quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O pensamento, temporalidade e a política de imagens

Um ano em 10 minutos. Uma contração temporal – precária, sempre precária – se dará aqui, conosco. Bloco de espaço-tempo bergsoniano. Dispenso fotogramas, vídeos ou qualquer outro recurso de imagem, para que a própria fala se configure como imagem disparadora. Pois bem. Essa minha fala, fala em mim, é produto da pesquisa Produção de imagens e os modos de imaginação: pensamento, cinema e contemporaneidade, vinculada ao PIBIC, que visou analisar processos de produção-consumo de imagens, articulando-os ao acionamento da imaginação no contemporâneo. Procuramos criticizar o pensamento e os modos de produção da atividade cinematográfica contemporânea, demarcando, por fim, a disposição de encontro com um cinema que busque se constituir como uma estética que permita a coexistência temporal. Bergson, mais uma vez.

Como parte desse projeto de pesquisa, foi ofertado – no 2º semestre de 2009 – a disciplina Tópicos Especiais em Psicologia Social e Institucional, na qual todos os envolvidos nesta pesquisa tomaram parte. Como objetivos a serem atingidos em sala de aula estavam o compartilhar experiências e leituras do cinema contemporâneo, discutindo sobre a produção de imagens e dimensionando, assim, possibilidades de imaginação.

Nossas conversações em sala de aula transbordaram num espaço de registro e de produção coletivos – a saber, um weblog aberto, que servia tanto como dispositivo acadêmico, visto que seriam as postagens no blog usadas como sistema de avaliação, quanto um lugar de discursos e discussões, pois o sítio eletrônico servia como extensão das prosas disparadas em sala de aula.

Esbarramo-nos, tanto em sala quanto no blog, com filmes que confortam e põe soluções; e filmes que colocam mais perguntas que respostas. Duas modalidades do fazer cinema: películas que apertam o coração e películas que retiram o chão. Trabalharemos nisto, mais adiante. Um desvio de percurso, agora. Luis Antonio Baptista, num dos sublimes capítulos de seu A Cidade dos Sábios, discute a condição de escuta em narrativas onde o que está em jogo é a fabricação do indivíduo. Fala duma escuta clínica, definida pelo processo de ensurdecimento da realidade histórica do acontecido, buscando dar conta do que seja o verdadeiro no evento mesmo. Em posterior, aponta uma escuta solidária, marcada por uma relação, na qual os sentidos e encaminhamentos são frutos duma realização comum de forças e interesses que trabalham coletivamente.

Um outro modo de apresentar essa discussão é apontar para os processos de produção que individualizam as experiências do viver e os modos de subjetivação marcados por uma política da coletividade. Entretanto, essas duas lógicas têm dinâmicas conflitantes nos modos de operar no tempo e no espaço. Esse conflito se revela nos termos que já dispomos: como processos que apertam o coração ou que retiram o chão. Ao invés da audição, no entanto, problematizamos aqui os modos de visão.

Cabe a mim, aqui, alguma definição desse olhar para bem colocar este problema. Poderíamos tomar o olhar como algo que produz intencionalmente o mundo e daí outros subsequentes olhares que recebem e assimilam esse mundo. Nessa relação, teríamos um super-olhar – olhar privilegiado – produzindo os modos de olhar, enxergar, ver. Um grande olho, que se faz e se quer verdadeiro, produzindo olhos. Decidimos, no entanto, por outra expressão que pontua melhor o nosso plano de experiência. Resolvemos trabalhar com a noção dum olhar parcial como força que participa dos processos de produção de sentido. A ele, designamos a expressão olhar precário.

O olhar precário possui essa sina, eterna seara, de não se bastar, e com ela pode encontrar aquilo que seja capaz de potencializar ainda mais a parcialidade do seu alcance visual. Ou seja, o incremento da sua insuficiência, da sua precarização. É olhar que possibilita a invenção das imagens que mira e não sua decodificação. Bruno Latour nos diz: o ato de conhecer – melhor dizendo – o ato de produzir saber não está no registro do transcendental sujeito conhecedor, nem na imposição à realidade pela coisa mesma a ser conhecida. O olhar é fruto de articulações coletivas, de encontros e colisões entre homens e coisas, humanos e não-humanos. É, portanto, necessariamente precário.

A precariedade do olhar soa e ressoa como condição para uma política por intercessores. Deleuze aponta para um modo de precarização criativo e parceiro nos modos de composição do mundo. Diz que esse olhar se opõe aos pré-estabelecidos, às formas colonizadoras. Fabulação dum povo que ainda não existe. Parece emergir, daí, a questão de como algo que ainda não é pode resistir a aquilo que já é. Vejamos. Com Nietzsche, aprendemos nós a buscar encontros e não uma extensão. Não se trata de interpretação, mas de maquinação. O que quero dizer, ainda com Nietzsche, é que antes da emergência de uma vida instrumental, havia a vida, em qualquer tempo. Antes do super-olhar, olhos. A imagem que pretendo construir: a vida normativa é quem resiste ao olhar precário, no sentido da invenção da vida.

