domingo, 19 de abril de 2009

Princesinha do Sul

Eu te vi, pela primeira vez, no meio das gentes. E, confesso, você não me atraiu. Uma menina bonita, é verdade. Muito bonita! Mas nada além disso! Já pronunciei discursos em tua presença, já te olhei em teus olhos pequenos, já avistei teu sorriso comedido, mas você não conseguiu me tocar. Eu - orador da multidão, músico da platéia, homem da cátedra - não te percebia. Pequenininha. Furtiva. Silenciosa. Mas você falou! Falou e, diante da harmonia aveludada de seu canto, eu só pude calar! Calei porque, naquele momento, nada me era mais importante que o tom da sua conversa, o timbre da sua terra, a cadência de suas vogais. Então, eu te vi! E, desta vez, eu é que apreciava tua voz de nereida, embebia-me no mel de teus olhos e me ofuscava no teu riso! O orador gaguejou, o músico desafinou e o homem tornou-se garoto! O velho sábio foi derrotado pela menina bonita que, sendo perguntada sobre istos e aquilos, respondeu com o silêncio típico das águas profundas. Ela bagunçou os cômodos de sua casa sem pedir permissão! Jogou seu vinho velho sem consentimento! Ensinou-lhe um jogo novo sem nada fazer. Você, menina, nada fez! E neste nada fui encantado. Sugestionado. Enfeitiçado. Seus versos dançam como colcheias mágicas a me elevar de meu chão. Longe da tua música, fico desesperado por não poder te tirar pra dançar. Perto de teu corpo, tremo e não consigo acertar nenhum dos passos que planejei. Você corre, e eu muito me esforço pra - perto de ti - manter o fôlego. Salta, e eu me concentro para manter os meus pés no chão. Voa, mas eu tenho medo de altura. Medo da queda. Medo do sangue. Mas não importa! Desta vez - ao menos, desta vez! - permitirei me machucar...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Verdade e Poesia

