sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O erro de Husserl

Título pretensioso à beça, eu sei. Como um moleque tem a audácia de falar o que seja sobre o paizão da Fenomenologia? Husserl foi aluno do medievalista Brentano, estudou em Leipzig e Berlim, é cria direta do racionalismo ocidental de Descartes, Leibniz e Kant, doutorou-se com uma tese - incognoscível a minha pessoa, saliento - sobre o conceito de número e trabalhou, antes de forjar seu projeto fenomenológico, numa verdadeira filosofia da aritmética. Contruiu noções cabeçudas, como a Redução Fenomenológica, a Região Eidética, o Sujeito Transcendental. E, principalmente, fecundou o pensamento e lhe deu nova vida, principalmente no que toca à epistemologia e à ontologia. São tributários diretos do Edmund a fenomenologia estrutural do Merleau-Ponty, a hermenêutica do Heidegger, o existencialismo do Sartre, a Gestalttheorie dos meninos da escola de Berlim, só para citar os que já tive a decência de estudar. A oposição entre mecânica e dinâmica, partes-extra-partes e conjuntos de relações, estímulo-resposta e totalidades ordenadas - ainda presente no fazer científico das físicas, das biologias, das psicologias - tem seu débito no pensamento husserliano.
Colocando as coisas dessa maneira, aparece-nos com clareza que o título desta postagem se deu como fruto de desentendimento da minha pessoa frente à pedreira conceitual que é a obra do Husserl. Se o for, que seja! Filosofia se faz através de desentendimentos e entraves, de qualquer maneira. No caso contrário - aquele no qual se entra tão profundamente no plano de experiência dum sistema teórico - passamos a constituir o mundo tal qual o filósofo, e nos tornamos, ademais, simples comentador deste. Prefiro, pois, minha precariedade criativa. O próprio Husserl colocava que havia um certo desejo secreto, em todo filósofo, de ser o fundador e o findador do conhecimento, entendendo por filosofar não a busca do conhecimento de isto ou aquilo, mas do que fundamenta, baseia, sustenta - chão firme, terra natal, plano de consistência - isto e aquilo. Husserl não pergunta "o que é isto?", mas "o que é o que é?"
Recusando tanto o terreno elameado da especulação metafísica quanto o chão duro da formalidade positivista, Husserl segue um terceiro caminho, ansiando nos colocar no mesmo plano da realidade, das “coisas mesmas”, como gostava de dizer. O fenômeno - conceito kantiano, atentem, embora Husserl faça seu próprio uso da ferramenta - é lastrado de pensamento. É logos ao mesmo tempo que fenômeno. Não existe nenhum fato do qual possamos dizer que ele não é nada. Se não nos perguntamos “o que é!?” a um algo qualquer é porque já acreditamos sabê-lo. Todo fenômeno traduz-se pela possibilidade de ser nomeado, designado, essencializado.
As essências, aqui, enquanto estruturas a priori do pensamento, independem da experiência sensível, embora se manifestem através desta. Mas tal assertiva não é, necessariamente, inovadora; Platão já criara um mundo de idéias condicionante do sentido das coisas. A grande sacada de Husserl foi retirar as essências de sua morada transcendente e inteligível e fazer seu retorno às "coisas mesmas”. Coloca-as na consciência, pois é como visada de consciência que elas se manifestam a nós. A intuição das essências, logo, não se identifica às factualidades materiais, mas sim ao sentido ideal que lhe atribuímos, como o menino que chama de círculo a gravura levemente oval que suas mãos trêmulas e descompassadas desenharam. E é aqui que começo a engasgar com o husserlianismo. Antes de expor minhas desavenças com o barbudinho, acho interessante lapidar um pouco mais seu pensamento, seja para dar sentido à minha crítica, seja para prestar homenagem a este inegável - e obssessivo! - gênio.
