quinta-feira, 17 de junho de 2010

As Coletividades Pensantes e o Fim da Metafísica

Uma substância unitária, racional e atenta para focar todas as dobras do mundo, que se apresentam como claras e distintas possibilidades de escolha a nossa livre faculdade do arbítrio. Essa é a alma caduca e nada humana que Descartes tanto trabalhou para lapidar, e que nós - pelas bandas de cá - já cansamos de malhar. Freud - outro que adoro mal falar - propõe um modelo do psiquísmo que até tem suas interessâncias. Uma delas é a diversidade de instâncias que compõem seu aparelho anímico, interagindo e negociando de maneira mais ou menos conflituosa. O que a psicanálise introduziu na vida emocional, a psicologia do contemporâneo o fez no plano do cognitivo. Coloquemos duas teses desta psicologia que fazem oposição à alma cartesiana: um, a multiplicidade da mente; dois, a limitação da consciência.
A unidade da alma é questão diretamente ligada à inconsciência das operações mentais. Se todas as funções psíquicas estivessem sob o jugo da consciência, suporíamos uma linguagem comum às diferentes partes da mente. Entretanto, se a vida psíquica situa-se quase inteiramente fora da zona da consciência, a tese da multiplicidade da mente passa a fazer mais sentido, visto que tais diferentes partes não partilham da mesma lógica de funcionamento.
Marvin Minsky, pesquisador de inteligência artificial da MIT, sugere a mente como o agrupamento de milhares de agentes em agências, que competem, cooperam e conversam entre si por recursos limitados, divergência de objetivos e situações afins. O psiquismo é pintado como uma sociedade cosmopolita, não um sistema coerente e harmônico reduzido a uma substância una. Muitos artistas - de Platão a Nietzsche, de Freud a Jung, de William James a James Hillmann, de Deleuze a Guattari - retratam, cada um com suas matizes, a mesma sociedade profusa que ferve por detrás do véu de cada pensamento frio. Piaget pode ter entendido a inteligência como um conjunto de habilidades lógico-matemáticas aplicáveis a todos os domínios do viver. Howard Gardner, por sua vez, espartilha o problema e sugere múltiplas inteligências para além da geometria: linguística, musical, espacial, corporal, inter e intrapessoal. Boa notícia descobrir que não somos ignorantes como um todo! Multiplicamos as formalidades, verdade, mas favorecemos pensar as pessoas como grupos, e o psíquico como uma sociedade da mente. Tratar a alma como substância individual seria como facultar julgamentos sobre um grupo sem uma boa distinção das partes que o compõem.
Um coração, um olho ou uma mão cumprem seu papel numa estrutura sistêmica. Assim sendo, Noam Chomsky proposiciona a existência de órgãos mentais. Argumenta: e por que o cérebro seria a única entidade indiferenciada do mundo biológico!? Este pontuamento anula uma teoria da aprendizagem que se proponha comum a todos os domínios do psíquico, já que cada órgão da mente possui seu próprio desenvolvimento histórico independente dos demais. Entrando na onda de Chomsky, Jerry Fodor fala de módulos cognitivos que funcionam fora da zona de controle da consciência. A faculdade linguística e os módulos perceptivos podem ser tomados como exemplo. Enquanto escrevo este texto na janela de edição de postagens do blogspot, passo meus olhos pelos parágrafos grifados num livro e escuto a sinfonia Eroica. Sou incapaz de passar os olhos pelo livro e ver uma simples sequência de impressões negras e rabiscadas. Também constato a minha impossibilidade de escutar uma simples sequência ruidosa a ser executada pelo Windows Media Player. Sou obrigado a, olhando para o livro, ler e perceber algumas sentenças chave do capítulo, como sociedade cosmopolita, modularidade mental ou ecologia cognitiva, assim como também sou obrigado a, apertando o ícone Play/Executar do meu reprodutor de mídia, escutar a terceira de Beethoven regida pelo perfeccionismo de Toscanini. Tais módulos escapam à consciência! São seus resultados que chegam até a zona de atenção mental, mas os processos operados não são nem um pouco transparentes no tocante a qualquer tentativa de controle dos mesmos.
E o que seria a consciência, para bem precisarmos nossa discussão? Sendo curto, mas grosso: é o agente responsável pela enunciação da memória de curto prazo. Nossa cognição processa inúmeras operações ao mesmo tempo, mas é difícil estar consciente a vários eventos ao mesmo tempo. Tais operações, por estarem fora do campo da atenção, são inconscientes. E, por escaparem da vontade, são automáticas; o que nada tem de ver com o determinismo típico de nossas inteligências eletrônicas. Determinismo e automatismo não são sinônimos. Os processos são classificados como autônomos, justamente, por serem independentes uns dos outros. Grande parte da mente é - neste e somente neste sentido - maquinal, visto que composta por inúmeradas partes e peças e pedaços. É este automatismo inconsciente que cria condições para a sobrevivência de nossas unidades biológicas.
