tornar-se ação. A zona não entra para a História, mas a constrói.

Foucault conta que a onda bergsonista que assolou a França na primeira metade do século passado causou um extremo esvaziamento do espaço enquanto categoria epistêmica e política. Todo espaço é um continente, é uma instituição de asilo e de captura; o tempo é a liberdade (liberdade pra quê, mesmo?...). A zona é o espaço destilando tempo, ou o tempo moldado em espaço. A zona é o movimento ainda em operação, é o corpo (indivíduo ou grupo, tanto faz) em atuação e contato com outros corpos - corpos e sujeitos vivos, não suas contrapartes de palha, como diria Bruno Latour -, é o conceito que não pretende representar, definir ou controlar, mas afirmar, conectar e libertar os povos aprisionados nos espaços desinvestidos. Quais as minorias que ainda fervilham nos espaços totalitários que habitamos (e que nos habitam) e como podem ser apropriados para a promoção das condições de felicidade de um coletivo (cito Latour, mais uma vez)?

Pergunta sem resposta. Não por ser mal-colocada ou por exigir uma tecnologia intelectual para além das atuais. É que a solução, por fim, não é discursiva, não encadeia proposições. Parodiando Kant, poderia dizer que a organização dos territórios, sem a experiência das proposições concretas com as quais pretendemos nos conectar para agir, é vazia (o Psicólogo, o Sociólogo, o Médico, o Pedagogo... áreas, campos, espaços...); mas a vivência bruta e imediata do cotidiano, sem a articulação necessária para atuar e construir, é cega. O espaço esvaziado, o monumento largado em plena praça, e o tempo cego sem saber se guiar neste coliseu dos discursos. O espaço-tempo é a zona, a barraca armada, a feira a se fazer no dito (e não só no escrito). A zona (Kairós) é ação, é batalha, que periga cair tanto nos aparelhos totalitários do espaço (Chronos, encarnado também em micro-aparelhos e pequenos fascismos a nos engolfar, nos legando novos totens e nos condenando a imperceptíveis tabus, segundo a segundo) quanto nos desmantelos informais do tempo (Aeon, a Grande Marcha descrita por Kundera). É a vida...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Pelo quê você luta?

Trabalho é amor feito visível. E o amor, Khalil? É a vida do morimbundo (zumbi ou fantasma?...), o gozo do santo (cínico ou estóico?...), o riso do palhaço (Chaplin ou Keaton?...), a lágrima da atriz (primeiro plano ou bastidores?...), o calor gelado do avermelhadamente lindo céu azul (aurora ou crepúsculo?...), a questão colocada e resolvida (filósofo ou sofista?...). Indecidibilidade. Trabalho é amor, e amor é luta, e luta constante, integral, cósmica, de corpo, alma, espírito e verdade. E essa verdade, precisa de estudo? Estudo é luta, também, assim como o trabalho e o amor. Luta-se contra o sono, contra a vontade doutras coisas (vontade minha ou das coisas?...), contra uma avaliação, contra o texto, contra a equação e contra o problema. E essa luta, tem o seu porquê? Qual a batalha maior na qual está inserida? Em qual guerra, nativista, colonial, mundial, cósmica, está metida? O esforço tem algum sentido?  Máquina, o ser (humano?...) é. Máquina que deseja. Tédio: a histeria contemporânea. Não se luta "contra", oras. Afinal, quem é o inimigo? Luta-se contra si!? E o que se é? Se lutar é ir de encontro, o que se constrói com o sangue derramado (alheio ou próprio?...)? Luta contra o luto, luta por um "a favor de". Planta-se para comer, caça-se para comer, colhe-se para comer. O trabalho e a luta constróem comilanças. O amor é um banquete (Platão ou Xenofonte?...). Quando se deu a alienação, a inversão, a reversal? O filósofo luta "contra" o sono, mas "pelo quê"? "A favor de quê" se luta (agora, sempre agora!..)? Uma graduação, uma carreira, um "mundo melhor"? Indecidibilidade, mais uma vez. Guarda a pena e vai descansar. Ou lutar "contra" essa indefinição até que um "a favor" apareça...



domingo, 2 de outubro de 2011

Darstellungssystem

"Se a teoria da arte se contentasse com isso, se se considerasse satisfeita com a recompensa proporcionada por uma busca sincera, nada teríamos contra ela. Porém, quer ser mais. Não almeja ser, tão-somente, uma busca para encontrar leis: afirma haver descoberto leis eternas. Observa um certo número de fenômenos, observa-os segundo alguns critérios gerais e deduz, disto, leis. Tal é correto pela simples razão de que, infelizmente, não parece ser possível de outra maneira. Mas, nesse ponto, começa o erro: chega à falsa conclusão de que essas leis, por corresponderem aparentemente aos fenômenos observados durante certos momentos, serão válidas também para todos os fenômenos que se produzirem no futuro. E eis aqui o mais funesto: acredita-se haver encontrado uma medida para o julgamento da obra artística que seja válida para as obras de arte futuras. E os teóricos, mesmo sendo constantemente desautorizados pela realidade, quando consideram antiartístico "o que não soa segundo as regras", ainda assim "não abandona a ilusão". Pois o que ocorreria se não possuíssem, ao menos, o monopólio da beleza, já que a arte não lhes pertence? Qual seria o resultado se, para todos e definitivamente, ficasse claro o que - mais uma vez - é aqui demonstrado? O que lhes significaria o fato de que, na realidade, a arte transmite-se e propaga-se através das obras artísticas e não por regras de beleza?"
SCHOENBERG, Arnold; Harmonia; Trad. Marden Maluf - São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 43.