A consciência - diria Husserl-inspirado-por-Brentano - é sempre “consciência-de-algum-objeto”, só é consciência estando dirigida, buscando sentido, intencionando coisas. Já os objetos só podem ser nomeados e definidos em relação a um sujeito, sendo sempre “objetos-para-uma-consciência”. Chama-se a isto pelo bonito nome de Princípio da Intencionalidade. Até aqui, não nos parece nada além do que um Kant ou mesmo um Schopenhauer já não tenham colocado abertamente, ao lapidarem - cada um a sua maneira - uma teoria da representação. O que o diferencia dos representacionistas é que, para Husserl, as essências não existem fora do ato de consciência que as visa e as apreende. Não há númeno! É impossível sair desta correlação sujeito-objeto – noese e noema – já que, fora deste relacionamento, não há nem um nem outro.
Então. A consciência é constitutiva das coisas do mundo. Noética. O sujeito-todo-poderoso é que dá sentido ao real com as suas visadas de consciência. Beleza. Toda a fenomenologia husserliana é uma tentativa, assim, de descrever, delimitar, criticizar a consciência. Estudar as essências da consciência constitui, para Husserl, a fenomenologia. O próprio Husserl, no entanto, esqueceu do movimento segundo que constitui seja o mundo seja essa consciência que o constitui. Noemática. A fenomenologia de Husserl possui caráter notavelmente noético, puxando a correlação consciência-objeto para o lado do sujeito. Sua filosofia é, grosso modo, idealista e transcendental, visto que o mundo se dá pela consciência que o constitui, deixando de lado o movimento oposto dessa correlação: as coisas mesmas que, articuladas entre si, configuram uma consciência! E a consciência, esta mesma constitutiva das coisas e constituída por elas torna-se, ela mesma, coisa lançada ao mundo! E este é o ponto que acho mais difícil de encaminhar. Vamos a um exemplo do próprio Husserl para clarear o pensamento.
Suponhamos uma consciência no mundo. Ou seja: pense em qualquer coisa! Um número, uma paisagem, o interior duma casa, um sentimento de medo ao andar de montanha-russa, a tensão antes duma prova importante. Pois bem! Nossa consciência, constitutiva destas coisas, vai realizar um exercício de imaginação, agora. Começemos a destruir o mundo em nossas cabeças. Quem pensou em paisagens, por exemplo, que vá apagando todas as partes que compõem a imagem, até não sobrar nada. Apaga-se o sol, o céu, o chão, as árvores, os caminhantes. Isso, isso, isso. Façamos o contrário, desta vez. Deixemos o mundo intacto e passemos a destruir a consciência. Anulemos a percepção, a compreensão intelectual, as emotividades. Conseguiram? "Claro que não", diria o Husserl, pois ao mantermos o mundo intacto ainda estamos mantendo uma consciência - a nossa! - a lhe visar. Um a zero para a consciência neste simples embate. E, assim, conseguimos colocar, ainda que singelamente, a superioridade da consciência sobre o mundo no husserlianismo. Mas o Husserl, no processo de destruição da realidade, tem a crença intelectual de que o Ser original veio preencher um vazio, um Nada que preexistia à existência deste Ser mesmo, um Nada que pre-existe sem precisar de explicação alguma. O Nada como uma abstração lógica, mas vazia, para fazer funcionar nossos esquemas explicativos. Fiz uma melhor discussão deste problema aqui, para os que quiserem atingir o problema mais profundamente. Os que quiserem me acompanhar na política da precariedade, que sigam em frente.
