quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Senhorinha
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Três questões sobre ´Seis vezes Dois´
Pedem ao Deleuze que dê uma resposta mais diretiva, à maneira duma aula, sobre os programas do Godard. Como os percebe, os sente, como explicaria seu entusiasmo para com o programa. Deleuze aceita a encomenda, mas adverte, usando uma fórmula do próprio Godard: "não uma imagem justa, justo uma imagem" (p.53); não a ideologia, mas a prática. E diz o mesmo do filósofo: não idéias justas mas, justo, idéias. Continua. A idéia justa - significativa, dominante, ordeira, estabelecida - sempre verifica algo, ainda que seja algo-por-vir, a revolução! O "justo idéias", enquanto isso, é a gagueira nas idéias, é a questão colocada que faz calar as respostas. Devir-presente. E, sendo assim, o Deleuze sugere duas idéias que se atravessam, uma a outra, nos programas do Godard. A primeira diz do trabalho, e de como há por demais abstração na noção duma tal "força de trabalho", que se venderia/compraria em condições tais que estabelecem seja uma tal justiça social seja uma injustiça social de base. A pergunta do Godard, mas formulada pelo Deleuze: "o que ao certo se compra e se vende? O que é que alguns estão dispostos a comprar, e outros a vender, que não é forçosamente a mesma coisa?" (p.53). Um soldador vende a sua "força de soldador", mas não a sua força sexual, ao tornar-se amante duma senhorinha. Uma faxineira vende horas de limpeza, mas não o trecho musical que solfeja enquanto faxina. Um relojoeiro - pago pela sua "força relojoeira" - recusa pagamento pelo seu hobby de cineasta amador. Diria o relojoeiro que não quer ser pago pelo seu cinema pois "existe uma grande diferença de amor e de generosidade nesses gestos" (p.54). Mas e o cineasta, pago pelo seu ofício? Não o ama, destarte!? E um fotógrafo, que ora paga o seu modelo e ora é pago por ele? Guattari propôs, num congresso de psicanálise, que os analisandos fossem pagos tanto quanto os analistas, visto que, para além do serviço de escuta do psicanalista, há o trabalho do inconsciente do paciente. Godard pergunta, na mesma onda, qual o porquê de não se pagar aos que assistem TV, visto que as mesmas exercem um verdadeiro serviço público, ali. Todas essas questões - imagens - escanteiam a noção de força de trabalho, posto que esta isola o trabalho de seus próprios produtos, do ato criativo no trabalho, do amor ao trabalho. O trabalho não como uma criação mas como uma força produtora de bens e consumos, força abstrata reprodutora de si mesma. A segunda idéia diz da informação. Uma professora, ao explicar uma operação matemática ou ensinar ortografia aos seus meninos, transmite informações. Nada mais improvável que isto, para o Deleuze. "Ela manda, dá palavras de ordem. E fornece-se sintaxe às crianças assim como se dá ferramentas aos operários, a fim de que produzam enunciados conformes às significações dominantes" (p.55). A linguagem não como "meio de informação", mas como um "sistema de comando". A informática criou o seguinte esquema: dum lado, a informação pura, máxima; doutro o puro ruído, interferência; entre ambos, a redundância, informação ruidosa. Deleuze, com o Godard, aponta para uma inversão deste esquema: coloca a redundância no topo, transmissão, repetição, ordens, comandos; a informação pura vem abaixo, como o mínimo necessário para que a ordem seja bem recebida; e, mais abaixo, o ruído. O silêncio. A gagueira. O grito. Um algo que escorre por entre os dedos da linguagem. "Falar, mesmo quando se fala de si, é sempre tomar o lugar de alguém, no lugar de quem se pretende falar e a quem se recusa o direito de falar" (p.56). Assim dispondo a situação, coloca Deleuze o problema: como falar sem dar ordens, sem representar algos e alguéns? E como fazer falar os que não tem esse direito, como lhes devolver os sons, e como devolver aos próprios sons seu poder contra o poder, seu valor de luta? "Sem dúvida é isso, estar na própria lingua como um estrangeiro, traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga" (p.56). Godard questiona duas noções correntes: a Força de Trabalho e a Informação. Mas, Deleuze deixa claro, não se trata de dar informações verdadeiras, nem de pagar bem pela força do trabalho. Grifos do autor. O bom e o verdadeiro apontam para "idéias justas", ele diz, e Godard escreve FALSO do lado delas! Deleuze começa a "bergsoniar", traçando a seguinte história paralela: existem imagens. As coisas são imagens. Mas as imagens não estão no cérebro, na "cabeça". O cérebro, percebamos, é que é mais uma imagem entre tantas outras. As imagens do mundo não cessam de agir, de reagir, de produzir, de consumir entre si. Imagens, coisas, movimento. Idênticos. As imagens, no entanto, possuem um "dentro". São "sujeitos". Entre a ação sofrida e a ação executada (reação) pela imagem, há uma certa defasagem. Essa defasagem é a percepção, é a subtração da imagem do que não interessa. Perceber é subtrair. Existem imagens, ao contrário, que não são sentidas por "dentro", mas como "avesso", imagens capazes de capturar outras imagens, tomando-lhes o poder e centralizando-as. Voz de Hitler, diz o Deleuze! Graças à defasagem, destarte, configuram-se dois movimentos opostos: um, das imagens exteriores, por si mesmas, às percepções; outro, das idéias dominantes, "golpes centrais", às percepções. Num único ato, Godard desdobra-se em dois. Quer tanto restituir a plenitude das imagens exteriores - fazer com que percebamos não menos que a imagem, mas coincidir a percepção com a imagem mesma - quanto tomar da linguagem o seu poder e fazê-la gaguejar, destilando das idéias "justas" uma e outra gota de, "justo", idéias. O primeiro capítulo do Matéria e Memória - obra-prima do Bergson - trata duma querela semelhante, ao tratar a fotografia como já tirada no interior das próprias coisas e em todos os pontos do espaço. Não que Godard seja bergsoniano ou o renove. Melhor dizer que Godard, em sua própria trajetória para renovar a TV, encontrou pedaços de Bergson pelo caminho. Godard e Bergson. E Deleuze. O "e", para o Godard - e para a filosofia deleuziana - é o que importa, ao contrário das embotadas discussões sobre o atributo das coisas, sobre sua existência, suas possibilidades e afins, sempre pautadas pelo ser, pelo verbo "ser", pelo "é". O "e" não é uma simples conjunção, uma simples relação, mas arrasta consigo todas as relações, equilibrando-as e desequilibrando-as todas. A gagueira criadora: "e... e... e...", uso estrangeiro da língua, a se opor ao seu uso conforme, dominante, comme il faut, fundado sobre o ser. Diversidade e multiplicidade a destruir as identidades. Godard diz que tudo se divide em dois. Mas quando fala da manhã "e" da tarde, não diz de um ou de outro, nem de um que vira outro, nem dos dois. A multiplicidade não mora nos termos ou em seus conjuntos, por mais detalhados e numerosos que sejam. Reside, isso sim, no "e", de natureza diversa dos elementos e dos conjuntos destes. A força não residiria num ou noutro lado do campo, mas na fronteira, nesta um-outreidade. Godard quer fazer ver as fronteiras, tornar percebido o imperceptível. Uma fronteira que não é nem um nem outro, mas um-outro, o hífen, arrastando a ambos numa evolução em fluxo, na qual não se sabe quem está em cima ou embaixo, quem vai na frente ou atrás, nem qual o destino de um e do outro. Uma política da um-outreidade é uma micropolítica das fronteiras, a combater as macropolíticas dos conjuntos fechados. A fronteira, o hífen, o "e", "onde as imagens tornam-se plenas demais e os sons fortes demais. É o que Godard fez em seis vezes dois: 6 vezes entre os dois, fazer passar e fazer ver esta linha ativa e criadora, arrastar com ela a televisão" (p.61)...