Caio no olhar total, agora. Olhar, este, que busca através da instrumentalização do seu próprio foco ultrapassar a sua condição de precariedade. Um olhar que busca se dispor como “O Olhar”, com aspas, O” maiúsculo e tudo o mais, subvertendo a sua singularidade perceptiva por um modo de identificação persecutório. Panóptico. Máquina de Visão. Foucault e Virilio. Um olhar com razões que buscam se estabelecer antes da experiência do ver, para que o ver seja aqui o que se permite enxergar, aquilo que vai se dar as vistas, o verdadeiro.

Em resumo. Cabe, aqui, a crítica entre as forças que pontuam a condição de uma totalidade, ainda que finita e arbitrária, para as experiências do ver, o que definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado, o que tomamos por olhar precário. Como campo para este problema, tomamos – repito! – o cinema e duas experiências estéticas: as que apertam o coração e aquelas que retiram o chão.

O cinema como máquina que reforça; ou acusa essa condição de controle. O cinema como um entretenimento que ativa uma experiência sensório-motora; ou o cinema que se propõe uma dimensão estética que aciona possibilidades de diferença, que busca outra dimensão temporal que não o aqui-agora, demandando assim a criação de outras articulações do real. Produção de permanências ou jogo de descaminhos. As forças que trabalham por uma captura sentimental o fazem atuando como máquinas de repetição. A sua linguagem qualifica-se pela capacidade de síntese que uma experiência estética possa produzir. O cinema-que-aperta-o-coração assume uma dimensão industrial no seu fazer, fabricando experiências áudio-visuais voltadas para demandas sensório-motoras, que funcionam ao mesmo tempo de modo genérico, quando tomando seu público por conjunto, e também particular, quando viabiliza uma sensação de intimidade com o indivíduo, que se permitira uma absorção sentimental com aquilo que passa na tela. O filme de coração apertado é muito mais um caso que uma narrativa. Um exemplo que uma experiência. Não maquina, mas diz do movimento. História que identifica, visto ser história do indivíduo. Logo, história possível de cada um de nós.

O outro modo de cinema que disponho, aqui, é o cinema-que-retira-o-chão. Esse cinema atua noutra dimensão política, se posto em comparação com o cinema-que-aperta-o-coração. Retirar o chão é como que demandar desterritorializações, em oposição às zonas de conforto configuradas pelo cinema sensório-motor, anunciando um convite a outros possíveis territórios. É investir num tempo não disposto no instante, mas marcado por uma política do futuro do pretérito, por uma história efetiva. Nietzsche-Foucault. O filme sem chão mais desmancha que edifica, mas um desmanche que não configura dano. Nele, o imaginado subjaz ao inusitado.

O olhar precário busca, devido a sua percepção parcial, pares para que uma visão se dê. É na parcialidade e no encontro que se dá. O super-olhar, modalidade de exercício do olhar precário, se quer absoluto, tal qual a máquina de visão do Virílio que busca a produção dum sentido de totalidade. Pretensioso, o super-olhar quer estar em todos os lugares e a tudo ver. Ambicioso, quer ver os fatos e as vísceras. O super-olhar enquanto máquina de instantâneos quer representar o real, contrapondo-se às impressões inventivas que os olhares precários, em aliança, costumam pintar. Que modalidades de encontro são possíveis é a ocupação do olhar precário. O cinema voltado para uma sensibilidade sensório-motora, entretanto, funciona como fomentador desse desejo de totalidade do olhar.

Películas que apertam o coração e que retiram o chão. É a quarta ou quinta vez que disponho esse binarismo. Fala precária, esta minha. Não se trata, porém, de análise dos filmes – este é este, aquele é aquele – mas sim uma consequente aproximação dum campo de estudos que investe num modo outro de produzir olhares. Cabe-nos atentar para uma lógica problematizante, temporalizante, e buscar encontrar encaminhamentos de invenção em nossos encontros com modos outros, de abertura a uma produção – cinematográfica, psicológica, filosófica, que seja – que suscite olhares precários e ansiosos no hoje...

