sábado, 22 de maio de 2010

Por um discurso vivo

A vida dói. Guerra! Viver é parto eterno, lançamento à diferença, salto no escuro, território desbravado, encontro de corpos. Produção de relações, atritos, choques, movimentos, intensidades. É sangue que pulsa. Explode, transborda e irriga! Viro a moeda, agora. O discurso anestesia. Paz! Discursar é tranquilizar inquietações, fixar identidades, construir caminhos, demarcar terrenos, separar joio e trigo. Produção de absolutos, ideais, separações, estáticas, quantidades. É vinho que paralisa. Deprime, nos faz falar demais e dá ressaca!
Depois da dramatização, conto minhas pessoalidades. Escrever, para mim, é tarefa por demais difícil. E não falo do ofício bilaquiano de tolher a palavra como se lapida um diamante. Não estou falando de métricas, harmonias ou de palavras pedantes. Mas falo da tentativa - sempre vã - de recriar a minhalma noutros corpos que não o meu. Sofro ao escrever como um asceta que faz seu sacrifício. Sofro porque trabalho e, na labuta, tento não só representar o pensamento em mim para os outros mas, no processo, criar um mundo em mim e para mim mesmo. É transformar em psicologia o vento que passa, o rio que corre, o fogo que canta e a terra que treme.
E, nessa onda, tento sempre usar uma terminologia diferente dos falatórios e escritórios cotidianos. Quando uma crítica ao positivismo começa a se tornar lugar comum, começo a discorrer sobre o progressivismo; quando a mobilização estudantil ganha ares de comício, passo a articular proposições; quando a política nos aparece como coisa grandiosa, chega o momento de falar das pequenas éticas. Social vira Coletivo, Identidade vira Subjetivação, Metodologia vira Deambulância. Daí, os senhores me perguntam: "Pra quê!?"
A questão não é tão elementar quanto o Sr. Holmes acredita. Não é (somente) a inflação de meu ego arrogante que está em jogo. Evitemos psicologizar os eventos sem necessidade e - diria o meu pensador favorito - coloquemos os conceitos em termos de Duração. O tempo que dura é um tempo que incomoda, angustia e impacienta. E é isto que a minha pessoa propõe quando fala pedantemente na praça com os seus convivas. A música não quer ser tocada - puro abuso! - mas sim tocar. A voz do profeta nada tem de ver com as ladainhas litúrgicas que, eras e eras após a enunciação do enviado, tentam reproduzir na assembléia passiva a atividade que se inventou a céu aberto!
Nossos bebês saboreiam muito bem esta verdade, visto sempre apontarem os objetos a que querem referenciar enquanto pronunciam seus primeiros balbucios. Recém emersos da vida, adentram no mundão das formas com a sabedoria excelsa do concreto. Quando crescem - triste, isso - aprendem o discurso. Sua palavra simples não mais aponta mundos, mas faz referência a si mesma. Blá-blá-blá, et cetera, tal, artigos acadêmicos, cartas teológicas, tratados artísticos. Vício de linguagem é ísso, aí! Piagetianos que me desculpem - ou não, tanto faz! - mas a criança não se des-envolve rumo a um adulto completo e perfeito, tal qual semente aristotélica a atualizar potencialidades; a gente grande é que ainda guarda um pouco da malinice do guri. Sendo pedante, falo da coexistência dos tempos ou - diria o meu pensador favorito [2] - da Memória.
Não se trata de representação, mas de sempre fazer presente o movimento característico da vida. Os livros mais vivos são aqueles viajantes, de leitura inicialmente árida ou que não pareçam fazer referência à nossa existência mesma. Mas é o contrário que se dá, pessoas! Acompanhem a receita: pegamos uma experiência ontológica, cósmica, coletiva, processual ou whatever e a transformamos numa competência psicológica; esta faculdade mental - unificação espacial dos processos - é, então, retirada do corpo; fora dum mundo e sem um corpo, a levamos ao fogo alto dos sistemas filosóficos para uma melhor purificação e deixamos descansar no mundo dos discursos. Tic-Tac, Tic-Tac e Tcharam! Uma mente quentinha, pronta para consumo. Uma mente que, justamente por não pertencer mais à vida, não reconhece quando apontamos para ela.
Se a vida dói, um discurso vivo deve - igualmente - causar dor. Deve ser difícil de escutar e pesado demais para se pronunciar sem gaguejos. Rasga gargantas e ouvidos, dedos e olhos. Um discurso vivo é sempre temperado com maionese; faz viajar pois exige um esforço para além do intelectual ou - diria o meu pensador favorito [3] - suscita Intuições. Blanchot fala do livro por vir; Deleuze, do escritor do futuro; Foucault, bêbado de Nietzsche, escreve por uma história efetiva. Todo discurso - seja fala, seja escrita - deve evitar cair no falatório ou no escritório do homem mediocrático. Superar a condição humana e trabalhar numa existência que faça nossas mais enraizadas certezas se tornarem arbitrariedade: esse é o trabalho do discurso vivo! Apontar à vida que corre e escorre enquanto falamos e escrevemos. O poeta escreve, mas cria e se cria numa existência poética antes de sacar a pena. O orador fala mas, antes de pôr em tópicos a sua alma, mergulha na vida comunitária que lhe dá o que falar. Calar nunca! Mas discursar sempre com a mente no corpo, com o corpo no mundo e com o mundo jogado entre tantos outros mundinhos...