DELEUZE, Gilles. Três questões sobre ´seis vezes dois´; In: Conversações; Trad. Peter Pál Pelbart; Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 51-61.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Mercado: pontos e encontros
Enquanto conversávamos – eu e meus parceiros de escrita – sobre o que pesquisaríamos no trabalho final de nossa disciplina, foi sugerido o Mercado Thalez Ferraz como locus de intervenção. Vago demais! A escolha duma temática de pesquisa não equivale ao delineamento do objeto de estudo. Diz Narita (2006) que é preciso recortá-la, defini-la, limitá-la para um bom conduzimento da coleta. Falou-se, então, nas senhorinhas que vendiam ervas na praça central. Começamos a bem colocar o problema, embora pouca ou nenhuma experiência anterior tínhamos em relação a tal domínio. Com nenhum conceito a nortear nossas reflexões, sair a campo mostrou-se ação urgente. Fizemos, logo de começo, uma visita em conjunto ao Mercado. Mas aqui eu deixo registrado apenas minhas andanças pessoais, sendo a primeira destas no dia nove de outubro, dois dias depois da visita coletiva de nossa comitiva de pesquisadores.
Chego ao mercado às 13:30. Carrego o sol sobre minha cabeça, mas é o almoço recém-deglutido que mais pesa em mim. Antes de cercar as senhoras e suas ervas no “Thales Ferraz”, resolvo fazer uma andança por todo o Mercado. Passo por um corredor colorido e perfumado por flores. “10 reais o vaso!”, diz a Dona que me nota olhando para um buquê de jasmins. Sorrio e continuo meu caminhar reto, até dar de vista com gaiolas e jaulas empilhadas umas sobre outras. Passarinhos, filhotes de cachorro e um gato com os olhos quase fechados, como que dopado de tristeza. Olho o animal de perto e ponho alguns dedos dentro da gaiola. Ele olha para minha mão imóvel e acaricia seu rosto nela, meio sonolento.
Saio e sigo. A feira de artesanatos, logo a seguir, me lançou na indecisão. Esquerda? Direita? Vou em frente? Retorno? Nem lembro o que escolhi; só sei que rodei, rodei e rodei, meio perdido naquele lugar cheio de matizes. Percebi que estou sendo olhado pelo pessoal do artesanato. Talvez pensem que sou um “de-fora”, visto estar de alpargata e camisa de botão em pleno mercado municipal! Ou, então, estranharam a minha pessoa ter passado duas ou três vezes pelos mesmos lugares. Andar em círculos é coisa de quem está perdido, mesmo!
Turistas e comerciantes almoçando lado a lado; um barbeiro a aparar os pêlos faciais dos homens com uma senhora hidratando os cabelos das clientes na sala vizinha; crianças correndo para dentro das lojas e velhos tentando pô-los pra fora. Resolvi cair fora, também! Coisas demais pra enxergar.
Saíndo do mercado, dei a volta por fora e reentrei no Thales Ferraz. Cheguei perto duma banquinha de ervas e comecei a manusear algumas folhas estranhas. Uma senhora se aproxima; baixinha, de cabeleira loura, poucos dentes no sorriso e muita experiência nas mãos.
– Quer alguma coisa, meu filho?
– Er... Não, não! Mas qualquer coisa, eu chamo a senhora!
– Então, qualquer coisa, eu tô por aqui...
Entrou em sua banca, voltou com uma laranja e, notando que a fruta estava com manchas na casca, a arremessou longe. Entra na sua lojinha mais uma vez – número “cento-e-alguma-coisa-que-não-lembro-agora” – e retorna com outra laranja. Começa a falar sobre limpeza e o cuidado que tinha com comida.
Pergunto eu sobre algumas daquelas ervas à mostra: um toquinho de madeira que “é bom pra coluna, pros ossos e pro sangue”, uns galhos secos que ajudam na filtragem renal e umas bolinhas verdes que são boas contra anemia. Cedro, limpa-pedra, jurubeba. Digo a ela que estou estudando o mercado e que gostaria de ficar conversando um pouco com ela, pra aprender sobre o lugar e ver como é o comércio dali. Ela, sentada e chupando uma laranja, tira uma cesta de jurubebas de cima dum banco e me diz pra sentar e perguntar. Começamos nossa prosa.