Fala que proferi, hoje mesmo, no vigésimo encontro de iniciação científica da UFS, a respeito da pesquisa "Pensamento, Cinema e Contemporaneidade", que participei durante o segundo semestre de 2009 e o primeiro de 2010. A pesquisa ganhará continuidade e, desta vez, investigará o pensamento deleuziano no que tange a questão do cinema, do tempo e do movimento e, num momento posterior, procurará dimensionar estética e politicamente o Cinema Novo em relação ao cinema clássico e de produção em escala industrial, focando a produção cinematográfica e literária do Glauber Rocha. Vamos nessa, então...

sábado, 25 de setembro de 2010

Herói

Ando, e já a algum tempo, decepcionado com filmes de ação. A decepção é para com o cinema atual, deveras, mas a ação - em particular - vem me causando tremendo desgosto. Diálogos a nível sensório-motor, enquadramento e decupagem clichês, interpretações que não convencem. Nunca gostei de ofensas a minha inteligência, que nem merece tantas considerações. É a sina do filme comercial: ao invés de nos lançar numa temporalidade, numa historicidade, dispõe-nos uma sequência prévia de cenas, de fotogramas e de movimentos. É ir na onda, só que não a Nouvelle Vague, o ato de criação, mas a Bad Trip, o stimuli-respond. O horror não sabe mais nos colocar no medo e apela para estripações e torturas. A comédia já não possui a sutileza do riso e tenta nos agradar com cenas espalhafatosas e constrangedoras. O drama não mais chora conosco e passa a narrar lições de moral e piedade. Decaida está a sétima arte, chego a pensar. Decaimento de Heideggeriano, entretanto. Interroga o Ser em termos de Ente mas, ao menos, faz a máquina funcionar.

Qual não foi a minha surpresa quando, em uma de minhas visitas diárias a um site de cinema cult [aka. um blog para cinéfilos chatos, pseudo-intelectuais, metidos a besta e arrogantes] encontro, para download, um filme com o Jet Li. Herói, o nome. Franzo a sobrancelha, num sinal de incompreensão. Vejo a ficha técnica do mesmo: filme colorido, lançado em 2002, uma hora e meia da tela inicial ao crédito final, diálogos em mandarim, classificado como Ação e Drama e dirigido por um tal de Yimou Zhang. Parece ser mais um daqueles Wushia, que sempre me desagradaram pela irrealeza dos seus movimentos. Coloco para baixar, motivado por um elán-curiosidade, e faço uma aposta silenciosa de que algo bom está a me esperar, por ali. O filme começa. E termina. De A a B. Entre os pontos, entretanto, muito se deu. Tudo se deu!

Recebam, agora, toda uma saraivada de palavreados, xingamentos, gesticulações e correlatos enquanto eu tento pintar o filme através da escrita. Não os porei, aqui, porém. Profanariam o silêncio de Herói. Há pouco diálogo, mas muito é dito. Há muito movimento, mas poucos moventes. Quase não há forma, mas a cor abunda. Herói é filme pra ser visto. Necessariamente visto! Sua fotografia é radiante, multicolor, pluritemporal. Poucos corpos, mas que irradiam paletas inteiras de cor. Da cor que cega ao incolorido. Seus personagens são mundinhos vastos: a bela Neve Flutuante e o austero Espada Quebrada, a menina Lua e o tranquilo Céu, o grande imperador Qin e o protagonista Sem Nome.


A história? Pouco importa. E não por esta ser apenas o papel de parede sobre o qual as miríficas batalhas se desenvolvem. É um filme de Kung Fu, afinal. Mas não é por isso que resisto a tecer uma sinopse. A trama é baseada numa das muitas lendas sobre a constituição do império da China. A história, no entanto, é tão só o corpo no qual a bonita narração encarna. Não é o tema, mas como ele se nos revela. O título original, 英雄 (transl. yingxiong), pode significar tanto "herói" quanto o seu plural, "heróis". Sentido duplo. Dividual. A história é o desinteressante, aqui, porque é o enlaçamento das muitas histórias - contadas e vividas - que matiza o filme. Cores, cores, cores. Sem Nome narra uma história vermelha ao ditador Qin. Este, velho de guerra, percebe a tentativa de engodo do reles Sem Nome e conta a sua versão do acontecido, todinha azul. Sem Nome, acoado por ter seu plano descoberto, revela a verdade. Branca. Multiplicidade de experiências, que não se anulam uma a outra.


Herói
é um filme informe. A cor precisa de extensão, mas não dum corpo pra existir. O diretor Zhang, genialíssimo contador de histórias, jogou com a regra até o seu limite, levou-a ao extremo num alternar saltitante entre combates voadores e diálogos soturnos, histórias de amor e casos de traição, assassinatos e sacrifícios, claridade e negritude, águas calmas e chamas trêmulas, espadas tensas e penas viris. Herói me salvou. Mostrou que ainda posso ter esperanças para com o cinema, para com a ação, a verdadeira ação criadora na sétima arte! Pouco sangue é derramado no filme, percebo. Mas o filme é violento, mesmo que não o pareça. É violento, pois nos coloca no próprio ondular zigue-zagueante da matizada narração. Uma hora e meia de Duração, de Tempo, de Violência. O corpo do espectador, de Sem Nome, dos soldados do imperador são destruídos no violento embalo da poética das cores de Zhang, e somos todos imersos na caótica ordem dos opostos. Não é dialética. É a escrita chinesa, meu amigo. Esgrima e caligrafia numa mesma mão. Espada Quebrada o sabia bem. E sabia de cor...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Estranho