sábado, 13 de agosto de 2011

Carta a um rato

Tenho as mesmas dores no fígado que tu, camarada. E, assim como tu, sou um sonhador. Desses que perdem dias, anos, vidas inteiras a planejar vinganças para aqueles que, num tempo perdido, neles se esbarraram. Gastamos litros de saliva para condenar os homens brutos - sim, os homens brutos! - impulsivos e desapegados à prudência. Homens de ação, como tu o chamas! Mas não são eles os abençoados pela natureza? Não são esses homens pouco sensatos os filhos da verdade? Se lhes ofendem, já se encontram dispostos para o chiste, o soco, a faca, o sangue, a morte e a vida; nós, os de consciência refinada, nos pomos a pensar. Se lhes suscitam desejos na carne, já se encontram dispostos para o cortejo, a bebida, as risadelas, o beijo, o coito e o gozo; nós, os de consciência refinada, nos pomos a pensar. Se lhes... Creio que tu não precisas de mais imagens e exemplos. Tuas barbas não são maiores que as minhas à toa, fato. Mas veja só: a natureza e a verdade pariu esse homem desarrazoado. Eu e tu, do contrário, fomos concebidos numa biblioteca ou num laboratório ou sabe-se lá em qual lugar alheio ao império do real. Somos um império dentro do império. Olhamos para esse homem, esse búfalo ignorante, de cima, de lado, mas nunca de frente. Não sabemos lhe afrontar e, mesmo de cima (ou de lado), sempre lhe cedemos passagem. Somos ratos, eu e tu, e por isto nos damos tão bem. A ignorância, aí, é benção, amigo. Ignorar passados, presentes e futuros não é tarefa para nós, homens de memória e de decoro. Homens de gnose e de pensamento. Devemos desenvolver a ignorância? Não, não é isso que lhe recomendo, meu velho. Temos a mania de tagarelar (ainda que seja só para nossa própria consciência) astuta e maliciosamente de tudo, de todos e além. Mas nossa maldade não ultrapassa as fronteiras da lalação. Arquitetamos nossas torturas, mas não sabemos erigí-las. Somos arquitetos, e não pedreiros. Pena. Nem a estupidez conseguimos realizar. Somos potentes, mas não reais. Cheios das virtudes, mas sem boas ações. Não temos a maldade da vida: não comemos a carne, não comemos a folha. Viveríamos de luz, se pudéssemos. Mas a vida nos devora a todos, vorazmente, insaciávelmente. A vida nos come, e nos come por detrás, a mim e a tu, também. Desconhecemos a força da ignorância e a alegria da maldade. Somos bons e, por isso, somos feios. É a feiúra do estupor, da flor que brochou, do coito que se interrompeu. Que nos resta a fazer neste mundo, já que nada sabemos fazer? E, para piorar, ainda somos feios. Só sabemos falar, eu e tu. Água numa peneira, como tu mesmo o dizes. Devemos nos calar? Sim. Sim!? Não, claro que não! Devemos é falar, mais e mais. Se é impossível (ou pior: sé é inútil!) falar das coisas - já que a coisa nos escapa a nós, homens da inteligência - falemos, ao menos, sobre essa impossibilidade de se falar das coisas. Se não sabemos usar as espátulas, preparar os rebocos e equilibrar os tijolos, que as palavras nos sirvam de ferramentas, então. Eu escrevo para tu, agora. E escrever não é apontar um estado de coisas, mas sim montar uma armadilha para o leitor, um alçapão de enunciados, como um marujo que não leva o tesouro consigo, mas rabisca e marca xis num papelão velho a habitar garrafas. Tudo isso para que seus convivas refaçam sua caminhada trôpega e povoem a ilha deserta na qual habita solitário. O ignorante não quer saber de nós, porém. Sejamos malvados, pois, e montemos nossas armadilhas para retirar-lhes o que nos foi negado: uma vida de plácida e translúcida ignorância. Se eu desejo ser um ignorante? Não. Só quero receber as visitas do continente, em minha ilha. E sorrir. E não mais ser feio. Se a ignorância do homem-búfalo não é negativa, não é ausência, a malvadez do homem-rato também não o é. É a nossa virtude maior, a armadilha, o veneno e a furtividade. Não empunhamos espadas, e sim punhais. Somos ratos e gostamos de sombra e água fresca, como todo bom punguista. Uma ode e uma recomendação à maldade, essa minha carta, caro camarada. À maldade, sim, e não à ruindade. Esta é coisa de búfalo medíocre. Nossa ontologia roedora não nos dá coragem, certezas e caminhos. O rato é um jogador, todo bom jogador é um ratinho, e um ratinho malvado. A melhor das coisas que o rato pode aprender do seu irmão búfalo: a aposta. É substituir a sua covardia exangue não por uma coragem estúpida e ignóbil, mas pelo jogo. Malvadear não é desconstruir e prejudicar. Malvadear é armar alçapões, inúmeros alçapões, que nos suspendam da solidez e nos tornem menos ignorantes; e, ao mesmo tempo, não nos façam perder contato com a crueza do mundo que nos come por detrás. Bebe, companheiro, bebe. E piora tuas dores do fígado. Aposta. Perde tudo. Bebe mais para não esquecer de tudo isso, das tuas dores, de tuas apostas, de tua vilania. És um vilão, mas não és gente ruim, amigo. Nem eu o sou. Mas somos ratos, e ratos malvados, e ratos que apostam, e ratos que bebem. Nunca seremos búfalos: a graça não nos brindou com o dom da ignorância. Mas não tenhais inveja. Deixe-a para os simplesmente ruins. Vamos beber - vamos! - e produzir nossas próprias doenças, tirar delas nossas forças e fazer ruir as tábuas da verdade. Um brinde. Um abraço. E adeus...

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Silence

Uma vez em Amsterdã um músico holandês me disse: "Deve ser muito difícil pra você escrever música na América estando tão longe dos centros da tradição". Fui obrigado a lhe responder: "Deve ser muito difícil pra você escrever música na Europa estando tão perto dos centros da tradição".
John Cage

terça-feira, 26 de julho de 2011

Événementialisation!

A vida é um jogo. Uma coletânea de jogos, na verdade. Infinitos jogos, corrigindo, todos imbrincadinhos, se anulando, se fundindo, se clivando. E um jogo é um conjunto de eventos. E um evento, tomado isoladamente, é um conjunto de outros tantos jogos que, por sua vez, são estruturados, cada um, pela articulação de vários outros eventos. Parece que estou a cometer o erro a que os lógicos chamam "Círculo", deveras. Mas não. Esse círculo é virtuoso, produtor de diferença, alegria, movimento, potência e vida.
Falo de Deleuze, de Spinoza, de Bergson, de Nietzsche e de todos eles, invisíveis, na última frase do parágrafo anterior. Cada um desses filósofos, mesmo, é um jogo fechadinho, com suas regras, seu tabuleiro, seus peões, suas estratégias. Eu sou um jogo, igualmente. Sou diferença, alegria, movimento e potência. Você, idem. Mas também somos - eu, você e eles - repetição, tristeza, imobilidade e ressentimento. Somos sacrifício ético e obediência moral, criatividade e tecnicismo, espiritualidade e ritualismo, a gargalhada e a cara-de-paisagem.
Jogos e eventos parecem manter entre si uma reciprocidade atômica, na qual um é parte componente do outro, e esse outro é parte componente do primeiro. Mas não é bem isso que eu quis dizer. Jogos e eventos falam muito mais de um ponto de vista - ou de uma postura cognitiva - que de uma relação entre o todo e as suas partes. Dizer de algo como jogo ou evento é dizer de um posicionamento nosso frente a esse algo. Peguemos um jogo de cartas simples - o Solitaire, vulgo Paciência - para explicar o que digo.