Stella Narita (2006) coloca o discurso livre como preparatório para a situação de entrevista, para a utilização de um questionário já estruturado ou para a apreensão de dados quantitativos. No entanto, pela gratuidade com que a Dona começou nossa conversa e pelo voto de confiança que – com este ato – ela me concedeu, resolvi apostar tão somente no discurso livre, querendo não apenas atender meus objetivos de erudito ao confeccionar um relato de pesquisa, mas responder a uma demanda que a senhorinha me expunha no momento de sua fala.
Diz-me ela, D. Maria Luciana, que trabalha por ali a uns 4 anos, e que a banca não era dela, mas da irmã. Olho para o lado e vejo uma senhora de cabelo curto, imponente, uma matrona de avental, a cuidar de artesanatos: cofres, estatuetas, barquinhos, João-bobos a dividirem espaços com folhas, galhos e troncos.
Três mulheres – cariocas, intuo pelo forte sotaque – perguntam entusiasmadíssimas sobre aquelas bolinhas estranhas na banca da D. Maria. Enquanto começam a agenciar seus negócios, dou uma de estrábico e, mantendo um olho na conversa delas, começo a vislumbrar com o olho restante a estante de Maria Luciana. Noto uns pacotinhos estranhos contra mal-olhado. Pergunto sobre eles e ela diz que não acredita nessas coisas mas, como tem gente que acredita, ela vende. Diz que o negócio das ervas é fraco, que o lucro mesmo vem dessas outras coisinhas e do artesanato.
Fala ela que desde que João Alves construiu o mercado de artesanatos, próximo à praia e aos hotéis turísticos, a venda dos produtos caiu consideravelmente, pois o turista – afirma – por ter acesso a uma feira artesanal mais próxima da sua pousada, não visita mais o mercado. A situação, desse jeito, ficava cada vez mais difícil. Coloco, aqui, a Rosane Neves para falar, mas não por academicismo. Essa é uma citação direta, sim, mas a insiro pois a menina trova sobre tais assuntos melhor do que eu poderia cantar. Ao compor versos e odes sobre a construção do mercado de artesanatos, intuo – com o Rosane – que
… é a partir do momento em que certos disfuncionamentos de uma sociedade não são mais regulados de uma maneira relativamente informal no tecido dessa sociedade que podemos falar de uma “problematização” do social. As relações sociais informais não são mais suficientes para resolver tais disfuncionamentos. Assistimos então à criação de alguns equipamentos institucionais e, por conseguinte, de um corpo profissional especializado que passará a se ocupar de tais disfuncionamentos (SILVA, 2004, p.14).
Feirantes postos em ordem pela vigilância sanitária. Assistentes sociais transformando o fluxo do local em geometria. Estudantes psi a lidarem com o mercado enquanto problemática. O mercado é asseptizado, com a separação da feira turística de artesanato das filigranas realmente locais. Os ratos são expulsos, mas junto com os ratos parece que vão-se embora, juntamente, as clientelas. O mercado artesanal levantava um problema a ser abordado. Penso em pesquisar a historiografia oficial da construção e reforma dos mercados e pareá-las com a memória dos viventes. Duplo desapontamento: em primeiro, não encontro nenhuma referência – livro, jornal ou website – ao Mercado fora da simples comunicação turística; e por fim, constato meu pouco tempo restante em campo, o que me fez desistir à busca de discursos conflituosos, desarmoniosos e ambíguos. Fica a deixa para uma futura intervenção.
Entre um e outro cliente, pergunto se ela já almoçou; responde que nunca almoça por ali. Fazia sempre uma merenda e nada mais, pois não gostava da comida do mercado. Percebo o Rafael, um de meus companheiros de pesquisa, se aproximando da banca – eram umas 14:15 – e, distintamente, me despeço de D. Maria. Digo que vou dar uma voltinha pelo mercado, mas que ainda volto. Ela diz que tá sempre por ali se eu quisesse fazer mais perguntas. Saio e começo a dar voltas pelo mercado, com o Rafael.
Atravessamos o corredor de flores e comento sobre o gato solitário na gaiola. Arrodeamos a sessão de artesanatos e, sedentos, tomamos um suco. Lembramos uma nota feita em nossa visita anterior, sobre as lojas funcionarem como espaço de transição entre pontos do mercado: só éramos atendidos caso parássemos dentro do ambiente; no caso contrário, seríamos tomados por passantes.
Decidimos visitar o Sr. Albano Franco e as ervas de lá. Uma coisa que estranhei logo ao entrar foi a feira daquele mercado. A beleza medieval das barracas que se adequam aos contornos da rua e dos movimentos foi substituída pela retidão da ordem matemática. A feira tornada instituição! Este sentimento, que já me afetava na parola de Maria Luciana, socou-me ainda mais forte. Ponho o disco da Rosane Neves na vitrola uma vez mais. Continuamos a andar, ao léu, pelo lugar e, mesmo não tendo parado em nenhum vendedor, noto a profusão de produtos que podem ser encontrados por ali. Sementes e grãos, frutas e leguminosas, temperos e ervas.
Mais para dentro, encontramos uma sessão de pescados e, caminhando um pouco mais, encontramos televisores, relógios, calçados, um caixa bancário do Banese e dois guardas que, embora conversassem entre si, pareciam não prestar muita atenção nos transeuntes. Tomamos a saída lateral do mercado e, voltando ao Thales Ferraz, sentamos à sombra do casebre central de informações. Terminada a visita desta sexta-feira, começamos a conversar um pouco sobre nossas experiências.
Minha segunda e última ida ao Mercado deu-se oito dias depois. Sábado, dia dezessete. Estava agitado e de cabeça pesada, o que não me deixou fixar raízes num lugar só. Logo, não colhi discursos. Só andei, andei e andei um pouco mais. Longe de fazer disto um pesar, considero o meu jugo como suave. A Stella (2006) faz uma rápida e sucinta distinção entre o discurso manifesto e o conteúdo latente dos mesmos. Pega emprestada uma aparelhagem psicanalítica para reflexão nossa. Não encontrei ditos nem registrei escritos, mas esbarrei com indizíveis que corriam na vida mesma do mercado. Não conversei com ninguém, deveras, mas minha andança nervosa e incessante me deixou ver aspectos velados pela linguagem.