Antes de tudo, não falo na condição de estranho. Não é de mim que falo. Nem de ti, nem dele, nem de nós ou mesmo daqueles, lá longe. O estranho é sobre-pronominal. Supera a condição humana e individual. É inumano e dividual, pois. Bergsonismos. Fala de percepções, ações e afecções, mas sem nenhum centro de indeterminação a lhes dar suporte. O estranho é o insuportável, sempre o insuportável. Não há "eu" que o suporte, que o contenha, embora precise dum continente para morar. Gestalten que, anterior às partes, precisa das mesmas para se exprimir. Grito: antes do móvel, a mudança! A arte de Apolo embeleza o destrutivo, pesaroso e sôfrego mundo sensível do sensível grego. Anestesia. Dionísio, nem aí pra isso tudo, quer mais é esquartejar! A poesia trágica é a conciliação dos dois. É a arte da estranheza, arte que não embota mas cria. Não casa os corpos, mas pula a cerca e vai além do território cerceado.
O estranho não é afeito aos números. Um estranho aqui, uma estranha ali, um grupinho de estranhos acolá. Isto, não! Impossibilidade. O estranho é pura qualidade que toma o corpo são de assalto e o devora as entranhas. O corpo estranho é oco. Formal, mas sem interior. Artaud pariu. Deleuze criou. E - pior de tudo para este corpo sem órgãos - insiste em permanecer vivo. Respirando. Respira com dificuldade, pois não tem pulmão para filtrar o ar que outrora penetrou sua narina, hoje inexistente. O corpo oco é um corpo sem orifício. Não pode vazar, senão vira vaso. E nenhum vaso pode conter as águas tempestuosas do infinito.
Penso. Não muito, mas penso. E amo. Por amar demais, desaponto-me. Lágrima, ora. Logo, letra. Música, ao final. O corpo estranho assusta, espanta, mas isto é apenas o episódio fenomenal. É a sombra do corpo sinuoso e suado. O estranho é, antes de espantoso, um espantado. Monstro de Frankenstein que chora de horror ao ouvir sua própria voz gutural. A saúde é a vida no silêncio dos órgãos. Canguilhem, professor do Foucault, o disse bem. É não sentir o corpo, imerso no mundo como num silente oceano. O corpo estranho, necessariamente, é um corpo doente. Sua carne. Sua alma. Seu espírito é dor, anormalidade e quebrantude. O estranho causa aversão quando não sabe, ou se recusa, a entrar nos eixos. Mas, em verdade, é o mundo que lhe constrange, esmaga, espreme. Seu corpo em pús causa nojinhos e cuspidelas ascosas, mas seu sangue fervilha por debaixo da casca. Quer respirar, mas sem explodir. Conspira, então. Mas, como não tem boca, conspira baixinho, na surdina.
Fala baixo, pois. Os do alto, assim sendo, não o escutam. Que seja! Vai fazer arte, então. Mas nada de representar. O corpo estranho derruba a 4ª parede. Cinema experimental, pintura cubista, música serial. O fotógrafo usa de sua objetiva para captar os dados do real. Um lado. Alguns, mais espirituosos, fotografam dois. Outros, ainda mais profundos, conseguem captar três lados. Não é disso que se trata, escreve na areia o estranho. Não é perspectiva, sussura ao pintor; não é harmonia, soa ao músico; não é o olho, visa ao cineasta. O corpo estranho estranha, mas - mais do que isso - se estranha. Trava. Mas não paralisa. Lança tudo pois está lançado no todo. E cria uma percepção, uma ação e uma afecção sem profundidade, sem dimensão, sem ponto de vista. É a própria luz - matéria da matéria - que irradia da arte do estranho.
O que quer um corpo estranho é uma pergunta difícil, porque nos parece fácil de responder. As fáceis são as piores, diz a experiência. E o estranho sempre se guia pela experiência. Nunca pelo experiente! A estética das estranhezas não quer pluriperspectivar, transdisciplinar ou multivalorar. Não é consenso, nem tampouco respeito. Não é a demonstração dos seis - 1, 2, 3, 4, 5 e 6 - lados dos dados do real. Quer, sim, o som sem instrumento e ouvido, a projeção sem anteparo e retina, e a pintura sem dimensão e realeza. Sustenta, ao limite, uma escrita que nada diz, uma música que não ambienta, uma pintura que não representa. Filme sem ecrã, cuja luz - de matizes mil - viaja e viaja pelo espaço sem esbarrar em coisa alguma. Luz invisível. Invisada. Impercebida. Arte que nos coloca fora dos pontos de vista. Sem interpretações. Descomedida. Absoluta. Luminosa. Estranha...

domingo, 19 de setembro de 2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A gente do Pó