domingo, 9 de maio de 2010

Da Fabricação à Realidade (II)

Um livro em meu colo; um computador pessoal em minha frente; uma cadeira a me sustentar; uma mesa, ao longe, sob uma pilha de textos que - preguiça dantesca! - tenho de ler ainda hoje. Todos estes objetos que me cercam são, ao mesmo tempo, "fabricados" e "reais". Fácil entender isso. Mas o problema que o Latour nos apresenta, no tocante aos objetos científicos, não se nos afigura tão simples assim. Sua tese paradoxal: é, justamente, por serem artificiais e fabricados que tais objetos científicos adquirem uma existência autônoma independente desta mesma artificialidade e fabricação!
A aparente viagem na maionese empreendida por Latour torna-se ainda mais paradoxa quando percebemos duas epistemologias contraditórias se justapondo no enunciado acima; a saber, um Construtivismo e um Realismo. Pra melhor preparar nossa salada, uma pitadinha a mais de Pasteur e de seu ácido lático não nos fará mal. Um experimento, como já coloquei em postagem anterior, é um ato - metáforas teatrais e musicais são válidas, aqui - montado pelo cientista/diretor/humano/Pasteur para fazer o objeto/atuante/não-humano/fermento aparecer por si mesmo. O labor e a oração do cientista fazem com que um outro plano de referência - uma transcendência absoluta, derivada dessa imanência relacional - se desenvolva. A referência do cientista-diretor delega, através de sua atividade, existência à referência do objeto-ator.
Esse é o momento em que invocamos nossos palavrões mais escabrosos diante de tão confusa explicação! É aqui que nos perguntamos: qual o problema da distinção sociedade-natureza, epistemologia-ontologia, palavras-coisas? Pra que precisamos dispender tanta energia intelectual nessa colcha de retalhos filosófica que o Latour nos traz se, ao que parece, o acordo moderno que distingue história de realidade é bem sucedido em trazer felicidade a todos nós? Por que não nos damos por satisfeitos com a clássica solução do paralelogramo, que considera o experimento científico como a resultante de dois eixos, o dos estados de coisas e o das tendências e teorias?
Segundo esse modelo, se nenhuma força for exercida pelo eixo das humanidades, teremos acesso ao estado primeiro das coisas. Se os cientistas acreditam nisso não sei, mas o seu Luís - afirma Latour - certamente não cairia nessa, pois sabe a trabalheira que deu tornar visível seu fermento e fazê-lo circular entre seus colegas da Academia. O contrário, caso a força exercida pelo eixo das coisicidades fosse nula, resultaria em que nossas sentenças sobre o mundo seriam configuradas unicamente por nossas teorias e paradigmas legadas pelo social. Pasteur, mais uma vez, não daria muita bola para essa assertiva. Como tão lindamente formulou o Latour, Pasteur autoriza o fermento a autorizá-lo a falar em nome dele. Nossa dificuldade em entender o encaminhamento de Pasteur está na relação de identidade que o próprio estabelece entre duas sentenças que consideramos contraditórias: "o fermento foi fabricado em meu laboratório" e "o fermento independe de minha fabricação" são sinônimas para o nosso amigo Luís! Um realismo construtivista nasce aqui!
Deixamos escapulir, uma vez mais, aquele palavrão inicial. Confusão dos diabos esse Latour causa com seus jogos de linguagem! Uma confusão esclarecedora, no entanto, assim como aqueles aforismos incompreensíveis que um sensei lança ao seu neófito gafanhoto, na esperança de que a flecha atinja seu espírito. Para melhor se fazer entender, Latour utiliza de metáforas outras, para além do paralelogramo. Fala do teatro, para mostrar os dois eixos operando ao mesmo tempo; mostra a metáfora do fetiche, que explica o porquê de esquecermos o trabalho que realizamos para completar a obra e de cedermos à sua autonomia; constrói um modelo ótico, visto fixarmos o olhar em coisas independentes; discorre sobre indústria, para falar da realidade como transformação; apresenta o modelo da trilha, colocando toda mediação em termos daquilo que torna possível o acesso às coisas; e, finalmente, apresenta a articulação - sua melhor metáfora - que enfatiza a independência da coisa, revela os dois eixos ao mesmo tempo, toca no experimento como acontecimento histórico e liga a realidade à quantidade de trabalho!
Não obstante, todas estas analogias bonitas estão erigidas no modelo linguístico das assertivas, no qual há o mundo mudo dum lado e o humano falador doutro. O que o Latour propõe não é mais uma engenharia ou metáfora para suprir o vazio existente entre estes dois mundos, mas um chamado "modelo de proposições", proposições estas que não são nem palavras nem coisas, nem um intermediário das duas. Proposições são atuantes (em exemplo, Pasteur ou seu fermento ou seu laboratório ou a Academia...)! Não são substâncias mudas com uma natureza, mas "ocasiões" de contato entre diferentes entidades, que permitem às mesmas modificar suas definições no curso dum evento (em exemplo, um experimento).
No modelo canônico das assertivas, referenciar é fazer a assertiva corresponder a um estado de coisas, embora criar uma tal semelhança seja impossível. A palavra "fermento" não fermenta! Já no modelo de proposições, não se trata de criar uma ponte por sobre o abismo sujeito-objeto, mas de articular (e aqui nos reapropriamos da metáfora da articulação, mas posta sobre um novo terreno). Aqui - espero que já tenham percebido - o Latour apresenta uma lida totalmente diferente para com a linguagem. Se nos aparatos linguísticos tradicionais a mente humana está cercada de coisas mudas, no novo modelo a articulação se torna não uma função humana, mas uma propriedade das entidades e coisas mesmas, ou melhor, das proposições! Quando Pasteur fala, ele não enuncia em palavras a natureza ontológica do fermento, mas "propõe" que consideremos aquele subproduto duma reação puramente química uma entidade viva e autônoma.
Os termos que o Latour utiliza - ação, testes, evento, articulação - ganham nova significância com o modelo das proposições. É graças à artificialidade do laboratório que o fermento de ácido lático se torna articulado, ganhando estatuto próprio devido à Pasteur, seus experimentos, alguns artigos seus, artigos de outros acadêmicos, ações e reações mil. Articular proposições, aqui, não é simplesmente falar. Nós falamos justamente porque as proposições do mundo são, em si mesmas, articuladas! Confuso? Não mais! Complexo? Talvez! Tal modelo coloca uma relação inteiramente diferente da visão tradicional do homem com o mundo; modelo este que, embora de difícil digestão, é muito mais exato no tocante a capturar a atividade científica que a simples correspondência estéril entre um discurso e um estado de coisas de um mundo "lá fora"...
LATOUR, Bruno; “Da Fabricação à Realidade";
In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 148-167.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Menininha de vermelho