Desço do ônibus meio cambaleante – eram quase 14:00 – passo pelo calçadão, atravesso as portas fechadas e cruzo olhares com um mendigo que, logo, desvia seu olhar do meu. Continuo num passo apressado e vejo – nas passarelas do Antônio Franco – mesas, mesas e mais mesas a ocuparem o lugar. Homens bebendo, mulheres conversando, casais brigando, senhores com instrumentos, carne do sol, cerveja Pilsen.
Ando um pouco mais apressado e adentro no Thales. Entro e, quando percebo que tem mais gente por metro quadrado do lado de dentro, penso em sair! Mas só penso. Pela inércia, continuo. Vejo a D. Maria, de avental, e até que desejo falar com ela. Minha narradora oficial. Como bem colocou o velho Benjamin, “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história” (apud Narita, 2006, p.28). Figura rara é o narrador, assim como rara é a D. Maria. Mas, pelo meu estado de ânimo, fico com medo de não conseguir levar adiante uma conversa decente. “Mas que merda! Por que resolvi vir a campo nesse estado!?!?” Confesso que quase bradei isto em plena praça central do Mercado. E, claro, é o mesmo que as senhorinhas e o rapaz – meus convivas no campo – pensaram. Mas segurei a minha onda e continuei. Peço, com carinho, que o Senhor Leitor faça o mesmo.
Acalmei um pouco meus humores e meu passo, e fui até a passarela de flores. Tinha tanta gente indo e vindo, tantas mesas alocadas nos arredores, tantas conversas paralelas, perpendiculares, coincidentes, que não consegui sentir o cheiro das flores. Andei, olhando para uma flor e outra mas, como eu não parava os pés, ninguém parava pra me dar atenção. Bola de neve. Antes de entrar na clareira que leva à sessão de artesanatos, cruzei as gaiolas de animais e, pra minha surpresa, meu amigo felino não estava mais lá. Tinha sido vendido? Morreu? Tirou o final de semana de folga? Falar com os carcereiros seria uma boa, mas ânimo pra falar com gente eu não tinha.
Fui à feira de artesanato. Mais gente! Senhoras abarrotavam uma lojinha de tecidos e confecções manuais, homens com violões trocavam acordes, famílias banqueteavam-se nos restaurantes. Tudo muito ruidoso e movimentado, mas falo no bom sentido, desta vez. Todo mundo muito bem posicionado. Estavam à vontade demais para serem turistas que, geralmente, ficam irrequietos girando lá e cá. Como eu!
Ando, passo pela banquinha de livros usados, encaro um senhor que está afinando um violão numa mesa de bar e saio do mercado, em direção ao beco dos cocos. Dou a volta pelo lado de fora, em direção ao “Reino de Ogum” – meio loja, meio terreiro – mas estava fechado. Parece que os santos também tiram folga ao final da semana.
Volto ao ponto de partida e dou de cara com a alegria figurada naquelas pessoas. Uma alegria corriqueira e cotidiana. E, digo de novo, não é a alegria besta e saltitante do turista. É coisa de gente dali. Gente daqui! Gente nossa, ainda que a gente não seja com eles. Aponto institucionalizações, esquadrinhamentos e territorializações. Mas o bonito é que o espaço não consegue aprisionar a história, o assujeitamento não consegue anular a rotina própria daquela gente e, claro, as práticas políticas não conseguem conter a vida. O Mercado transborda vida! Transborda a ação dum povo que, mesmo preso em coordenadas, brincam e fazem seu próprio uso do espaço dado. Um dado que, assim como as coletas da nossa intervenção, é produção constante de nós mesmos...
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Referências Bibliográficas
NARITA, Stella; Notas de Pesquisa de Campo em Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 18 (2); mai./ago. 2006; pp. 25-31.
SILVA, Rosane Neves da; Notas para uma Genealogia da Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 16 (2): mai./ago. 2004; pp. 12-19.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
A praça e a invenção da razão
No século V, antes do Cristo, a Grécia estava dividida em muitas micro-cidades, sendo Esparta a maior delas, em extensão. Pela fala de François Châtelet (1994), sabemos que todas as cidades compartilham os mesmos deuses, idiomas e traços culturais, embora guerreiem entre si; contudo, a ameaça de invasões bárbaras, pesando constantemente sobre tais cidades, cria condições para o surgimento dum espírito novo a elaborar um novo urbanismo, novas constituições e, mesmo, uma nova modalidade de pensamento, visto as antigas tradições, míticas e religiosas, não bastarem mais para a manutenção das colônias de tais cidades e da relação entre as mesmas. Esse espírito renovador toma conta, principalmente, duma pequenina cidade de menor importância, Atenas, onde surgirá o que, futuramente, chamar-se-á “democracia”, definida pela igualdade de direitos de qualquer cidadão perante a lei, tendo todos os mesmos poderes para intervir e tomar a palavra nas assembléias, decidindo o destino da cidade.
Na antiga aristocracia, as decisões eram tomadas e aplicadas pela nobreza, descendente dos deuses e duma tradição moral e militar. Já na democracia, a palavra é que ganha estatuto nobre e “quem dominar a palavra dominará a cidade” (ibidem, p.16). A democracia ateniense se restringia a seu próprio território, porém. Os bárbaros oriundos da Pérsia, não obstante, invadiram as colônias gregas por duas vezes (490 e 480 a.C.) sendo a mirrada Atenas a cidadela que travou os combates mais decisivos contra tais invasões, em especial na Batalha de Salamina. Atenas, a partir daí, torna-se modelo de governo, e o gosto pela palavra toma conta da Grécia inteira.
Châtelet (1994) usa do termo grego tekhnê, demarcando o sentido duplo a que o mesmo aponta – podendo ser tanto um conhecimento aplicado quanto uma produção original, tanto uma técnica quanto uma arte – para explicar a importância do desenvolvimento da palavra na cidade, acarretando o nascimento dum saber específico: a retórica. Ocupar um lugar numa tal cidade implica, necessariamente, saber falar. Em específico, saber convencer. E, como em geral ocorre, o surgimento duma tekhnê promove o nascimento duma profissão. Platão muito nos fala desses professores da democracia, chamando-os com uma expressão que, em sua escrita, ganhou sentido pejorativo. A retórica, enquanto conhecimento de técnicas específicas, possibilita a existência dum intelectual que sabe falar, dum profissional que domina a linguagem: eis o sofista, pois.