“Na medida em que eu sou o produto de uma sociedade de classe média, e estou preocupado em fazer dramas de classe média, eu não estou equipado para dar soluções. A classe média não me proveu dos meios pelos quais resolver qualquer problema da classe média. Eis porque me restringi a apontar os problemas existentes sem propor qualquer solução”.
Michelangelo Antonioni, em seu primeiro filme - o documentário Gente del Pó - sobre barqueiros e ribeirinhos do vale do rio Pó...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Quadro e plano, enquadramento e decupagem

I
O enquadramento, simplifica Deleuze, seria a determinação de um sistema fechado. Sistema, este, que abarca uma imagem e tudo o que nela está presente - cenários, objetos, personagens - assim como um conjunto a compreender elementos e outros subconjuntos. Tais elementos são como dados, dados de conteúdo, dados de informação; por vezes numerosos, saturados, por vezes escassos, rarefeitos. A saturação e a rarefação. Duas tendências, pois. Com estes dois extremos, aprendemos que a imagem não é apenas visível, mas também legível. Se muito pouco vemos numa imagem é porque não sabemos lê-la, não sabemos bem avaliar sua saturação ou sua rarefação. Com Godard, fica explicito o uso do quadro como superfície opaca de informação, um quadro-superfície ora saturado de conteúdo ora equivalente a um conjunto vazio, a tela branca ou negra.
Enquadrar é limitar, enfim. Um tal limite pode ser definido como geométrico/matemático (composição do espaço como receptáculo no qual os corpos vem ocupar) ou físico/dinâmico (o quadro numa dependência dinâmica das cenas, imagens, personagens, objetos e afins). Com esta mesma divisão, podemos classificar o quadro quanto às partes do sistema que reúne e separa. No enquadramento matemático, o quadro é composto por distinções geométricas. É coisa simples.
Dentro de um mesmo quadro temos outros muitos quadros, diferentes entre si. Conjuntos e subconjuntos. Pessoas e coisas, indivíduos e multidões, potências da natureza e as janelas dos carros. É através do encaixe destes quadros que as partes do conjunto reúnem-se e se separam, conspiram e se fecham no quadro geométrico. O quadro dinâmico, por sua vez, nos induz conjuntos vagos divididos em zonas. Não mais o quadro objeto das divisões geométricas, mas de gradações intensivas. É a indissociação entre a aurora e o crepúsculo, o céu e o mar, a água e a terra. Aqui, o conjunto não se divide em partes sem "mudar de natureza". Não se trata de um ser divisível e do outro ser indivisível, mas de ambos serem "dividuais". Indo mais além, diz Deleuze que a tela - quadro dos quadros - dá uma medida comum ao que não a tem. A paisagem e o rosto dum personagem, o céu estrelado e a gota da chuva. Partes dessemelhantes quanto à distância, relevo, luminosidade, mas assemelhados no quadro, que assegura uma desterritorialização da imagem.
Uma coisa a mais. O sistema fechado é um sistema ótico, referente a um ponto de vista sobre os conjuntos e suas partes. Vez e outra, estes pontos de vista parecem extraordinários, sobre-humanos, paradoxais: vista a partir do chão, de cima a baixo, câmera ascendendo. No entanto, tais visadas sempre se justificam pragmaticamente, informaticamente, confirmando a função legível das imagens para além da sua função visível.
Por fim, a noção de extracampo. O extracampo faz referência ao que, embora presente, não se vê, ouve, perceptua. O quadro, fala-nos Bazin pelo Deleuze, realiza um corte móvel através do qual os conjuntos se comunicam a um conjunto maior, mais vasto. Se um conjunto, contudo, se comunica com seu extracampo através de suas características positivadas, infere-se que um sistema fechado - por mais fechado que seja - nunca suprime o extracampo, atribuíndo-lhe existência e importância, a sua maneira. Todo enquadramento determina um extracampo. Necessariamente!
A própria matéria se define por este duplo movimento, o de constituir sistemas fechados e, ao mesmo tempo, pelo inacabamento dessa constituição. Todo sistema fechado, destarte, é comunicante. O conjunto de todos os conjuntos é uma continuidade homogênea, um universo, um plano material ilimitado. Mas não é o todo. O todo é, antes disso, o que impede cada conjunto de se fechar em si mesmo, forçando-o a se prolongar num conjunto maior e maior e ainda maior. Verdadeiro fio a atravessar os conjuntos e lhes conferir a possibilidade de se comunicarem entre si. É o Aberto, remetendo mais ao tempo e ao espirito que ao espaço e sua matéria. O extracampo, assim sendo, compreende duas naturezas: uma relativa, no caso do sistema fechado que faz referência a um conjunto que não se vê mas pode vir a sê-lo, arriscando assim suscitar um novo conjunto não visto, ad infinitum; e uma absoluta, na qual o sistema fechado se abre para o todo do universo.Deleuze usa a metáfora do fio grosso e do fio tênue para elucidar ambos os aspectos do extracampo. Quanto mais grosso for o fio que liga um conjunto (visto) a outros (não-vistos), melhor o extracampo cumpre sua primeira função (acrescentar espaço ao espaço). Quanto mais fino o fio for, menos ele reforçará o fechamento do sistema e sua distinção do exterior, realizando sua segunda função (introduzir o transespacial no sistema).
II