Colocamos sete pilhas de um baralho enfileiradas em ordem crescente de quantidade (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, totalizando 28 cartas da esquerda para a direita), sendo que as cartas da superfície de cada monte tem a sua face voltada para cima, ao contrário das cartas embaixo dela. As 24 cartas restantes são colocadas num bolo, à parte desses sete montes. O objetivo do jogo é colocar todas as 52 cartas em quatro montes - um para cada naipe - em ordem crescente de valor e numeração (Ás, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, Valete, Rainha, Rei), manuseando as cartas das sete colunas e do bolo, que serve de "fuço". As cartas podem ser agrupadas numa destas sete colunas em ordem decrescente de valor (Rei, Rainha, Valete, 10, 9...) mas os naipes devem ser de cores opostas para que a truncagem se dê. Enfim, é um jogo cheio das minúcias, das regras implícitas e das estratégias e, mesmo que não saibamos expô-las todas, sabemos jogá-lo quando abrimos o game disponível em toda e qualquer versão do Windows. Mesmo sem saber o jogo, entramos no jogo e nos divertimos! Só este fato já nos fala muito, mas vou guardar meus comentários nessa direção, por enquanto, e continuar com o baralho.
Digamos que eu faça uma jogada específica enquanto me divirto no Paciência; por exemplo, que eu encontre uma Rainha de Espadas, negra, no fuço e a coloque por sobre um Rei de Ouros, vermelho, que está numa das 7 colunas. O movimento é esse: pego uma Rainha de Espadas e a ponho sobre um Rei de Ouros. Este movimento simples é um evento e o que define todo evento é, pois, a sua simplicidade, no sentido cartesiano duma realidade subsistente, que baste a si mesma. O mesmo evento pode fazer parte de um outro jogo, atentem. Caso eu estivesse jogando Black Lady - a versão tradicional do jogo de Copas - com um amigo meu que pôs o Rei na mesa (e eu não tinha nenhuma carta de Ouros, em mãos), este mesmíssimo movimento seria uma jogada extremamente desvantajosa para ele, já que num único movimento eu o faria ganhar 13 pontos (e, no jogo de Copas, quanto menos pontos você fizer, melhor)! Caso, ao invés de Paciência ou de Copas, estivéssemos jogando Burro, eu não poderia fazer essa jogada; este evento é uma realidade impossível dentro do universo do Burro, mas é real (ainda que não se atualize, ainda que continue sendo apenas uma realidade virtual), provável e possível dentro dos universos de Paciência e Copas.
Não é à toa que o baralho use como ilustração as figuras de um reino. Uma das versões sobre o nascimento do baralho, como o conhecemos hoje, fala de um pintor francês - Jacquemin Gringonneur - que inventou as figuras e os naipes das cartas sob encomenda do rei Carlos VI, o louco. Cada um dos naipes representa uma posição social (copas para o clero, espadas para a nobreza, paus para os plebeus e ouro para a burguesia) e as imagens, de um naipe a outro, representam soldados e peões (grupos de 2 guerreiros, de 5 guerreiros, de 10 guerreiros, o "Ás" do exército...), reis (K, de King), rainhas (Q, de Queen), valetes e cavaleiros (J, de Jack) e, mesmo, a curiosa figura do bufão, do bobo-da-corte ou, se preferirem, do Coringa ("why so serious?"), que não tem razão alguma no jogo (e, por isso, é a mais perigosa de todas). Estamos em pleno século XV, aí: como lidar com os constantes levantes dos camponeses, a quem a nobreza faz morrer e deixa que vivam? E a igreja em decadência, como funciona? O absolutismo monárquico, ganha o quê com isso tudo? E que nova classe de mercadores é essa, a fazer fortuna com viagens e comércios!? Velásquez faz o rei e sua dama - refletidos no espelho ao fundo - se confundirem com o observador anônimo que, no momento, fita a tela. O olho do qualquer e a pompa da realeza se confundem como sujeitos teoréticos, em diversos jogos, mas jogos que não operam sozinhos: pintor-pintado, olho-quadro, sujeito-objeto, detalhe-foco.
Jogos, jogos, jogos. Cada um desses problemas são jogos que demandam respostas, movimentos, eventos, posturas, etiquetas para que continuemos a viver (com diferença, alegria, movimento e potência, de preferência). Jantar é um evento. Jantar com o bispo para que ele abençoe o condado antes da colheita é um jogo. Jantar com o duque e pedir a mão de sua filha para agregar territórios de nobreza é outro jogo. Jantar com a esposa, os cinco filhos, o cachorro e os dois cavalos, ao calor duma fogueira no quintal é um terceiro jogo. Um quarto jogo seria jantar numa taverna, quando se é um viajante e não se conhece ninguém na região. Ficar sem jantar por não conseguir esmolas o suficiente, naquele dia, é mais um jogo. Ficar sem jantar por não conseguir realizar penitências o suficiente, naquele dia, é um sexto jogo. Cada um desses jogos possui um regulamento próprio (ainda que não saibamos ou possamos listar regra por regra), personagens próprios, tabuleiros próprios, estratagemas próprios e - como não haveria de ser!? - modos próprios para a trapaça.

Falei que o lance da Rainha de Espadas por sobre o Rei de Ouros era uma jogada impossível no mundo de Burro. Proposição falsa, a minha. A trapaça é, justamente, isto daí. É o jogo que, ao impor seus movimentos e entraves, seus podes e não-podes, coloca também buracos nos quais a ação demanda uma reação imprevista. A trapaça é a invenção no sistema fechado. Quem, ao jogar Banco Imobiliário, nunca "fuçou" o caixa indevidamente, quando todos os outros banqueiros e especuladores de imóveis estavam distraídos? Quem, ao perceber uma fila grande demais, nunca se pôs a procurar "aquele" amigo para, com isto, ganhar dois ou dez minutos do dia?