A realidade social grega cria o personagem do sofista, extremamente colado a suas exigências democráticas de saber como convencer o outro. Por outro lado, havia o aristocrata, representante duma tradição gloriosa, deveras, mas envelhecida e não mais articulada às exigências do real. Entre esses dois vetores, podemos situar a aparição duma figura no mínimo curiosa, oriunda – ao contrário dos estrangeiros sofistas – da própria cidade de Atenas. Entra em cena Sócrates que, para o Châtelet (ibidem), é um sofista a seu próprio modo, com a diferença de que não abre escolas nem pede dinheiro aos cidadãos com que trava suas conversas. Fala em nome de seu gênio pessoal, diz.
Sócrates é cidadão ateniense e, como tal, sério cumpridor de seus ofícios na pólis. Sua profissão, no entanto, é falar com seus conterrâneos. Fala por prazer, por lamentar ver seus convivas se entregarem “à imoralidade e ao gosto pelo luxo” (ibidem). Num típico diálogo platônico, podemos ver Sócrates em seus diálogos a desdizer os juízos dos seus interlocutores e desmontar suas argumentações. Fala que, para responder ao que quer que seja, é preciso saber o que está contido na pergunta, conhecer a idéia que nela se encontra e, assim sendo, dar-lhe uma representação adequada. Sócrates inventava o que, em nossos tempos modernos, chamamos de conceito (ibidem). Começa a ser inaugurada a filosofia como a conhecemos, hoje.
Com seus argumentos destrutivos, Sócrates abalava as certezas sobre as quais a cidade ateniense estava construída. Procedia com refutações sistemáticas aos aristocratas, defensores da antiga ordem; aos sofistas, mestres da democracia; e ao cidadão comum. Coloca que o número de votos não faz a verdade. Saber construir um barco ou costurar sapatos não nos torna capazes de dirigir a cidade, dizia. Destruía a argumentação moral do aristocrata, a retórica sedutora do sofista e a logística da própria democracia ateniense. Tornou-se insuportável a todos! Refutava o discurso da autoridade, a retórica do competente e a opinião da maioria. Não é a toa que foi condenado à morte por cicuta.
Platão, através de Sócrates, se propõe a produzir um princípio condutor de toda ação. “Se a razão não governar, a força prevalecerá”. De onde se originou este debate pouco importa, mas no Górgias, de Platão (apud Latour, 2001), ele é apresentado com muita clareza. O que se afigura não é a simples oposição entre razão e força, o direito e o poder, filosofia e retórica, Sócrates e Cálicles, mas o poder de um, o patrício, contra a força de muitos, a massa. Sócrates é irônico quanto ao poder de Cálicles, mas ele mesmo defende e tenta manejar um poder maior, capaz de controlar os “dez mil papalvos”: o poder da igualdade geométrica, o poder da razão, ignorado por Cálicles e pelos atenienses. A palavra filosófica se sobressai aos demais modos de dizer e se constitui como verdade. É ainda mais profundo, notem, visto constituir o próprio conceito de verdade (CHÂTELET, 1994)! Julga não somente os discursos mas, também, as condutas. Discurso totalitário!
É neste cenário disposto que a vida social se inventa. A construção das relações éticas, diz-nos Vernant (2006), na Grécia da antiguidade, passa pela constituição dos espaços públicos a se oporem às inúmeras sociedades e confrarias secretas. Os jogos políticos, outrora restritos à nobreza, ganham a praça e tornam-se controvérsia pública. A palavra perde seu estatuto ritual e se torna instrumento de debate. As leis, ainda que figurem como superioridades a guiarem o social, preservam um fundamento demótico atento às transformações e nuances da vida na pólis para a elas se adequarem (MACHADO, 1999).
Essa democracia, libertária e cidadã, passa a não suportar algumas desigualdades e incoerências que ganharam atenção pública, como a escravidão numa cidade que pretende representar o exercício ético da virtude política (VERNANT, 2006). Essa crise na pólis grega, iniciada no século VII e prolongada até os anos seiscentos a.C., é caracterizada por uma notável discussão sobre os sistemas a regerem nossos valores e o mundo. Nos séculos V e IV pré-cristãos, identificamos um deslocamento na atenção da filosofia, tornando as questões cosmogônicas e geométricas de outrora submissas às discussões éticas, às teorias políticas e às epistemologias. A cidade grega inventa a dialética filosófica que, como vimos, anseia produzir discursos universais e totalizantes. Verdade. Mas, ainda assim, o discurso sai das academias esotéricas e das confrarias aristocráticas para ganhar a praça pública, seja a praça do sofista, o bom falador, seja a fala do filósofo, missionário do verdadeiro...
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CHÂTELET, François; A Invenção da Razão; In Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël; trad. Lucy Magalhães; Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editora; 1994; pp. 15-33.
HERODOTUS; Diary of Xerxes' campaign; disponível em http://www.livius.org/he-hg/herodotus/diary.html.
LATOUR, Bruno; A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson César Cardoso de Souza; Bauru: EDUSC; 2001.
MACHADO, Leila; Ética; In Barros, Maria Elizabeth; Psicologia: questões contemporâneas; Vitória: Ediufes; 1999.
VERNANT, Jean-Pierre; As origens do pensamento grego; trad. Ísis Borges da Fonseca; 16ª ed.; Rio de Janeiro: Difel; 2006.