A decupagem é a determinação do plano. E o plano, por sua vez, é a determinação do movimento no sistema fechado. O todo, como já foi dito, é o aberto, a duração. O movimento revela, portanto, uma mudança no todo, uma articulação na duração, sendo tanto relação entre partes, quanto afecção do todo. Logo, o plano apresenta dois extremos, a saber, em relação aos conjuntos espaciais (modificações relativas entre elementos e subconjuntos) e em relação ao todo (alteração absoluta na duração). O plano, então, é intermediário do enquadramento dos conjuntos e da montagem do todo, ora tendendo a um ora a outro. Enquadramento e montagem como aspecto duplo da decupagem, que é tanto a mudança das partes dum conjunto no espaço quanto a mudança dum todo que se transforma no tempo.
Como tais divisões e uniões são operadas por uma consciência, podemos dizer do plano que ele age como uma. Mas a consciência cinematográfica não é nossa, a do espectador, nem a do mocinho, na película, mas é a câmera! Humana, inumana, sobre-humana. É através da câmera que o movimento se decompõe e volta a se recompor. Podemos, inclusive, considerar certos movimentos como uma assinatura autoral, seja na totalidade dum filme ou duma obra completa, ou num movimento relativo duma imagem ou dum detalhe desta imagem. Essa análise do movimento é um programa de pesquisa indissociável da análise de autor. Poderíamos chamar a isto de estilística, inclusive.
O Deleuze repete-se e apresenta, mais uma vez, o duplo aspecto do movimento, componível e decomponível. Esse movimento é o plano, intermediário do todo que muda e dos conjuntos com seus elementos, que não param de se converter e mudar de natureza, um no outro, outro no um. A sua grande sacada, agora, é que ele faz equivaler o plano à imagem-movimento bergsoniana - corte móvel da duração - apresentada no capítulo anterior. Bergson demostrava seu desapreço pelo cinema, julgando-o incapaz de movimento por lidar com um movimento ilusório, homogêneo e abstrato ao suceder fotogramas. Mas o movimento puro, movimento de movimentos, variando entre a decomposição e a recomposição, reporta-se tanto aos conjuntos quanto ao todo aberto que muda e dura incessantemente. E é justamente isto que faz o plano cinematográfico, ainda mais claramente que a pintura, visto que esta traz relevo e perspectiva ao tempo, enquanto o cinema exprime o próprio tempo como relevo e perspectiva. Fala André Bazin. O fotógrafo, por meio de sua máquina "objetiva", registra o movimento e o põe numa moldura. Mas o cinema não só registra o movimento como se molda sobre ele, captando sua duração.
III
Falemos do cinema primitivo. Seu quadro é definido por um ponto de vista único. O espectador a visar um conjunto invariável, não havendo comunicação de conjuntos variáveis e remetentes uns a outros. O plano indicava, unicamente, uma porção do espaço a uma certa distância da câmera, estando o movimento preso aos elementos que lhe servem de carona. Corte imóvel. Por fim, o todo, aqui, se confunde à soma de todos os conjuntos, estando o movente passando, apenas, dum plano espacial para outro, não havendo verdadeira mudança, mudança na duração. No cinema primitivo - podemos colocar esta máxima - a imagem está em movimento mas não há imagem-movimento. É contra este cinema - não cansa de atentar o Deleuze - que o Bergson tece as suas críticas.
Podemos nos perguntar, então, como a imagem-movimento se constituiu e o movimento se libertou dos elementos moventes. Duas formas: de um lado, pela mobilidade que a câmera ganhou e cedeu, de tabela, para o plano, que também torna-se móvel; por outro lado, pelo raccord, corte que designa tanto a mudança de plano quanto aos elementos de continuidade entre dois ou mais planos. Ambos os meios - formas da montagem - vêem-se obrigados a se esconder nos seus primórdios. Como bem coloca Bergson - ainda que não o tenha visto no cinema - as coisas não se definem pelo seu estado primitivo ou original, mas por uma certa tendência oculta neste estado de coisas.
Deleuze, citando L´Expérience Hérétique do Pasolini, coloca o plano como uma unidade de movimento que compreende multiplicidades que não o contradizem. Se o todo cinematográfico é um único e mesmo plano-sequência contínuo, temos, por outro lado, que as partes desse mesmo filme são planos descontínuos e sem ligação aparente. O todo renuncia a sua idealidade unitária e se torna uma síntese realizada na montagem das partes, partes estas que se coordenam, se cortam e se recortam em ligações que constituem o plano-sequência virtual, o todo analítico, o cinema.
Raccords imperceptíveis, movimentos de câmera, planos-sequência de fato. A continuidade sempre se estabelece a posteriori, o que nos mostra que o todo é de uma ordem para além dos conjuntos coordenados, sendo aquilo que impede os conjuntos de se fecharem entre si, ou mesmo de se fecharem uns com os outros. O todo surge numa dimensão que muda sem cessar. Dimensão do Aberto que escapa aos conjuntos e seus elementos. Um extracampo impossível de se filmar. O recorte, longe de romper o todo, são o ato do mesmo, que atravessa os conjuntos e suas partes que, num movimento inverso, reúnem-se num todo para além deles...
DELEUZE, Gilles; Quadro e plano, enquadramento e decupagem; In: Cinema 1 - a imagem-movimento; Trad. Stella Senra; Editora Brasiliense; 1983 [original]; pp. 22-43.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Por que Psicologia?

