sexta-feira, 9 de abril de 2010

μουσική τέχνη

Expressividade e Técnica. Dois modos de operar frente às coisas e pessoas que recheiam e revestem o mundo. Ambas relacionam-se com outra dualidade, figurativa dos modos de como o sujeito se produz nessas operações; a saber, o Amor e a Fé. O Expressivo, em toda a sua dramaticidade profunda, é antípoda do Técnico, objetivo e pragmático; o Amador, criador e criatura de sua própria arte, é enantiomorfo ao Profissional que prega e é pregado pela sua liturgia. Quatro tipologias: o Técnico Profissional, o Expressivo Amador, O Técnico Amador e o Expressivo Profissional; não categorias psicológicas de aprisionamento do pensar mas nomes de ação que representam, retrospectivamente, atributos em pacotes de linguagem. Não conceitos, mas imagens! O que nos aparece como tipos de personalidade deve ser encarado como políticas de conhecimento que podemos agenciar. Para esclarecer este pensamento que acabou de se dar em mim, uso a música - arte das musas! - como norteadora de nossa reflexão.
De início, peguemos o Técnico-Profissional. O mais inteligente de todos! E, como sabem os bons leitores deste blog, isto não foi - necessariamente - um elogio. Assume um repertório padrão. Ele sabe o que deve tocar e o faz muito bem. Estudioso, compenetrado, ordeiro, leva seu trabalho muito a sério. Músico caro! O pianista solo, o violinista spalla, a primeira soprano. O maestro! Sua música é canônica; sua composição, acadêmica. Pensa em claves e sente em escalas. De costas à vida, o maestro é homem erudito. Com um gesticular, o maestro se constrói sujeito unificado de poder, detentor de varinhas mágicas a fazer calar as pessoas e a fazer falar instrumentos. Gramático instrumental! Seu ouvido é absoluto, visto não escutar nenhuma relação fora de seu próprio círculo. Ou quadrado!
Já o Expressivo-Amador funciona numa órbita desconectada às intelectividades do maestro. É um músico das intuições. O maestro se faz músico de platéia ao purificar e afastar sua obra da mesma; o Expressivo-Amador, tomando a via inversa, constrói seu império na solidão dum quarto, mas inspirado pela multiplicidade de afetos que lhe atravessam. É o auto-didata! Músico raro, o auto-didata não segue planejamentos, ementas e objetivos em sua caminhada. Toca sozinho, para si, mas leva o mundo em cada nota que atravessa sua garganta e em cada batida que trasteja seu violão. Tímido, treme frente a um outro. Tem medo das unidades, principalmente quando espreitam em grande número. Toca e, em cada toque, é tocado; compõe e, em cada composição, é destruído e recriado. O auto-didata quase nunca expressa o que os ouvintes lhe pedem, mas sempre toca os seus ouvintes com as músicas que pedem para ser expressadas!
O Técnico-Amador é uma outra figurinha que apresento em meus pacotes de linguagem. Costuma ser, embora nem sempre, uma derivação de um dos dois tipos anteriores. O Técnico-Amador é o músico de vanguarda! Tanto o maestro pomposo que passa a sentir enjoos da altura de seu pedestal quanto o tímido auto-didata que resolve melhor articular as suas práticas. O vanguardista tem a posse dum considerável acervo teórico e duma experiência prática invejável, mas tudo isso só lhe é de valor quando possibilita movimentos. Não gosta de fazer arte sozinho e abomina lugares fechados, sejam pequeninos quartos abafados sejam teatros titânicos. Toca no e para o mundo, mas - longe de fazer de sua produção um produto - é um músico sem público. Inteligente e intuitivo, o vanguardista compõe para um ouvinte ainda por vir!
Por fim, o Expressivo-Profissional. Deste, temos inúmeros exemplares saltitantes por aí e, mesmo sendo o mais numeroso dentre os quatro, é o mais desprezado dentre todos os músicos. O Expressivo-Profissional - dizem - é um preguiçoso lânguido que não possui rigor em suas práticas e não transborda sentimentos sinceros no seu interpretar. Pensemos num luau. É noite, uma lua minguando no céu, uma fogueira que quer se apagar, algumas garrafas abertas de vinho, melhores amigos e totais desconhecidos se acomodando em círculos e - não podia faltar! - aquele cara com um Kashima desafinado a destilar alegria em cada acorde mal feito que executa. O violeiro é odiado pelo maestro por não saborear o conhecimento acumulado que os deuses em forma de homem nos legaram; é odiado pelo auto-didata por maltratar o instrumento com harmonias pobres de vida interior; e é odiado pelo vanguardista por tratar a música como objeto de consumo. O violeiro, no entanto, toca para agregar amigos, selar amizades, sanar desavenças, suscitar risadas, improvisar coros, possibilitar o programa de final de semana. Sem o violeiro, o luau não teria Graça!
O maestro produz música pura mas dá as costas à vida. O auto-didata compõe com seu próprio sangue, mas nunca o faz para fora de seu quarto. O vanguardista cria sons nunca dantes escutados, mas nem sempre se esforça em criar um mundo para acolhê-los. O desprezado violeiro, por sua vez, embora não ligue para estudos, interioridades profundas ou inovações, tá no meio das gentes. É o mais real e vivo de todos os musicistas, embora nem músico o coitado seja considerado! Pobre de sistemas teóricos, intuições sentimentais ou arroubos criativos, o violeiro é alegria pregnante, rico de relações, prágmáticas e articulações. É o verdadeiro sacerdote das musas gregas, a cantar e a encantar as multidões. A cantar e a encantar junto das multidões! Isolemo-nos para intuirmos musicalidade; registremos nossas intuições; tragamos a revolução! Mas que ninguém se esqueça de, no final de semana, fechar livros e anotações, chamar chegados e desconhecidos, abrir garrafas e bocas. O discurso se cala, numa sexta-feira à noite - ainda que chuvosa - para dar lugar à vida...