Mecanismo, inconsciência, multiplicidade, exterioridade. Todos formam a base constitutiva da vida mental. Partindo daqui, não seria de todo estranho inferir a participação de mecanismos e processos não biológicos na formação do pensamento - dispositivos técnicos e instituições sociais, em exemplo - o que torna impossível fazer do pensamento a resultante duma substância única e transcendente. Uma ecologia cognitiva deve ocupar o lugar das antigas metafísicas! Subjetividade e objetividade não podem ser categorias puras e bem definidas pois, de um lado, temos inúmeros mecanismos e objetos operando na produção das subjetividades e, doutro, as objetividades constituídas pelo imaginário e pelo suor dos homens. O id fala, mas não a lingua de Freud ou de Lacan. Falamos, mas não cuspimos, tão somente, recalques, traumas e complexos porém multidões inteiras - de pessoas e de coisas - que falam em nós. Dando um passo com nossa outra perna, podemos fazer uma segunda inferência: não há mais estranheza nenhuma em pensar que um grupo ou uma instituição pensem, visto ser o pensamento a realização dum coletivo!
Pensar, numa frase, é um devir coletivo de homens e coisas. Assim como os aparatos cognitivos individuais, os dispositivos sociais também são encapsulados. Imaginemos uma empresa e alguns de seus setores. O pessoal do secretariado, o pessoal da contabilidade, o pessoal da comunicação. Os dois primeiros podem ser substituídos por, digamos, softwares computacionais, enquanto o último pode ser dispensado pelo uso de correios eletrônicos. Isto porque tais segmentos burocráticos intencionam - quase fenomenologicamente! - funcionar como máquinas. Tanto o cérebro quanto o socius são compostos por muitos e muitos módulos maquinais encapsulados.
A consciência gosta de se apresentar como o mais importante aspecto da inteligência, mas nem de longe representa a sua essência! Ela pode ser considerada, isto sim, uma interface entre o organismo e o que lhe é ambiente, interface enquanto manutenção do seu próprio funcionamento e do seu sistema cognitivo. Os processos conscientes - controlados - são menos céleres que suas contrapartes automáticas, mas compensam a falta de potência com flexibilidade. Esta flexibilidade sensível também está presente nos grupos. Não como consciência, claro, mas por meios outros que tomam a sua função; um debate visando chegar a uma deliberação pode ser tomado como exemplo. Na biologia do cérebro, a nível neuronal, a multiplicidade das entidades e seu funcionamento paralelo e inconsciente são traços constitutivos da arquitetura cognitiva. A consciência, ao bradar "eu penso, eu existo, eu sou", reclama para si uma importância que pertence a um agenciamento social, complexo, cósmico que ultrapassa seus limites encapsulados e individuais, não passando dum simples ponto desta ecologia cognitiva que é o pensamento. A consciência é individual, mas o pensamento é coletivo!
Mesmo agora, quando admitimos que grupos humanos possuem sua cognição, ainda resistimos à idéia dum coletivo misto, que abarca não só pessoas, mas coisas. E pulula a pergunta: como é que, diabos, uma coisa poderia participar da inteligência!? É fácil caírmos na solução da passividade objetal, considerando os instrumentos enquanto extensões inertes de nossa mente. A alma humana, entretanto, não é um núcleo central ao redor do qual as tecnologias da inteligência circulam, mas é o agenciamento aparentemente sistêmico desses inúmeros satélites. Não o sol, mas todo um universo de frágeis relações a se coadunarem! O que seria da grandiosa mente, por exemplo, sem a linguagem - misto sujeito-objeto - fruto e árvore das conversações, dos nossos grupos sociais, das nossas tecnologias da memória?
As tecnologias da inteligência estão fora de nós. Tudo bem! Digito este texto em meu modesto PC, processado por um Intel Celeron 220; seguro um livro meio amassado do Pierre Lévy, publicado pela editora 34; e, tendo acabado a Eroica, pús-me a escutar o álbum Awake, do Dream Theater. Entidades claramente distintas de mim, de você e delas mesmas. Não obstante - uso a conjunção preferida do Dr. Cooper! - o advérbio "fora" nos parece - a mim e ao Pierre - mal colocado, sendo preferível a partícula "entre". Afinal, escrevo numa postagem que (assim espero) será lida por outrem, em seu computador pessoal; leio e comento um livro escrito por um judeu tunísio que mora na França; aprecio uma música em mp3 (The Silent Man, a balada do CD) editada pela Elektra Records, uma das muitas gravadoras da Warner. Os objetos não só conectam os sujeitos, mas estruturam a rede cognitiva que permite a sua existência. Mesmo quando sozinhos e de mãos vazias estamos na presença de muitos, sejam homens, mulheres, infantos e velhos, sejam falas, regras, lógicas e imagens. O sujeito só o é na imbricação dos objetos! Sujeitos atravessados de objetividade e objetos recheados de subjetividade, numa rede louca, complicada, heterogênea, imenso entrelaçamento articulado de subjetividades fractais e tecnologias intelectuais! Homens-coisas...
LÉVY, Pierre; As coletividades pensantes e o fim da metafísica; In As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática; Trad. Carlos Irineu da Costa; Rio de Janeiro; Ed. 34; 1993; pp.163-175.