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Centro de indeterminação
Que contraditório afirmar-se um especialista na obra deleuziana! Platão permitiria isto com a sua trajetória, já que é um pensador das identidades e semelhanças. Homem de idéias! Mas o Deleuze, que prima pela diferença e pelo movimento, pelo afeto e pelo fluxo, não se sentiria muito feliz ao me ouvir falar em "fases da trajetória", "unidade do pensamento", "leituras iniciais", "sistema deleuziano", "conjunto da obra" e outros pecados que cometi no parágrafo anterior. Ganha um doce quem descobrir a todos! E ganha uma caixa de chocolates inteira aquele que já sacou aonde esta postagem pretende chegar. Mesmo que o erre no final, pois é esta potência do falso mesma que o Deleuze pontua ao caracterizar o pensamento. Não o substantivo, mas o verbo. Pensar! E verbo sem pronome, este. Para o Deleuze, as coisas se dão por dom ou captura. Imagem bonita. Diz o menino que a leitura dum livro de filosofia em muito se assemelha à escuta duma música qualquer. Ou a música nos convém ou não nos convém. Simples complexidade. Posso, muito bem, submeter meu corpo a uma ascese severa que me possibilite - eu, brasileiro, nordestino, classe média - a gostar de, sei lá, música clássica italiana, cançonetas do renascimento, rapsódias polonesas, estudos russos. Mas julgo muito difícil entrarmos em contato com a diferença e não lhe sermos indiferentes. A menos que, num e noutro ponto de sua trajetória, a música, o pensamento, o movimento nos capturem e nos levem com ele. Enquanto para a tradição mais carola da filosofia, o pensamento seja uma faculdade capaz de representar e represar à sua própria maneira o fluxo do real, como uma aldeia a se aproveitar das margens férteis do rio, em Deleuze intuimos um pensamento que é, ele mesmo, o rio a arrastar, em sua corrente incontrolável, os corpos que habitam as suas margens. Pensar, pois, é realizar encontros. Seja na arte, na ciência, na filosofia. Lembro de meus tempos de católico romano - a uns 5 anos passados, mas um passado que não mais parece me pertencer - e da força que me constrangia a buscar um embasamento melhor encadeado para as proposições que já eram verdades em mim. Descobri o Platão. Seu mundo de idéias oferecia-me um correlato perfeito da noção de paraíso, típica da cristandade ressentida. Li o Fedro, o Fédon e a República antes da minha adultescência, lá encontrando um bom espaço para repousar meu corpo. Mas o pensamento não para nunca! Movimento incessante. E mesmo tendo encontrado no Platão um bom amigo - daqueles cujo vocabulário tomamos de empréstimo e tudo o mais - o fluxo da vida levou-me a outros lugares. Conheci, por acidente, o Jung. Sua teoria dos arquétipos em muito se assemelhava aos personagens conceituais da fantasia medieval, que eu conhecia dos jogos de interpretação e da literatura inglesa. Enganado pelo caráter "RPGístico" de sua obra, acabei encantado pela sua psicologia profunda, numinosa, quase mística. Na mesma época, mantive relações com o espiritualista Huberto Rohden, a quem muito devo até no estilo de escrita. Esbarrei-me, em posterior, nalguns escritos sobre o príncipe Sidarta. Buda informe. E, com ele, fiz nova parceria, tentando - inclusive! - apresentá-lo a meus velhos convivas. Não se deram muito bem e, com o tempo, comecei a andar mais com o Sidarta, que me apresentou novos amigos. Krishna e Lao-Tsé, seus nomes, embora o Platão ainda vivesse em mim, de alguma maneira. Nesta mesma época, entro em contato com os honrados samurais e sua ética. Depois de conviver com essa galerinha de olho puxado por algum tempo, minha permanência nos espaços da igreja romana se tornou insustentável. O pensamento em mim demandou a construção de novas espacialidades, ainda que inomináveis em mim. Dentro da universidade, não consegui estabelecer cumplicidades a respeito do Jung. Foi deixado de lado, então, e deu lugar a outras amizades. Veio o Heidegger, o Foucault, os pré-socráticos. E, claro, o Bergson, que desde o 2º período letivo do curso de Psicologia me acompanha, mas só em recência começou a encarnar em mim. Com o Bergson, o Nietzsche, os sofistas, a Análise Institucional pós-Maio de 68, o Bruno Latour, começo a pensar o pensamento não como uma faculdade do eu, à maneira de um Descartes e sua mente-coisa-pensante, mas como um devir ininterrupto de homens e coisas, sendo a consciência, o eu, um simples relé dessa rede. Só depois dessa história toda é que o Deleuze, antes um ininteligível filósofo francês, ganhou sentido e vida em mim. É a trama tecida que sustenta o personagem e seus diálogos. É a memória que possibilita e dá suporte a uma matéria. A história-de-mim produziu um corpo capaz de suportar algo do Deleuze, assim sendo. Dizer do pensamento como um fluxo do real é um meio-termo entre a faculdade do juízo cartesiana e o pensamento acentrado esquizofrênico. O eu é como que um cristal do tempo, um fractal a recontar, a todo momento, a história do todo a lhe originar. Deleuze me diz de mim, de minha história toda. O mesmo do Bergson. E o mesmo do Platão, aquele mesmo lá no início da trajetória. Cada ponto que nossa inteligência demarca é um tijolo a carregar toda a estrutura da casa e a reinventar a história do universo em nós, cada vez que a contamos e recontamos. O eu é fruto da trama do mundo, é seu centro de indeterminação, visto não ter um passado definido, passado-baú-de-lembranças, nem um futuro determinado, visto ser acumulação da história e consequente criação de si mesmo e do universo. Sou parte do mundo, mas sou o mundo em sua plenitude, ao mesmo tempo. Sou imagem do mundo e filho da sua imaginação. Penso, logo sou, diz o outro. Infere, do pensamento, uma unidade sólida e definida a lhe servir de causa. O eu como verdade indubitável, como realidade clara e distinta em si mesma! Delírio de grandeza por excelência é o eu achar-se alguma coisa, não sendo - em verdade - coisa alguma. O mundo é que pensa! Não é de uma Psicologia que precisamos, mas duma Psicopatia; não duma ciência fria para bem delimitar as partes do todo, mas duma ética afetiva que nos obrigue a tomar posição diante da diferença. Deleuze sabia disso. E o Bergson. Nietzsche também, com toda a certeza. Talvez o Platão - mentiroso político! - também o soubesse, mas rendeu-se aos confortos da identidade. Ficou na mesmice...