O Koffka deixa claro, logo nos primeiros versos, que seu livro não é uma obra de psicologia, mas sobre a mesma. Seus motivos: a psicologia dividiu-se em tantos ramos – diversos, ignorantes, combatentes – que causa confusão ao leigo quando imerso a tantas escolas. “Psicologias”, é o que dizem! O que nos diz o autor: o estudante de Filosofia quer conhecer os problemas e soluções que o pensamento nos legou, de ontem à hoje; o estudante de História pretende estar por dentro das relações de poder a erigir e demolir nossos castelos; o estudante de Física objetiva compreender a natureza através de sua metodologia experimental; e o estudante de Medicina deseja ter em mãos todo o poder que um conhecimento generalizado sobre a vida pode lhe legar. E o estudante de psicologia? Que quer esta criatura? Conhecer a natureza do homem!? Prever suas ações!? O Sr. Koffka não nos dá uma resposta positiva à pergunta. Tanto que só se sente justificado a escrever seu Princípios de Psicologia da Gestalt quando chega a uma solução sincera a este problema. Ele delineia a questão: o que alguém ganharia ao atravessar um curso de Psicologia e – mais importante – o que este sujeito teria a oferecer para a humanidade?
Um psicólogo que, através de sua ciência experimental, factuasse toda a existência humana teria um conhecimento inegável. Tudo bem. É costume atribuir mais valor a um fato objetivo que a uma teoria subjetiva. E a Psicologia só começou a entrar no terreno científico, inclusive, quando assumiu para si o projeto de busca-aos-fatos típico da ciência. Destarte, deixou de lado suas especulações imaginativas e lançou-se ferozmente a esta busca pelo saber. Mas este saber merece ser avaliado. Um conhecedor de 20 coisas sabe dez vezes mais que um outro, sapiente de apenas 2 itens. Não obstante, caso este último conheça seus dois itens em sua relação – dispondo, assim, não mais de duas unidades, mas de um todo com duas partes – saberá mais, muito mais que o primeiro, diz-nos Koffka, visto aquele só conhecer os 20 itens como unidades independentes.
Multum nom multa.
A ciência volta seus esforços para reduzir o número de proposições e assertivas das quais podemos derivar os fatos que conhecemos. Princípio de economia. Um exemplo: sabemos todos que um corpo pesado chega mais rápido ao chão que um corpo leve. Este fato é complexo, no entanto. Um fato simples – objetivado – seria a afirmação de que todos os corpos caem com a mesma velocidade no vácuo. Deste fato simples, podemos derivar o fato complexo cotidiano (a diferença de velocidade na queda dum lápis e duma folha de papel, inferimos, se deve ao atrito, que inexiste no vácuo) mas a recíproca é falsa. A ciência, econômica, fica com o fato simples mas, daí, a própria noção de fato é problematizada. Pensemos.
Considera-se o progresso científico como o aumento do número de fatos conhecidos. Conhecimento de
multa. A simplicidade a que almeja a ciência não é no sentido de tornar o saber cada vez mais fácil para aprendizagem, mas sim de construir um sistema cada vez mais coeso, fechado e unitário. Fórmula de tudo! O Koffka, por sua vez, coloca o saber científico noutro plano, visto que ao conhecermos um fato entramos em contato com muitos outros fatos a partir do primeiro. Conhecer, para ele, é considerar a interdependência de todos os fatos. Conhecimento de multum.
Óbvio, este projeto de encontrar a ordem unitária para todos os fatos é inatingível. O sistema nunca se completa. Fatos novos pululam a todo momento e resolvem fazer companhia aos antigos, quebrando a unidade do sistema. O próprio progresso do saber científico se deu através de seu espartilhamento, em muitas e muitas especializações. Se houve aumento no número de ciências - coesas e independentes entre si – pergunta-se qual a relação entre elas. Como podemos derivar
multum do multa é a pergunta que o Koffka coloca, delegando esta tarefa à própria ciência.
É possível uma conduta sem ciência. Todas as coisas nos enunciam, como que por si, o que são: a maçã quer ser comida; o vinho, degustado; o trovão, temido. Esta é a postura do homem primitivo, diria o cientista. O processo de pensamento – desvinculação do homem à linguagem da vida – destrói esta unidade do mundo, desenvolvendo categorias, classes e leis. A existência concreta, porém, não cabe nas ordens do pensar. A vida transborda. A ciência lega a si mesma o direito de sujeitar a ação humana a seus processos mas, muitas vezes, tais processos não nos indicam uma trilha definida para bem seguirmos. A razão revela a verdade, mas uma verdade que não nos orienta para uma boa conduta. A busca por orientação, ansiando ser satisfeita, descambou, para o autor, no dualismo ciência-religião. A ciência, desintegrando a vida, nega aquilo que proferimos aos domingos. Uma tal atitude revela-se nociva, e não à religião. Caso mantida, bloqueará o progresso da própria ciência em sua questão essencial; afinal, uma ciência progride não agregando fatos individuais, mas ao formular teorias gerais e significativas. A Psicologia koffkiana é, neste sentido, “teórica”, visto intuir os fatos dentro do sistema ao qual eles pertencem.