O jogo de Copas, o Burro, um jantar, o Banco Imobiliário, uma fila, são todos políticas de guerra. Uma guerra é um evento (o choque da espada na armadura do inimigo) e um jogo (anexação do território sarraceno às propriedades papais). O evento de golpear o inimigo faz parte de diversos jogos: a guerra santa dos templários contra os infiéis do oriente; o treinamento marcial para aprender a manusear a montante enquanto se segura um broquel; a garantia de ter a alma salva, mesmo que o corpo se perca no calor das lutas. Vários jogos, operando todos num mesmo e único instante, num mesmo e único evento. O subir e descer da espada é a atualização e o movimento de diversos jogos imbrincados a produzir soldados santos, lâminas e cotas mais leves para viagem, reservas no paraíso para os que perderam a vida na santidade e coisa e tal. Os jogos produzem eventos (verbos, o que ocorre, o que "tá pegando"), que são a manifestação dos jogos. Neste lá e cá dos jogos e dos eventos é que nascem as coisas (substantivos, indivíduos, sujeitos, objetos) e suas qualidades (adjetivos, o bom golpe de espada, o homem santo, o muçulmano feio, o mangual abençoado).
Entremos na fila, mais uma vez. Estou com pressa e utilizo do meu amigo para, assim, passar à frente de umas 20 pessoas. "Mas isto é um desrespeito a essas 20 pessoas", diria você. Discordo. Mas discordo, apenas, quanto aos números contidos na premissa. Não são 20 os desrespeitados mas, no mínimo, 21. Vinte pessoas e uma fila. Ou, ainda, poderia substituir todos esses desrespeitados por uma fila que não foi levada a sério. "Mas você está desrespeitando a fila" seria uma proposição mais adequada. Não são os sujeitos humanos, simplesmente, que são os afetados, mas é ela, a fila, que emperrou, deu bug, foi ela que não operou como deveria, por um motivo ou por outro. A fila é uma tecnologia, é um armistício, uma política de guerra construída para que possamos viver com diferença, alegria, movimento e potência nesta vida cheia de encontros. A fila, muito provavelmente, se inventou quando tínhamos muitas pessoas desejando uma mesma coisa ao mesmo tempo (mas um objeto que está disponível a todos eles; o único porém é quem irá ter um primeiro, um segundo e um terceiro acesso a eles). Se fossem só um, dois, três os desejosos, o problema poderia ser resolvido ali, cara-a-cara, no informal. Com 10, 20, 50, a situação muda. Cria-se um critério, então, acima de todos nós. "Quem chega primeiro, é atendido primeiro; quem chega em segundo, é atendido depois; quem chega em terceiro..." E a guerra assim se vai, a guerra se apazigua, até que um novo encontro coloque um novo problema. "E aquele senhorzinho de 92 anos, ali? Vai ter de esperar na fila como todos nós!?" Tá, tudo bem, deixamos esse senhorzinho passar à nossa frente, mas só ele. "E as mulheres grávidas? E os pais com crianças de colo? E os obesos? E..." E assim a vida se vai, em nosso ofício infinito e eterno de criar e recriar as filas. Fila versão 1.0, 2.0, 2.3... Versão beta, pois. Nenhum senhor saudável - ainda que tenha ultrapassado a marca dos 65 anos - deixará de ceder seu lugar a um jovem que esteja a passar mal, no ônibus, com o argumento de não querer desrespeitar o belo e sublime princípio da fila. Vejam só. Nossa vida consiste num trabalho de engenharia, de construir aparatos tecnológicos que bem representem, quase matemáticamente (aliás, retirem o "quase"), nossas posturas que, num momento em específico, foram adequadas ao encaminhamento da vida e da paz. Homo faber. Mas a paz, aqui, não é entendida como ausência de guerra, como puro armistício, mas como invenção, como principia individuationis, nos dizeres do Jung alquimista.
Todos os nossos processos legais são jogos, jogos iguaizinhos aos da fila. Todos os nossos sistemas teóricos são jogos. A arte, então! É jogo que não acaba mais. As religiões, mesmo, são conjuntos de jogos a atualizarem eventos. O Padre levanta o pão ázimo, já bento, e diz: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo." O que este momento tem de ver com o tal Cristo, reunido secretamente com seus 12 amigos e à vespera de sua já sabida morte? O Padre opera jogos que atualizam eventos. Um homem benzendo o pão e tornando-se um com os seus, durante um banquete (tradição muito mais grega que judaica...). Qual a ligação entre os dois? Há uma ligação entre o evento original e o seu jogo correlato? Este jogo, hoje, ainda tem a sua razão de ser para os homens de boa vontade!?
Não há uma resposta, visto que não há uma maneira correta de se jogar os jogos da vida. De Paciência à Filosofia Moderna, de Banco Imobiliário à Teoria da Gravitação Universal, da fila ao Código de Direito Canônico. Daí o coringa. Daí o café-com-leite! É um modo do próprio jogo dizer para não levá-lo, assim, tão a sério. De que adianta jogar corretamente se, com isso, deixamos os jogadores infelizes? De que adianta seguir a risca todo o regulamento do Banco Imobiliário se o seu irmão menor não está acompanhando vocês? De que nos adianta tomarmos todos os remédios e pípulas que embotam nossos delírios se estabelecemos uma relação de tristeza com eles? E de que adianta tocar o instrumento perfeitamente, respeitar os comandamentos, fazer uma resenha exemplar do filósofo e, enfim, ser um modelo de vida, evento, jogo e procedimento se, com isso, não nos tornamos felizes, não trazemos felicidade para os outros nem tornamos a própria vida, ela mesma, mais alegre e jovial?
O "peso leve" e o "jugo suave" do messias. Não adianta a virtude individual (virtu, força) se não atingimos, com isto, o universo inteiro (cosmos, beleza). O cristo, o buda, o santo, o gênio, o mahatma, não são sujeitos esforçados, mas eventos est-éticos. O jogo é a atualização dum evento. E evento, aqui, já deixou de ser um simples enxerto da totalidade. O movimento da espada, o jantar, o movimento da carta não são partes de um todo, não são pedacinhos de Lego que usamos para montar nossas tecnologias frágeis. O movimento, ele mesmo, é a expressão da mudança de um todo. O evento deixa de ser uma coisa: é, agora, evento-ação, é eventualização! Uma espada em movimento é uma guerra em movimento. Uma colherada suscinta na sopa é uma boa maneira para conquistar o sogro. A Rainha de Copas por sobre o Rei de Ouros é uma noite de bebedeira, música e muita risada entre dois ou três amigos chegados. São todos jogos. E jogos que permitem - que incentivam - a trapaça, a invenção de movimentos fora dos jogos jogados (o que pode suscitar, mesmo, a montagem de novos jogos), quando estes não mais nos colocam no movimento da vida. Não digo para jogarmos todos os jogos fora e nos entregarmos a um suposto espontaneísmo humanista. Que nada! Digo do contrário!
Aprendamos todos os jogos que conseguirmos - das cartas ao Código Penal, da Psicologia Experimental à Análise Institucional, do Cristianismo ao futebol, passando por física dos quanta, filosofia da mente, robótica, pintura renascentista, música orquestrada do século XX - mas não para sermos especialistas do saber. Isto seria jogar o jogo e ser engolfado pelos algorítmos do mesmo sem saber aonde iremos chegar com nosso esforço todo (igual ao menino que, mesmo sem saber como montar a mesa para o Paciência, dá um clique duplo no programa e se põe a mexer as cartas, pra cá e pra lá). Estudemos os jogos, construamos os jogos, joguemos os jogos. Mas saibamos trapacear. Não quando for necessário, já que necessidade é a regra, mas quando a vida demandar, pedir, nos convidar a embelezá-la, a torná-la cada vez mais diferente, alegre, movimentada e potente. E quando saberemos o momento certo? Nunca. Quem sabe é quem tem o poder, quem conhece o manual de regras que veio junto do tabuleiro, e o momento - a eventualização - não consta na programação. Aposta-se. Um jogo de apostas, é essa vida. Vamos nos divertir, então...