sexta-feira, 8 de outubro de 2010
O erro de Husserl
sábado, 2 de outubro de 2010
Comme il faut
quarta-feira, 29 de setembro de 2010
O pensamento, temporalidade e a política de imagens
Um ano em 10 minutos. Uma contração temporal – precária, sempre precária – se dará aqui, conosco. Bloco de espaço-tempo bergsoniano. Dispenso fotogramas, vídeos ou qualquer outro recurso de imagem, para que a própria fala se configure como imagem disparadora. Pois bem. Essa minha fala, fala em mim, é produto da pesquisa Produção de imagens e os modos de imaginação: pensamento, cinema e contemporaneidade, vinculada ao PIBIC, que visou analisar processos de produção-consumo de imagens, articulando-os ao acionamento da imaginação no contemporâneo. Procuramos criticizar o pensamento e os modos de produção da atividade cinematográfica contemporânea, demarcando, por fim, a disposição de encontro com um cinema que busque se constituir como uma estética que permita a coexistência temporal. Bergson, mais uma vez.Como parte desse projeto de pesquisa, foi ofertado – no 2º semestre de 2009 – a disciplina Tópicos Especiais em Psicologia Social e Institucional, na qual todos os envolvidos nesta pesquisa tomaram parte. Como objetivos a serem atingidos em sala de aula estavam o compartilhar experiências e leituras do cinema contemporâneo, discutindo sobre a produção de imagens e dimensionando, assim, possibilidades de imaginação.
Nossas conversações em sala de aula transbordaram num espaço de registro e de produção coletivos – a saber, um weblog aberto, que servia tanto como dispositivo acadêmico, visto que seriam as postagens no blog usadas como sistema de avaliação, quanto um lugar de discursos e discussões, pois o sítio eletrônico servia como extensão das prosas disparadas em sala de aula.
Esbarramo-nos, tanto em sala quanto no blog, com filmes que confortam e põe soluções; e filmes que colocam mais perguntas que respostas. Duas modalidades do fazer cinema: películas que apertam o coração e películas que retiram o chão. Trabalharemos nisto, mais adiante. Um desvio de percurso, agora. Luis Antonio Baptista, num dos sublimes capítulos de seu A Cidade dos Sábios, discute a condição de escuta em narrativas onde o que está em jogo é a fabricação do indivíduo. Fala duma escuta clínica, definida pelo processo de ensurdecimento da realidade histórica do acontecido, buscando dar conta do que seja o verdadeiro no evento mesmo. Em posterior, aponta uma escuta solidária, marcada por uma relação, na qual os sentidos e encaminhamentos são frutos duma realização comum de forças e interesses que trabalham coletivamente.
Um outro modo de apresentar essa discussão é apontar para os processos de produção que individualizam as experiências do viver e os modos de subjetivação marcados por uma política da coletividade. Entretanto, essas duas lógicas têm dinâmicas conflitantes nos modos de operar no tempo e no espaço. Esse conflito se revela nos termos que já dispomos: como processos que apertam o coração ou que retiram o chão. Ao invés da audição, no entanto, problematizamos aqui os modos de visão.
Cabe a mim, aqui, alguma definição desse olhar para bem colocar este problema. Poderíamos tomar o olhar como algo que produz intencionalmente o mundo e daí outros subsequentes olhares que recebem e assimilam esse mundo. Nessa relação, teríamos um super-olhar – olhar privilegiado – produzindo os modos de olhar, enxergar, ver. Um grande olho, que se faz e se quer verdadeiro, produzindo olhos. Decidimos, no entanto, por outra expressão que pontua melhor o nosso plano de experiência. Resolvemos trabalhar com a noção dum olhar parcial como força que participa dos processos de produção de sentido. A ele, designamos a expressão olhar precário.
O olhar precário possui essa sina, eterna seara, de não se bastar, e com ela pode encontrar aquilo que seja capaz de potencializar ainda mais a parcialidade do seu alcance visual. Ou seja, o incremento da sua insuficiência, da sua precarização. É olhar que possibilita a invenção das imagens que mira e não sua decodificação. Bruno Latour nos diz: o ato de conhecer – melhor dizendo – o ato de produzir saber não está no registro do transcendental sujeito conhecedor, nem na imposição à realidade pela coisa mesma a ser conhecida. O olhar é fruto de articulações coletivas, de encontros e colisões entre homens e coisas, humanos e não-humanos. É, portanto, necessariamente precário.
A precariedade do olhar soa e ressoa como condição para uma política por intercessores. Deleuze aponta para um modo de precarização criativo e parceiro nos modos de composição do mundo. Diz que esse olhar se opõe aos pré-estabelecidos, às formas colonizadoras. Fabulação dum povo que ainda não existe. Parece emergir, daí, a questão de como algo que ainda não é pode resistir a aquilo que já é. Vejamos. Com Nietzsche, aprendemos nós a buscar encontros e não uma extensão. Não se trata de interpretação, mas de maquinação. O que quero dizer, ainda com Nietzsche, é que antes da emergência de uma vida instrumental, havia a vida, em qualquer tempo. Antes do super-olhar, olhos. A imagem que pretendo construir: a vida normativa é quem resiste ao olhar precário, no sentido da invenção da vida.
Caio no olhar total, agora. Olhar, este, que busca através da instrumentalização do seu próprio foco ultrapassar a sua condição de precariedade. Um olhar que busca se dispor como “O Olhar”, com aspas, “O” maiúsculo e tudo o mais, subvertendo a sua singularidade perceptiva por um modo de identificação persecutório. Panóptico. Máquina de Visão. Foucault e Virilio. Um olhar com razões que buscam se estabelecer antes da experiência do ver, para que o ver seja aqui o que se permite enxergar, aquilo que vai se dar as vistas, o verdadeiro.
Em resumo. Cabe, aqui, a crítica entre as forças que pontuam a condição de uma totalidade, ainda que finita e arbitrária, para as experiências do ver, o que definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado, o que tomamos por olhar precário. Como campo para este problema, tomamos – repito! – o cinema e duas experiências estéticas: as que apertam o coração e aquelas que retiram o chão.