A consciência do Husserl não é coisa lançada ao mundo, mas o ser mesmo que o constitui. Platão ficaria orgulhoso. Sofistas, poetas, artistas, todo o resto da pólis olharia com estranheza para tamanho idealismo. A razão grega é filha da cidade. O homo sapiens é, antes, um homo politicus. E a idealização da realidade coloca a vida no plano do conhecimento intelectivo. Exemplo. Estou a escutar, no momento em que escrevo estas ousadias, o novo CD que a Roberta Sá gravou, em parceria com o Trio Madeira Brasil. Quando o Canto é Reza é o nome do álbum, e só têm composições do baianíssimo Roque Ferreira. Situação um. Noutro caso, eu estou sentado na primeira fileira do Teatro Tobias Barreto - aqui, pertinho de casa - vendo a Roberta interpretar Zambiapungo, uma de minhas músicas preferidas do disco. Num terceiro momento, estou num bar, na ladeira do Bonfim, escutando o próprio Roque cantar e tocar no seu violão, rodeado de vendedoras de acarajé e cocadas, baianas fogosas e manolos meio bêbados. O nosso momento número 4 é que o CD - cheio de riscos e arranhões - começou a gaguejar em todas as canções. E, por fim, no quinto contexto, eu arrumo a cifra de Zambiapungo e começo a tocá-la no violão.
Cinco Zambiapungos. Em todos os casos, entretanto, um ouvinte que conhecesse este trabalho da Roberta Sá ou as músicas do Roque Ferreira, diria: "trata-se de Zambiapungo, ora", seja com a Roberta no Teatro, com o Roque no bar ou comigo, num luau. Trata-se do mesmo "conhecimento", mas não da mesma "compreensão" ou "existência". A intuição das essências, a que alude o Husserl, em geral descamba na transformação do devir em categorias transcendentes e, pior, num sujeito fora do mundo a lhe constituir. Não há nem mundo nem sujeito! Há a dança da existência, sem centros, referenciais ou idéias. A totalidade é anterior às partes, que se revelam nesta totalidade mesma! Enquanto Husserl pressupõe um sujeito e um mundo - duas realidades - e cria uma tecnologia filosófica para erigir uma ponte entre ambos, acho mais saudável considerar a existência como um devir para além de toda relação mecânica, ou mesmo dinâmica, entre as partes. Distinguir mecanicismo de dinamismo, como dois modelos teóricos, duma terceira opção, um campo de práticas, deve ser um próximo texto a figurar por estas bandas. Por enquanto, adianto. Não se trata de homens e coisas se relacionando, mas de imagens e figuras de luz a se atravessarem, dobrarem-se, ganharem consistência e servirem de ecrã umas às outras. O Matéria e Memória trata, exclusivamente, dessa maluquice toda. Antes do homem e da máquina, há a interface. Bergson e Einstein ao invés de Husserl e Newton. Antes dos corpos, há a luz. Absoluta luz...

sábado, 2 de outubro de 2010

Comme il faut

Véspera de eleição. Acordo tarde por ter atravessado a madrugada. Chico Buarque, fenomenologia, função parental, poesia libanesa, o Pequeno Príncipe, seriados ingleses. Conversas, sono, sonho e despertar. Um café, dois biscoitos, três minutos pra digerir isto tudo. Depois de ajeitar meu cantinho - varre poeira, recolhe traça, vasculha teias - resolvo assistir um filme, só pra descansar as idéias. Vasculho meus arquivos e ponho um Truffaut pra rodar. Bonito. Tristeza sem necessidades. Por isso, bonito. Findado o sublime, resolvo dar conta de toda a leitura atrasada que pilha e empilha sobre o chão de meu quarto. Começo a jornada. A edição de abril da Piauí, um artigo sobre a ontologia bergsoniana, algo do Merleau-Ponty sobre aprendizagem e comportamento, um conto do Lev Tolstói. Uma cerveja escura faz companhia a mim, mas não se demora em sua visita. Resolvo convidar sua prima, uma holandesa, para continuar a prosa, mas ela também insiste em não durar. Entretido com a vida do decente Ivan Ilitch, dou conta de mim como num lampejo. Compreensão profunda! Ligo o computador. Seleciono o usuário, cuja imagem de exibição é o vieux guitariste aveugle, do Picasso. Caio na área de trabalho, cujo papel de parede é um quadro pré-impressionista do William Turner. Entro no messenger e dou de cara com a mesma amável pessoinha com quem adoro compartilhar meus silêncios. E o ciclo parece se reiniciar. Conclusão: que pedante do caralho, eu sou!...