Filósofos e Sofistas. Este combate – que a nós soa maçante e enferrujado! – revela que já entre os helenos clássicos havia uma certa preocupação com a veracidade do conhecimento. Os amigos da sabedoria, detentores da Epistéme e da Alethéia, da boa ciência e da verdade imortal, acusavam o movimento sofístico de perversores das belas idéias. O sofista, para o bom filósofo, era um exímio retórico, um melífluo apaixonado e apaixonante que, através de poesia, convencia os homens das mais diversas e contraditórias inverdades. Por faltar ao sofista – brada o sábio! – o compromisso com uma boa lógica de pensamento e com a verdade certa que ela – invariavelmente! – levará, o filósofo assume-se um guardião dos valores eternos!
A crítica sofística à filosofia é, no entanto, muito mais contundente. Se os filósofos possuem um berço helenístico, os sofistas são nômades desgarrados; viajantes desapegados cientes da relatividade das etiquetas. Se o sofista é acusado de frouxidão epistêmica, ele acusa o filósofo de expositor-impositor de verdades. O filósofo – e agora é o sofista que brada! – é um mantenedor de sistemas, um justificador das opressões, um teórico aliado ao poder. É o filósofo – portador da centelha divina reveladora de verdades – que conceitua, formula, cria. Diz como as coisas são! E, por assim serem, definem como as coisas sempre foram e como provavelmente serão! O filósofo, por mais metafísico, abstrato e teórico que seja, está sempre afetando o real, lidando com corpos e pondo práticas em movimento.
A poesia sofística, neste perspecto, é que se apresenta como crítica do real, como condição de possibilidade para saborear o mesmo em suas facetas diversas. Valoriza-se, aqui, não a erudição im-pressa no livro, mas a “viagem” que dela fazemos, ex-pressa em nossos saltos e danças. Utiliza-se – sem temor! – saberes ditos inferiores, periféricos, marginais, excêntricos, ativando um conhecimento que não se pretende universal, mas assumidamente local e taticamente constituído. Trata-se muito menos da formulação dum saber dito relativo do que uma chacoalhada nos alicerces do estabelecido. Essa poética genealógica não objetiva fundar um saber mas, isto sim, descentralizar os efeitos de poder que subjazem um discurso válido, verdadeiro, científico.
Poderíamos nos perguntar, então, sobre o poder. Qu'est-ce que le pouvoir? Esta, no entanto, é uma pergunta de filósofo! Soa-nos muito melhor a canção dos mecanismos, a sincronia das disciplinas, a melodia técnica. Perguntamos, destarte, não sobre o poder, mas sobre seus efeitos e relações nos muitos níveis, domínios, planos e extensões que nos atravessam.
O poder, visto que fundado e fundamentado num saber dito absoluto, é necessariamente repressor de outras lógicas e conceitos que não o reconhecidamente absoluto. Poder enquanto desdobramento das relações de dominação, justificado por um saber que não finda a guerra mas, ao contrário, a funda!
A relação do poder com o saber – da soberania com a verdade – nos apresenta um terceiro ponto em nosso nada eqüilátero triângulo: o direito! O edifício jurídico, essencialmente, é encomendado pelo rei, para servir tanto de instrumento quanto de justificação de seu poder divino. O discurso legal tanto legitima a soberania quanto nos condena à obediência. Não a obediência do revoltado, do escravo e da criança, mas a acomodação sutil e sorrateira que nos forma, molda, cria. Não falamos do rei em trono dourado e do conselheiro com cetro de marfim, mas de seus muitos súditos, camponeses, menestréis, torturadores. Não se trata do centro, mas da margem; não da causa primeira, mas dos efeitos últimos; não o poder centralizado, mas seu desvelamento nas margens. Tal qual menino faceiro a tomar sua sopa pelas beiradas, mas sem nunca chegar ao centro.
A fala do filósofo, do sacerdote, do conselheiro real, é sempre carregada de lógicas discursivas produtoras de verdades. Lógica, hoje, figurada por médicos, psicólogos, pedagogos e demais detentores duma visão esclarecida da realidade. A medicalização de nossos comportamentos, a definição de nosso funcionamento normal, a educação ideal para nossas crianças. A própria normalidade só faz sentido quando se fixa o ponto central. A verdade! Uma verdade, um saber, um poder que não é coisa a ser possuída por alguns virtuosos a nos oprimir, mas que atravessa todos os corpos, do imperador ao coringa, num jogo de valoração do qual, aparentemente, não se pode fugir. Claro! O que se propõe não é uma guerra contra o direito, a soberania, a medicina. Quer-se, apenas, apontar em direção a um novo direito – antidisciplinar – livre de toda e qualquer dominação e soberania...

domingo, 5 de abril de 2009

Ponto de Mutação

Sonia é uma física que, desiludida com a utilização de suas pesquisas em projetos militares, isola-se numa ilha-vilarejo francesa para repensar suas práticas. Thomas é um poeta nova-iorquino que, não suportando o lifestile mercantil e capitalizado, refugia-se em Paris para refletir sobre sua profissão. Jack é um político que, tendo perdido as eleições para a presidência estadunidense, resolve passar uma temporada na França para problematizar as suas atuações públicas. Uma cientista. Um artista. Um político. Uma resolutora de problemas. Um criador de agregados sensíveis. Um agenciador de conceitos e teorias. Sonia, Thomas e Jack figuram, na película Ponto de Mutação, não somente como participantes deste ou daquele paradigma de percepção do real, mas como representantes mesmos de suas categorias puras.
A trama – curiosamente – se desenrola na França, terra de Descartes, pai da matemática e da filosofia modernas, ambas bases do pensamento científico na modernidade. O cartesianismo embasa não só nossos fazeres científicos, mas toda a nossa percepção do real. Vale salientar, entretanto, um fato pueril, ao menos em aparência: todos os protagonistas estão em crise! Problemas com os filhos, casamentos fracassados e conflitos de meia-idade apenas velam uma crise maior que os envolve, resultante do questionamento de suas funções mesmas e, conseqüentemente, de si mesmos.

Nosso saber tradicional é empacotado, dividido, espartilhado. A ciência cuida dos pensamentos ideais; a arte, dos sentimentos viscerais; e a política trata de bem agenciar todas estas coisas, como realidades postas e dadas. O encontro da ciência, da arte e da política na terra de Cartesius não nos soa como fato coincidente, mas como uma discussão profunda na pedra angular do conhecimento.