O cinema como máquina que reforça; ou acusa essa condição de controle. O cinema como um entretenimento que ativa uma experiência sensório-motora; ou o cinema que se propõe uma dimensão estética que aciona possibilidades de diferença, que busca outra dimensão temporal que não o aqui-agora, demandando assim a criação de outras articulações do real. Produção de permanências ou jogo de descaminhos. As forças que trabalham por uma captura sentimental o fazem atuando como máquinas de repetição. A sua linguagem qualifica-se pela capacidade de síntese que uma experiência estética possa produzir. O cinema-que-aperta-o-coração assume uma dimensão industrial no seu fazer, fabricando experiências áudio-visuais voltadas para demandas sensório-motoras, que funcionam ao mesmo tempo de modo genérico, quando tomando seu público por conjunto, e também particular, quando viabiliza uma sensação de intimidade com o indivíduo, que se permitira uma absorção sentimental com aquilo que passa na tela. O filme de coração apertado é muito mais um caso que uma narrativa. Um exemplo que uma experiência. Não maquina, mas diz do movimento. História que identifica, visto ser história do indivíduo. Logo, história possível de cada um de nós.
O outro modo de cinema que disponho, aqui, é o cinema-que-retira-o-chão. Esse cinema atua noutra dimensão política, se posto em comparação com o cinema-que-aperta-o-coração. Retirar o chão é como que demandar desterritorializações, em oposição às zonas de conforto configuradas pelo cinema sensório-motor, anunciando um convite a outros possíveis territórios. É investir num tempo não disposto no instante, mas marcado por uma política do futuro do pretérito, por uma história efetiva. Nietzsche-Foucault. O filme sem chão mais desmancha que edifica, mas um desmanche que não configura dano. Nele, o imaginado subjaz ao inusitado.
O olhar precário busca, devido a sua percepção parcial, pares para que uma visão se dê. É na parcialidade e no encontro que se dá. O super-olhar, modalidade de exercício do olhar precário, se quer absoluto, tal qual a máquina de visão do Virílio que busca a produção dum sentido de totalidade. Pretensioso, o super-olhar quer estar em todos os lugares e a tudo ver. Ambicioso, quer ver os fatos e as vísceras. O super-olhar enquanto máquina de instantâneos quer representar o real, contrapondo-se às impressões inventivas que os olhares precários, em aliança, costumam pintar. Que modalidades de encontro são possíveis é a ocupação do olhar precário. O cinema voltado para uma sensibilidade sensório-motora, entretanto, funciona como fomentador desse desejo de totalidade do olhar.
Películas que apertam o coração e que retiram o chão. É a quarta ou quinta vez que disponho esse binarismo. Fala precária, esta minha. Não se trata, porém, de análise dos filmes – este é este, aquele é aquele – mas sim uma consequente aproximação dum campo de estudos que investe num modo outro de produzir olhares. Cabe-nos atentar para uma lógica problematizante, temporalizante, e buscar encontrar encaminhamentos de invenção em nossos encontros com modos outros, de abertura a uma produção – cinematográfica, psicológica, filosófica, que seja – que suscite olhares precários e ansiosos no hoje...
Fala que proferi, hoje mesmo, no vigésimo encontro de iniciação científica da UFS, a respeito da pesquisa "Pensamento, Cinema e Contemporaneidade", que participei durante o segundo semestre de 2009 e o primeiro de 2010. A pesquisa ganhará continuidade e, desta vez, investigará o pensamento deleuziano no que tange a questão do cinema, do tempo e do movimento e, num momento posterior, procurará dimensionar estética e politicamente o Cinema Novo em relação ao cinema clássico e de produção em escala industrial, focando a produção cinematográfica e literária do Glauber Rocha. Vamos nessa, então...
sábado, 25 de setembro de 2010
Herói
Qual não foi a minha surpresa quando, em uma de minhas visitas diárias a um site de cinema cult [aka. um blog para cinéfilos chatos, pseudo-intelectuais, metidos a besta e arrogantes] encontro, para download, um filme com o Jet Li. Herói, o nome. Franzo a sobrancelha, num sinal de incompreensão. Vejo a ficha técnica do mesmo: filme colorido, lançado em 2002, uma hora e meia da tela inicial ao crédito final, diálogos em mandarim, classificado como Ação e Drama e dirigido por um tal de Yimou Zhang. Parece ser mais um daqueles Wushia, que sempre me desagradaram pela irrealeza dos seus movimentos. Coloco para baixar, motivado por um elán-curiosidade, e faço uma aposta silenciosa de que algo bom está a me esperar, por ali. O filme começa. E termina. De A a B. Entre os pontos, entretanto, muito se deu. Tudo se deu!
Recebam, agora, toda uma saraivada de palavreados, xingamentos, gesticulações e correlatos enquanto eu tento pintar o filme através da escrita. Não os porei, aqui, porém. Profanariam o silêncio de Herói. Há pouco diálogo, mas muito é dito. Há muito movimento, mas poucos moventes. Quase não há forma, mas a cor abunda. Herói é filme pra ser visto. Necessariamente visto! Sua fotografia é radiante, multicolor, pluritemporal. Poucos corpos, mas que irradiam paletas inteiras de cor. Da cor que cega ao incolorido. Seus personagens são mundinhos vastos: a bela Neve Flutuante e o austero Espada Quebrada, a menina Lua e o tranquilo Céu, o grande imperador Qin e o protagonista Sem Nome.
Herói é um filme informe. A cor precisa de extensão, mas não dum corpo pra existir. O diretor Zhang, genialíssimo contador de histórias, jogou com a regra até o seu limite, levou-a ao extremo num alternar saltitante entre combates voadores e diálogos soturnos, histórias de amor e casos de traição, assassinatos e sacrifícios, claridade e negritude, águas calmas e chamas trêmulas, espadas tensas e penas viris. Herói me salvou. Mostrou que ainda posso ter esperanças para com o cinema, para com a ação, a verdadeira ação criadora na sétima arte! Pouco sangue é derramado no filme, percebo. Mas o filme é violento, mesmo que não o pareça. É violento, pois nos coloca no próprio ondular zigue-zagueante da matizada narração. Uma hora e meia de Duração, de Tempo, de Violência. O corpo do espectador, de Sem Nome, dos soldados do imperador são destruídos no violento embalo da poética das cores de Zhang, e somos todos imersos na caótica ordem dos opostos. Não é dialética. É a escrita chinesa, meu amigo. Esgrima e caligrafia numa mesma mão. Espada Quebrada o sabia bem. E sabia de cor...