O que eu aprendi com Sigmund

Um sintoma é o substituto duma satisfação libidinal que, recalcada, permaneceu em latência. O recalque se dá quando o eu, submetido às ordenações superegóicas, recusa-se a pactuar com um desejo provocado no isso. Esta resistência pode ser pensada como um movimento defensivo que o organismo adota contra um processo interno, de maneira semelhante às defesas utilizadas contra os estímulos de fora. O psiquismo, quando assolado por algum perigo externo, foge, retirando o investimento da percepção do objeto perigoso e angustiante ou, ainda, inibindo certas funções do eu de maneira tal a tornar impossível a percepção deste objeto mesmo. O recalque é um equivalente desta tentativa de fuga, mas para um perigo oriundo do próprio aparelho psíquico.

A concepção freudiana do funcionamento da alma, acima disposta, cria condições para se pensar uma terapêutica diferente dos sistemas semiológicos e fisicalistas ao recolocar os limites entre normalidade e patologia, visto que põe a neurose como o modelo de funcionamento normal do psíquico. Freud, destarte, estabelece uma clínica sobre uma compreensão patológica erigida não sobre o sintoma, mas sobre seu funcionamento; qual o desejo recalcado que, numa satisfação substitutiva, deu origem a este sintoma; e, por fim, qual o motivo do recalque.

Sua obra, originalmente dedicada aos médicos que praticavam suas observações, faz-nos pensar sobre alguns pontos de nossas atuais práticas Psi. Se escrevia para médicos, hoje fala a psicólogos. Num texto de 1912, Freud aponta alguns macetes técnicos que adquiriu com sua própria experiência de trabalho. Numa primeira recomendação, pede que evitemos anotações durante o atendimento clínico, mesmo que estejamos responsáveis por vários e vários pacientes, muitas e muitas experiências num mesmo dia. A atenção, devendo flutuar, não deve privilegiar uma e outra informação produzida na clínica. Fixando-se os pontos, nos arriscamos a só descobrir o que, de alguma maneira, já sabíamos!

Essa atenção, suspensa e flutuante, é uma espécie de contraparte à exigência analítica, feita ao paciente, de tudo comunicar e nada selecionar. A atividade do analista não é a escrita, mas a escuta. Sua consciência é sempre focada, deveras, mas deve estar abandonada à memória inconsciente. O trabalho de interpretação analítica não consiste em registrar informações, mas em estar aberto à elaboração das lembranças junto ao paciente.

A sapiência do analista não deve ganhar ares de ambição terapêutica, mas deve estar voltada a garantir esta relação inconsciente, impessoal, entre analista e analisado. Fala-se dum tal distanciamento emocional na prática analítica, mas não se trata de embotamento afetivo, e sim da evitação de especulações no curso da análise que, além de desencaminhar a produção de lembranças e pensamentos, cai numa pedagogia moralizadora do sujeito que desnorteia o paciente – agora objeto de conhecimento acadêmico – em seu próprio sofrimento. Antes do falante, o ouvinte...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Discursos, discussões e eu aqui, com meus botões...

O homenzinho por detrás do espelho com seu joystick a me controlar. Elucubrações, metafísicas, conspirações! Paranóia!!! Quem o colocou ali? Quem fez o design do seu controle? Quem obedece suas ordens? Quem o ordenou a ordenar? Estaria eu, na platéia, a coadunar com seus estratagemas? Estaria eu, ao visitar tal anfiteatro, patrocinando dramas? Fazer parte da platéia é entrar no jogo? Boicotar as apresentações também seria jogar? Fujo do espetáculo por não querer ser boneco ou por temer, remotamente, que o controle caia em minhas mãos? Será que posso chorar frente a isso? Posso rir, então? Posso falar? E me calar? O que posso, afinal? O que podemos, então!? Levantar-me e sair durante a sinfonia seria indelicado? Seria ainda mais indelicado ficar sentado quando aquilo me desinteressa por demais? Se não posso agir, como devo fazer? Como fica o dever frente a um direito que é meio esquerdo? Ou seria meio esquerda? Meia esquerda, talvez? Futebol? Militância? A bola rola no teatro? E as bandeiras vermelhas? São visíveis no escuro? Será que o espetáculo tem, mesmo, que continuar? Será que o teatro vai, sem remédio, permanecer no escuro? Será que eu posso, algum dia ou só agora, parar de apertar meus botões?...
P.S.: escrevi este parágrafo no blog Imagens e Imaginação, num dia qualquer de setembro do ano passado; o escrito possui um contexto de enunciação muito preciso mas, creio eu, casa muito bem ao comprimento de onda do meu agora...