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Quer um queijo!?

Nada a declarar é um curta do Gustavo Acioli. Foi-me impossível passar por ele sem vestir a carapuça uma ou mais vezes. Faz pensar. Ou faz com que a gente deixe de pensar em nome de outros que não nós. Ou - mais grave - denuncia a nossa condição intelectual de ter de dizer algo quando, sinceramente, não temos muita coisa interessante pra dizer. Enfim, vejam aí...

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Marvelous!

Depois duma sequência de filmes pedantes - nacionais e do estrangeiro, clássicos e desconhecidos, do horror ao humor - vou ao cinema para assistir a nova película da Marvel Studios: Thor. O primeiro Thor, do roteirista Larry Lieber, era "apenas" um humano com poderes semelhantes ao deus do trovão; na segunda versão, do legendário Stan Lee (que faz uma ponta em todos os filmes da Marvel, detalhe), Thor era o mimado e arrogante filho de Odin que, ao violar um tratado de paz entre os asgardianos e os gigantes de gelo, é enviado pelo seu pai à Terra para aprender o valor da humildade ("certo..."), tendo suas lembranças apagadas e encarnando no corpo humano de Donald Blake, um talentoso médico manco (Dr. House!?). A premissa do filme se aproxima mais da segunda versão, a do Stan Lee, mas sem o Donald Blake (ou quase sem). Enfim, não é do filme que vim aqui, falar. Mas, enquanto assistia o filme, lembrava de comentários antigos dum sujeito, amigo meu, sobre a salada que é o universo da Marvel.
A primeira formação d´Os Vingadores, por exemplo: Thor (um deus mimado, expulso do panteão asgardiano para a Terra dos homens pra aprender a ser homem de verdade), Homem de Ferro (Tony Stark, um bilionário playboy que, investindo dinheiro e talento para a construção de armamentos, acabou ligado a uma armadura de combate que o mantém vivo, devido a seu ausente coração perdido num acidente), Gavião Arqueiro (Clinton Barton, um excelente artista marcial, de mira fabulosa e exímias habilidades acrobáticas), Wolverine (Logan, - ou James Howlett, para os que leram "A Origem" - um mutante com regeneração celular, garras retráteis e sentidos aguçados que participou, como cobaia, do projeto governamental Arma X), Homem-Aranha (Peter Parker, um tímido porém genial estudante nova-iorquino que, após ser picado por uma aranha radioativa, adquire um físico sobre-humano, aderência e um sensor de perigo que beira à clarividência), Hulk (Bruce Banner, um cientista que - atingido por raios gama enquanto salvava uma criança durante um teste militar duma bomba que ele mesmo desenvolveu - passa a se transformar num gigante verde sempre que se ira), Capitão América (o líder Steve Rogers, um patriota magricela que teve seu alistamento recusado nas fronteiras e que, para contribuir com a vitória da sua nação, aceita participar como cobaia de um ainda não testado experimento para a cria do chamado Supersoldado), Vespa (Oi!?) e o Homem-Formiga (Oi!? [2]). Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove.
Olho para o outro lado da comicbook store e vejo os quadrinhos da DC e a sua igualmente profusa liga. Os integrantes originais da Justice League: Superman (o repórter Clark Kent - ou Kal-El, o último filho de Krypton - que, com habilidades inumeráveis e inumanas, está sempre lá para salvar o dia), Batman (Bruce Wayne, um bilionário que, ao ver o assassínio de seus pais quando ainda era um pivete, decide investir todo o seu intelecto, aptidão física, tecnologia e - claro! - dinheiro na batalha contra o crime), Aquaman (Arthur Curry, o Rei dos Mares, filho de um faroleiro e de uma exilada de Atlântida, pode se comunicar telepaticamente com seres aquáticos, regenerar tecidos quando em contato com a água e capaz de força e agilidade descomunais em decorrência das pressões subaquáticas que costuma enfrentar), Mulher Maravilha (Diana, princesa das amazonas, inicialmente uma estátua esculpida pela própria rainha Hipólita de Temiscira, e animada pelos deuses; é forte como Hércules, sábia como Atena, bela como Afrodite e ligeira como Hermes), o segundo Lanterna Verde (Hal Jordan, piloto de testes da Força Aérea estadunidense, escolhido pelo anel de Abin Sur, um Lanterna Verde que morreu na Terra), Ajax (J'onn J'onzz, o caçador de Marte, sobrevivente da Grande Peste devido a uma máquina de transporte construída por um cientista humano) e o segundo Flash (Barry Allen, cientista policial - à la CSI - que recebeu um banho de elementos químicos ao mesmo tempo em que era atingido por um raio [!]).
Pois bem. Expressionista algum poderia compor sinfonias mais atonais que as desses super-amigos. Harmonia impossível, esta. Como o Thor suporta o mauricinho do Homem de Ferro? Como o Batman suporta o excesso de cores, o eterno sorrisinho e o penteado sempre impecável do Superman? Como o Wolverine suporta os moralismos do Capitão América? Como o apressadinho do Flash suporta a paciência extra-terrena de Ajax? Como o Hulk suporta as eternas piadas do Homem-Aranha? Como a Mulher Maravilha suporta todos os homens da liga?
O Homem-Aranha escala os prédios de Nova York, cidade de movimentos, luzes e arranha-céus; tivesse nascido em Wisconsin não teria onde lançar suas teias e praticar suas acrobacias. Bruce Wayne não teria se tornado o cavaleiro das trevas se a cidade de Gothan não fosse tão obscura e tenebrosa; caso fosse um órfão na cidade de Las Vegas, seu destino seria totalmente outro. Não é à toa que Kal-El deixa de ser o fazendeiro Kent e passa a ser um super-homem quando sai dos milharais de Smallville e fixa morada na futurista Metrópolis. Cada herói não é um sujeito individual, mas é o ponto de condensação dum mundo inteiro, e só existe pois existe, antes, este mundo que lhe dá suporte. Não é um herói que suporta o outro. Mas é o mundo de cada um, enquanto uma tendência (Nova York é altura, velocidade e extase; Gothan City é pobreza, decadência e corrupção; Metrópolis é a super-população, a super-qualidade-de-vida, a super-cidade), que suporta seus próprios personagens. E são esses mundos que, por vezes, entram em crise e colidem com outros universos, abrindo a porta para a diferença.
E quando falo diferença não falo do que distingue uma identidade de outra, mas da diferença interna, da diferença da coisa consigo mesma. Um prazer é distinto dum sofrimento, mas dentro do mundo dos prazeres posso falar em comer chocolate, escutar Beethoven, fazer sexo, ler Dostoiévski, dormir e tantas outras atividades que em nada se assemelham, todas chamadas de "prazeres" por um simples movimento intelectual e utilitário da linguagem para com a vida. Uma mesa é distinta duma cadeira, mas dentro do paradigma "cadeira" cabem a cadeira de balanço que me embalava na infância, as duras cadeiras de madeira da universidade em que estudo, a velha cadeira estofada na qual estou sentado no momento etc. Dentro de uma categoria aparentemente homogênea estão inseridas realidades tão distintas entre si quanto coisas de categorias diferentes. Busquemos a diferença nela mesma, pois!