O que o filme propõe é uma complexificação desta pretensa simplicidade das matemáticas, uma sinceridade epistêmica, onde cientistas, artistas e políticos reconhecem as limitações de seus saberes. Propõe-se uma ciência que é arte a ser contemplada e política a ser agenciada; uma arte que é ciência de si e política do mundo; e uma política que é práxis e theoria de nossas belas artes e boas ciências.

Podemos, facilmente, casar a obra de Capra com o discurso do Boaventura, principalmente no tocante à emergência duma nova percepção dos nossos saberes e fazeres científicos. A superação da dicotomia sujeito-objeto, a crítica à especialização e a proposição dum saber holístico são três pontos que se atravessam em ambas as discussões.

Por ser erigido sob a matemática cartesiana e a filosofia mecanicista, o saber moderno é quantitativo, categórico e pretensiosamente universal, tornando o conhecimento das coisas uma medição rigorosa das mesmas. Tal percepção, por nos legar um método capaz de bem conhecer o real, acaba criando um homem solipsista e esquizóide, independente da natureza à qual ele pretende prever e controlar. Homem, sujeito puro e transcendental, o que justifica toda uma manipulação desenfreada do mundo e, destarte, de outros homens!

Tal aferição rigorosa da natureza também tende a formalizar e sectorizar nosso conhecimento, por emular o formalismo matemático. Ciência pra lá, arte pra cá, política pra acolá, religião pra além... Ainda assim, tende-se a espartilhar o saber da natureza – e a própria natureza, no processo – dentro de tais setores! Ramificações e subdivisões que se assemelham muito menos a uma orquestra sincronizada do que a nativos de diferentes países presos numa praia deserta.

O conhecimento proposto em uníssono por Capra e Boaventura é total e, por ser total, é curiosamente individualizado. O novo cientista é plural, inventivo e pouco categorizável, assim como a sua produção de saber, que é o transbordamento de si no mundo. A produção de conhecimento como auto-biografia, posicionamento de si em relação às coisas.

Anteriormente posto, o Peixe Preso dentro do Vento – fisgado pelo Pablo Neruda e declamado por Thomas ao final do filme – nos revela uma verdade de difícil ruminação. Invisível, de tão óbvia que se nos aparece! Da mais excelsa filosofia ao mais gracioso dos poemas, da mais formal lei científica à mais radical transformação social – enfim! – toda a nossa produção de saberes só faz sentido, só cria um sentido, quando nos torna – individual e coletivamente – mais felizes!

Neruda nos mostra, através de cornucópias e madrepérolas, que nossos saberes sobre o real pouco tem de ver com o real per se. As representações que fazemos do mundo são – justamente! – isto! Re-presentações! Modelos ideais que são presentificados vezes e mais vezes, sempre que por eles chamamos, necessitamos, clamamos! Re-petição!

Falar sobre vastos oceanos e profundidades abissais é, tão somente, falar sobre eles. Por mais rigorosas que sejam nossas medidas, por mais adjetivadas que sejam nossas descrições e por mais funcionais que sejam nossas teorias. A sapientia não corresponde à catalogação e manipulação de culinárias e mais culinárias, mas sim dum saborear sutil – vivo! – do mundo e de nós. Calemos sobre o mar! Deixemos que as lagostas e as medusas teçam suas próprias práticas e contemplações sobre si mesmas. Deixemos que vivam...

Peixe Preso Dentro do Vento

Tu perguntas o que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
E por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
'Quem as algas apertam em seu abraço...', perguntas
'mais firme que uma hora e um mar certos?' Eu sei.
Perguntas sobre a presa branca do narval
e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador
que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano sabe isto:
que a vida, em seus estojos de jóias,
é infinita como a areia incontável, pura;
e o tempo, entre uvas cor de sangue
tornou a pedra dura e lisa,
encheu a água-viva de luz,
desfez o seu nó,
soltou seus fios musicais
de uma cornicópia feita de infinita madrepérola.
Sou só a rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão
e de dedos habituados à longitude
do tímido globo de uma laranja.
Caminho como tu,
investigando a estrela sem fim
e em minha rede, durante a noite, acordo nu.
A única coisa capturada é um peixe preso dentro do vento.

Pablo Neruda (1904-1973)