Resumindo, a função da verdadeira ciência não é fragmentar o mundo, mas reintegrá-lo, indicando nossa posição no mundo e nos bem relacionando com as coisas que nos cerceiam. E a Psicologia tem uma função especial neste projeto de integração, a saber a articulação entre a natureza inanimada, a vida e a mente. A relação entre estas três instâncias nos apresenta alguns problemas. Koffka apresenta dois tipos de soluções – o materialismo e o vitalismo - para estas questões mas, adiantando, rejeita ambas em nome duma terceira.
O materialismo diz que o problema é inexistente, negando a existência de substâncias – matéria, vida e mente – e reduzindo todas à matéria que, combinada nas mais diversas formas, originou a vida. Pensar e sentir tornam-se movimentos atômicos. O erro reside na discriminação arbitrária cometida pelos materialistas entre os três conceitos. Aceitam um e negam os demais, usando como justificativa o êxito sistêmico e prático da ciência. No vitalismo, apontamos três abordagens: a primeira, cartesiana, coloca a vida e a matéria inanimada dum lado e o espírito do outro; a segunda funde a vida e o espírito, considerando-os impulsionados por um elán distinto da matéria; a terceira mantém a trindade e estabelece atividades diferenciadas para cada uma das substâncias. O problema da solução vitalista é que ela não é uma solução, mas uma recolocação do problema. Claro, ao fazer este movimento mostra-se superior ao materialismo mas, ainda assim, propõe apenas uma nova terminologia ao problema e a vende como solução.
Ambas as alternativas são rejeitadas pelo Koffka que, observando as ciências da natureza, da vida e da mente, extrai de cada uma delas conceitos para a forja de sua psicologia: das ciências naturais, pega a idéia de quantidade; das ciências da vida, invoca a ordem; das ciências da mente, pede emprestada a noção de significado.
A fórmula matemática quer estabelecer uma relação entre o número abstrato e o processo que pretende descrever. Neste sentido, a descrição quantitativa não se opõe à qualidade, visto indicar uma processualidade, uma condição, sendo apenas uma maneira de representá-la.
Quanto à ordem, fala-se da mesma quando cada um dos objetos questionados está numa posição determinada pela relação com outros objetos. Koffka rejeita o mentalismo, assim como o materialista o faz, mas não abandona a noção de ordem, típica dos vitalistas. Faz parceria com os dois e trai a ambos. Soluciona o problema colocando a ordem como uma característica da natureza mesma, da física, podendo aceitar o conceito nas ciências da vida sem recorrer a uma força especial responsável pela ordenação dos viventes. Se o materialismo rouba da vida seu caráter ordeiro, a teoria gestáltica a atribui à matéria inanimada.
Já a noção de significado – elucidada pelas hostes celestes do Wertheimer – é capturada pela teoria da Gestalt para referir-se às formas científicas. Através de nossas observações e experimentos, descobrimos regularidades e formulamos leis. A lei, entretanto, é apenas um enunciado factual. É prática, verdade. Mas não tem significado algum! Nenhuma lei fisiológico-comportamental pode explicar um momento histórico-cultural, irredutível ao movimento de suas partes isoladas. Não
o quê, mas por que.
Visando integrar quantidade e qualidade, mecanismo e vitalismo, explicação e compreensão, a Psicologia da Gestalt introduz na ciência a articulação matéria-ordem-significado, salvando os conceitos da vida e da mente de sua condição ficcional. A vida corre por fora dos moldes da ciência, que a ignora. Se a Psicologia puder agenciar o encontro entre ambos, estarão estabelecidas as bases para um conhecimento no todo, que envolva tanto o átomo quanto o teatro, tanto as amebas quanto a produção musical, tanto nossas práticas puras no laboratório quanto nossas mais significativas condutas sociais...
KOFFKA, Kurt;
Por que psicologia?; In Princípios de Psicologia da Gestalt; Trad. Álvares Carvalho; São Paulo; Cultrix; Editora da USP; 1975; pp.15-35.