De início, podemos espartilhar as categorias em pacotes cada vez menores em busca desta diferença de natureza perdida. Prazeres, artes, música, música erudita, música erudita romântica, Beethoven, as obras para piano de Beethoven, as sonatas para piano de Beethoven, a sonata nº 14, o terceiro movimento - Presto Agitato - da sonata nº 14, a coda estendida do terceiro movimento da sonata, os acordes quebrados ao final da coda. Desisto. Esta análise poderia durar eternamente, durar enquanto durasse a obsessão do cientista deveras maluco que se lançou nesta empreitada. Minha loucura, porém, não caminha pela neurose e desconfio, levemente, que a diferença não está aí. Multiplicamos as identidades, afinal. Cadê a diferença mesma, a diferença da coisa, aquilo que pode definí-la sem que precisemos recorrer a esta dissecação intelectual!? A coisa parece sempre escapar, toda faceira, das minhas representações. A diferença, então, está aí: é o movimento, o movimento do conceito dentro de seu campo criador, do objeto dentro de seu laboratório, do herói, do capanga, da mocinha e do vilão dentro de seus próprios cenários e núcleos.
Qual a liga, a cola, o cimento que une o Batman e o Superman? Justiça!? Sim, também, mas não só. É a justiça (no sentido de justeza) que coloca uma coisa nesta categoria e não naquela. Batman é herói, Coringa é vilão, mas ambos são loucos a desfilarem suas fantasias e delírios pela noite gótica. O primeiro é "do bem" por estar articulado com o comissário de polícia, a imprensa local e as empresas Wayne. O outro é malvado por queimar dinheiro, usar maquillage em demasia e rir antes do término do concerto. Batman é herói, repito. Superman, idem. Dois heróis. Que é um herói, pois? Quem sabe!? Herói é um conceito vazio e negativo, ao que parece, visto não precisar o nosso objeto nele mesmo. Define-o por oposição a outras identidades (herói é o que não é vilão, vilão é o que não é só um capanga, capanga é o que rapta a mocinha, a mocinha é apaixonada pelo herói, que é o que não é vilão...). Digo o mesmo para o prazer. E para as cadeiras. A precisão destes conceitos reside, tão somente, em sua utilidade prosaica. Mas nenhuma poesia rola nas terras pedregosas do intelecto. A amizade faz-se necessária, agora, e já pode entrar no quadro como a segunda liga. Batman não é um herói, e sim toda uma cidade decadente e melancólica prestes a ruir - autofagicamente - devido a sua corrupção. Superman não é um herói, mas é um planeta extinto, uma cidadezinha do interior e uma megalópole mundial. Acompanhar o movimento dos personagens dentro de seus cenários é que é buscar a diferença deles em relação com as outras coisas! Amizade. Não (somente) a amizade entre um e outro herói, um e outro sujeito, mas a amizade entre os sistemas e planos que tornaram a existência de um e outro deles possível.
Vamos inventar um roteiro. Quando Lex, através da Luthorcorp, tenta uma associação com as empresas Wayne que, recentemente, começaram a investir em fusão nuclear (planos de dominação mundial do careca?...) como fonte de energia barata para a população, o jornalista Clark Kent se vê na busca de documentações negociárias do bilionário Bruce, para acusar o príncipe de Gothan de corrupção e barrar uma transação econômico-política que julga nociva para todo o planeta. Pronto, esta é uma deixa para o encontro Batman/Superman. Caso o jornalista acione aparatos policiais para a empreitada, podem entrar em cena o legista Barry Allen ou o investigador John Jones. Flash e Ajax na parada. Como o enriquecimento do material radioativo está desequilibrando o bioma de todos os cinco oceanos (as fábricas estão espalhadas pelo globo, digamos), Aquaman surge para integrar a equipe. E assim ocorrem as ligas: com a amizade e a articulação de um herói com outro, mas uma amizade que revela uma amizade maior, ou melhor, uma amizade menor, molecular, quase invisível entre os seus sistemas. Gotham invade Metrópolis que polui os oceanos que desperta o interesse da imprensa que aciona instituições policiais. Polvo de mil tentáculos é o cosmos. Quando um cosmos, já bagunçado desse jeito, adentra noutro cosmo, a situação se adensa ainda mais: o Planeta Diário pede informações ao Clarim Diário sobre um laboratório enriquecedor de Urânio em Nova York. Lá vai Peter Parker atrás de fotos para o jornal e o Homem-Aranha atrás de uns capangas pra socar. Já Lex Luthor, além de tentar coligações com as misteriosas empresas Wayne, já está de olho na Stark Enterprise e suas armaduras de combate (o urânio de um, o material bélico do outro; deu certinho...). Não é um universo, nem muitos universos juntos, mas um multiverso, um mundo aberto e criativo! Mundos fractais!
David Hume diz que somos o que somos pela experiência. Estou com ele. Nada há na mente que não tenha passado, primeiro, pelas nossas impressões mais simples. Uma ideia abstrata e complexa, neste esquema, seria apenas um agregado e um remanejamento dessas percepções mais fortes e imediatas. Hume explica como podemos imaginar coisas que nunca passaram pela nossa experiência: se sou capaz de imaginar um pégaso, um cavalo alado, é porque eu já tive a impressão de um cavalo e de um par de asas, proveniente de algum outro animal. Pégaso = cavalo + par de asas. Um anjo, seguindo a esteira, seria um homem com o mesmo par de asas. E aqui me separo do Hume e retomo todo o bergsonismo destilado na postagem. Um anjo ou um pégaso não é a simples resultante dum processo de adição, mas é a condensação de todo um outro universo possível do qual tais entes provém. Pégaso é castelo da princesa, é reino encantado, é grupo de aventureiros, é magia, é panteão de deuses, é grifo, manticora, dragões. Anjo é céu, é inferno, é julgamento final, é mensageiro de Deus, é guardião da alma humana, é Miguel, Gabriel, Lúcifer. Sou pela experiência, mas não a minha. Sou pela experiência do próprio mundo, que tende, evolui e dura ele mesmo.
Qual é o lance: é transformar objetos em problemas, resultados em processos criadores, espaço em tempo, substâncias em acontecimentos, categorias em diferenças. A diferença interna de uma coisa não é uma categoria que a distingue de outra. Categorias são conceitos vazios, que representam o real negativamente, dizendo-lhes o que eles não são em decorrência de sua função utilitária. Batman é herói, assim como Superman, Wolverine e Hulk. Coringa é vilão, assim como Lex Luthor, Dentes-de-Sabre e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América. Mas Batman não é Superman. Nem o Coringa se assemelha ao Lex Luthor. Devemos talhar conceitos, isto sim, que respeitem a diferença interna da coisa, que revele a sua tendência evolutiva e fale de seus movimentos. Dizer do Batman é dizer das tecnologias políticas de Gotham City a fabricar mendigos famintos, latrocídas psicóticos, policiais corruptos e, mesmo, heróis como ele e outros: Robin, Asa Noturna, Canário Negro, Bat Girl, Comissário Gordon (é preciso ser herói, mesmo sem fantasia, pra assumir honestidade numa cidade como Gothan). Dizer do Batman é criticar, falar das condições de possibilidade de um Batman. Falar dos movimentos do mundo que tornaram um Batman possível. E, principalmente, falar das prováveis relações de amizade de um Batman/Gotham com outros heróis possíveis/mundos virtuais. Só assim para que haja alguma justiça, alguma filosofia justa e adequada a esse mundo. E a outros mundos, também...