Não te amo mais! Grito do fundo de meus pulmões ofegantes. E choro. Lágrimas doces que umedecem o sal da terra. Afundo na lama. Acima de minha cabeça, você. Nas nuvens. Lá, lá longe onde Platão colocou suas idéias. Imagem reluzente, menina escarlatina, deusa da incerteza. Ideal era você. Amava eu sua perfeição. Parecia-me perfeita até demais, diriam os homens de pouca fé. Outros, mais atentos ao chão, diriam que você - tal qual forma geométrica - encaixava bonitinho em meu projeto de mundo justo. Weltanschaaung, como bradam os alemães. Povinho de lingua dura e de argumentação mole. Românticos por demais. Chega um momento em que o pescoço dói, de tanto que olho para as alturas. Por mais longos que sejam seus cabelos, não consigo tocá-los. Cansei! Chuto seu pedestal! Fatalmente, você cai. Se se machuca, não ligo. Estou fatigado demais pra me importar com as dores dum corpo que não o meu. Viro as costas, mas você - chata! - teima em cair em cima de mim. Desconfio que com propósito. Feridas se abrem e resultam numa hemorragia de verbos. Fico tingido de sua vermelhidão. E sinto teu corpo, agora. Deixo de te amar! Independe de mim mas, mesmo se quisesse, não poderia mais te jurar eternidades. Você deixou de ser e passou a existir. Saiu de minha cabeça, escapuliu de meu coração e tomou conta de mim por completo. Não mais amo, mas agora gosto. Gosto de você! De todas as suas inconstâncias, multiplicidades e temperamentos. Qual é a sua!? Fico tentado a perguntar. Num dia, gargalhamos. Noutro, um sorriso-nojinho acompanha teu aceno de mão. É típico desse mundo sensível ser incerto. A bela verdade da sua imagem deu passagem ao frio na barriga que as tragédias e seus finais imprevistos me causam. Troquei a segurança e a calmaria do céu pelas ondulações traiçoeiras do oceano. Não consigo voar, mas nadar eu sei. Desconheço seu intento mas, enquanto meu barquinho de papel aguentar, estarei derivando por aí. Com ou sem você...