terça-feira, 3 de maio de 2011

Lavoura Arcaica, Moderna, Contemporânea

Eu coloco uma questão. Lavoura Arcaica projeta um tal André (mas que poderia ser João, Pedro ou José) sufocado por um patriarcalismo universal e um maternalismo anestesiador. André sofre, se afeta, reage. Bergsonismo beirando a Nietzsche. Este último, mesmo, tornou-se carne na conversa-ação entre o pai e o filho, quando o pródigo à casa retorna. Filme apolítico e intimista, gritam alguns. Pergunto: onde reside o individualismo, aí? André é só André? André é um André? Ele é só? Ele é um?
É um filme que fala de afeto. Não o afeto do romântico, do mentalista e do cristão (quase a mesma coisa, os três), mas sim o plano-paisagem que vira primeiro plano. Só isso. Não o primeiro plano que parcializa, que recorta uma parte da totalidade e esquadrinha os seus interiores, à maneira dum cientista, mas o primeiro plano que transforma o próprio "objeto parcial" numa realidade independente. Primeiridade, diria o Peirce. Não é um filme que nos "fala" da alma do André, mas que nos coloca na dor do mesmo. O filme nos dói e nos pesa pois doído e pesado é o próprio afeto que arrebatou o André. O próprio afeto que o configurou e que se projeta em nós. Não a memória das coisas mas a memória nas coisas e as coisas se lançando em nós (nós-pronome-plural e nós-ponto-da-rede).
Não é um filme intimista, privado ou coisa semelhante. É apenas o afeto feito imagem. Não, não acho que o filme seja filosófico, no sentido (e apenas neste sentido) de que o mesmo discuta conceitos, apresente teoréticas ou suscite postulados. É um filme para ser discutido dentro do próprio filme, dentro da própria linguagem cinematográfica. Podemos falar de contextos históricos, referências bibliográficas, críticas à cultura e outras extrapolações, outros além-filme (extracampo?...), mas intenciono puxar - não aqui, não agora - uma discussão do filme pelos jogos de imagem que o mesmo constitui: excesso de primeiros planos "mal-decupados" (como os rostos cortados pelo enquadramento, causando um efeito de confusão semelhante ao falso raccord), o silêncio em momentos nos quais deveria haver ruído (a mãe acordando o filho, naquela dança das mãos por sob os lençois), câmeras sobre-humanas ou, mesmo, inumanas (André entrando na casa velha e a câmera o pegando de baixo do assoalho), a constituição de "espaços quaisquer" (transformação de detalhes duma cena na cena inteira; não como simples close, simples aproximação dum objeto parcial, mas a transformação desse detalhe - desse objeto - na cena inteira, tornando o fundo irrelevante e tecendo o objeto numa imagem-afecção deleuziana).
Quando falo duma análise das imagens ou dum estudo da montagem do filme, posso sugerir que o critério de julgamento para um filme ser bom ou ruim é a sua "técnica". Ou, mais ainda, que nada há para além dum filme que a sua técnica! Certo. Ou errado. Não é de técnica que falo, mas de linguagem, de linguagem cinematográfica, de classificação dos signos. Falo em "linguagem" não em seu sentido mais formalzão, saussureano (significante + significado = linguagem), mas numa alternativa para a separação do sujeito puro/significado (o "indivíduo" que assiste a película) com o objeto puro/significante (o "filme-em-si"). Linguagem semiótica, peirceana, é a que proponho.
Skinner diria (não com estes significantes...) que o ato de fala, de significação, de linguagem, é um comportamento, deveras, mas um comportamento atrelado a um circuito construído e mantido por toda uma coleção de elementos contingentes (não-necessários) a se articularem. A língua-que-fala só existe pois existe, aí, um ouvido no qual as palavras lançadas ao ar podem pousar e repousar. Uma fala é um mundo. Estudar o signo da linguagem, assim sendo, é estudar o estruturante que lhe dá condições para existir. Criticá-lo, virtualizá-lo, é mapear as suas condições de possibilidade, é re-configurar seu campo problemático. Isto se dá tanto na mais grosseira das partículas materiais quanto nas mais sublimes das artes. Agora, puxo o cinema.
Quando falo em ver o filme dentro do próprio filme, ou estudar cinema dentro do próprio cinema, não falo - tão somente, mas também - em técnica de enquadramento, em captura de movimento, em jogo de cor, em boas atuações (humanas e não-humanas), em equipamentos de gravação, em cenografia. Falo destas coisas, sim, mas não como "técnicas"; falo delas como "linguagens". De onde vieram? Pra onde querem ir? Por que assim o são? A quê servem? Tais perguntas substituem o "que é isto?" da filosofia, questão intelectual e moderna por excelência. Que é isto, o sujeito? Que é isto, o objeto?
Tratar o cinema pelo lado do sujeito (gênero dos filmes, reação da platéia, a moral da história, as inspirações pessoais) é resumir o cinema a simples produto, a simples coisa humana voltada para nosso consumo e posterior configuração identitária (filmes pra rir, filmes de terror, filmes pedantes franceses, filmes de ação explosiva...). Tratar o cinema pelo lado do objeto (técnicas de enquadramento e decupagem, escolas de montagem, tipos de roteirização, estúdios) é transformá-lo em laboratório, em uma espécime a ser dissecada e analisada por especialistas e sapientes do fazer cinematográfico, distantes da massa mortal. O estudo duma linguagem cinematográfica deve passar, pra mim, longe destes dois pólos, embora se utilize de aspectos dum e doutro, por vezes. Mas a idéia não é retratar nem os homens ("é um filme inspirador...") nem as coisas ("o filme possui travelings impecáveis..."), mas narrar o porquê de termos estes sujeitos e estes objetos e não outros, porque a platéia e a crítica especializada é assim e não assado, investindo numa produção que enriquece tanto a natureza do cinema quanto as subjetividades humanas.
No entanto, tratar das subjetividades humanas ou da natureza cinematográfica, antes desse trabalho "temporal", é danoso, insisto. Danoso no sentido de produzir indivíduos (sujeito) e especialistas (objeto) do e no cinema. Já lidar com o cinema enquanto um campo de signos, uma linguagem, uma duração e, só depois, retirar-lhe os sujeitos e seus objetos, é que enriquecerá a ambos. Retomando. O dano está na produção dum saber (todo coletivo produz um saber) que se quer desatrelado do mundo e das relações. Ele nasce de um coletivo, como todo saber, mas se arvora como a última bolacha do pacote, tentando dizer que é puro, coado, já que filtrou a humanidade das imundícies da natureza, e filtrou esta das vontades e ideias humanas.
Falar das paixões pelas quais um e outro da platéia foram arrebatados não é cinema, creio. Isso daí já é vida. É algo maior; não o infinitamente maior, mas o infinito mesmo. Um filme que arrebata alguém (muito melhor que um filme que arrebata a todos...) não é um bom filme, mas uma boa coisa. E esta discussão, ao que digo, já foge ao escopo duma discussão cinematográfica. É ética, é existencialismo, é política, é psicologia. Mas não é cinema (ao menos não por isto). Creio que falar do filme em termos de sujeito (as implicações da película em quem assiste) é ainda mais danoso que tratar das tecno-lógicas do objeto (fotografia, decupagem, montagem). Isso seria apegar-se a um (sujeito) ou outro (objeto) aspecto do cinema, dissecando-o. Falar do cinema - mas como signo ou linguagem! - é que é adentrar na própria lógica fundamentante do mesmo.
Mas repito, atento, deixo claro, digo logo. Não digo que devamos saber de todos os badulaques e penduricalhos usados na construção e gravação duma cena. Só disse que, muitas vezes, ao não fazer isto, estamos saindo do cinema. Entramos na ética, na política, na psicologia (sujeito/significado) ou na estética, no estilo, na técnica (objeto/significante). "Cinemar" seria falar dos signos e linguagens que produzem tanto esses sujeitos e sentidos quanto seus objetos e símbolos. Não prego um tecnicismo, mas apenas uma fuga do sujeito empírico. Um filme que me serve, ou que serve a um e a outro, ou que serve a todo mundo, não é um bom filme, mas - de novo! - uma boa coisa. É uma boa entidade, uma boa arma política, um bom recurso terapêutico, uma boa diversão. Mas o filme possui a sua própria linguagem, seu próprio plano de conversa, que pode passar tanto por movimentos de câmera quanto por risos, tanto por maquiagem quanto por lágrimas, tanto por figurino quanto por inspirações pessoais. O que quero dizer: falar de cinema não é falar nem de um nem de outro, mas do que dá sustança aos dois. É falar do tempo antes de trazer o movimento para a cena. Consciência cinematográfica contemporânea.
Imaginemos um saber cinematográfico arvorado na separação S-O. Temos o saber subjetivo de um filme, como o Lavoura Arcaica, por exemplo ("mudou minha vida", "me identifiquei", "é uma crítica à cultura") e o saber objetivo do mesmo ("é um filme com enquadramentos geométricos, à maneira da escola francesa..."). Essa separação S-O prejudica o coletivo porque se cria uma corja de intelectuais cineastas que dizem deter o saber sobre como fazer e falar sobre cinema, e um grupo de pessoas que, despotencializadas em sua produção cinematográfica, só podem se agrupar em coletivos identitários (curto drama, curto Tarantino, curto filmes franceses da década de 60, curto Chaplin) se quiserem viver o cinema! Elas não podem curtir o filme adequadamente ("vocês não entenderam o real significado das cenas...") nem fazerem seu próprio cinema, pensarem seu próprio cinema.
Lavoura Arcaica é um prato cheio para se discutir imagem (logo, para se discutir o mundo; as imagens do cinema revelando as imagens do mundo; crítica cinematográfica = ontologia): imagens de percepção, imagens de agonia, imagens de raciocínio, imagens de (re)ação, porém - mais especificamente - imagens de afeto. Não falo que o filme me tocou e me fez chorar e repensar meus conceitos e blá-blá-blá e coisa e tal. É um filme cult, intelectual, elitista? Talvez. Mas não desprezemos o cânone só pela sua sacralidade. Os santos - e não apenas os profanos - também merecem ser ouvidos, antes que os crucifiquemos...