domingo, 29 de março de 2009

III. O Paradigma Emergente

A configuração dum novo paradigma, a ser exposta, é um exercício de imaginação especulativa. Uma especulação, claro, baseada nos sinais de crise que o paradigma atual revela, mas nunca determinada por eles. Tal revolução científica, numa sociedade tão impregnada de ciência, revela-se uma verdadeira revolução social.
A dicotomia ciências naturais/ciências sociais perdeu seu sentido, visto que é erigida numa concepção mecânica da matéria, que contrapõe natureza e cultura, coletivo e individual, sujeito e objeto. Se atentarmos ao avanço teórico das ciências duras nos últimos tempos, veremos a emergência de conceitos, metáforas e analogias retirados das ciências sociais, numa verdadeira inversão do dito durkheimiano. A superação das dicotomias revalorizará as humanidades, colocando-as como catalisador da reação natural-social e pondo no centro do conhecimento este homem-natureza, visto que toda natureza é humana.
Na ciência moderna, ainda, o saber progride pela especialização. Seara engraçada, esta, na qual o rigor científico aumenta proporcionalmente à espartilhação arbitrária que fazemos do real, tornando o cientista um ignorante especializado e o leigo, um ignorante generalizado! No paradigma emergente, ao contrário, o conhecimento é total e, igualmente, local. A fragmentação na ciência pós-moderna não é disciplinar, mas temática, como galerias que se cruzam e entrecruzam. Sendo cada método uma linguagem, a realidade só responde no idioma em que é perguntada. O método, destarte, só descobre o que lhe convém, sem surpresas. A inovação científica, então, seria a invenção de planos e contextos de aplicação metódica, mas fora de seu “habitat”: cartografar grupos sociais, interpretar uma célula, entrevistar um computador.
A ciência pós-moderna é plural em seus estilos, sendo configurada segundo a inventividade pessoal do cientista. Foucault, por exemplo, é, historiador, filósofo, sociólogo, psicólogo ou cientista político? A composição científica pós-moderna é trans-disciplinar, sugerindo uma maior personalização da ciência, e apontando para o regresso do sujeito no mundo, demonstrando que o conhecimento e os produtos do mesmo são inseparáveis.
O desenvolvimento tecnológico desordenado nos separou da natureza, sendo a exploração e manipulação da mesma um movimento de exploração e manipulação do próprio homem! Esta nova ciência – total, coletiva, holística – aponta para uma nova religiosidade a brotar em nosso seio. Não o Deus personalizado, que se configuraria como o Sujeito Puro por excelência, mas nossa própria busca por uma harmonia com a totalidade, fora e dentro de nós.
O conhecimento deve trocar funcionalidade por compreensão, controle por contemplação, sobrevivência por vida. A criação científica, no paradigma emergente, em muito se assemelha à arte, pois nesta a transformação ativa da realidade está subordinada à simples apreciação do resultado, da obra. Trazendo o homem-sujeito-puro de volta à natureza, o conhecimento ensina a viver! O senso comum – sem disciplinas ou métodos – não é resultado dum conjunto de práticas dadas para sua produção. Ao contrário! É espontâneo, brotando no suceder cotidiano de nossas vidas. Ao aproximar-se do saber comum, a ciência pós-moderna não está desprezando pragmatismos e tecnologias, mas sabe que toda a sua produção deve transbordar em qualidade de vida, sendo a produção do conhecimento equivalente à produção de nossa própria existência...
SANTOS, Boaventura de Sousa; Um discurso sobre as Ciências; 3ª edição; São Paulo; Cortez Editora; 2005; pp. 59s.

II. A Crise do Paradigma Dominante

Um problema lógico: como é que um observador estabelece a ordem temporal de acontecimentos no espaço, separados por distâncias astronômicas? Einstein responde: por medições da velocidade da luz, pois parte do pressuposto de que não há velocidade superior a esta. No entanto, o próprio Einstein cai num dilema: para afirmar a simultaneidade de acontecimentos astronomicamente distantes, deve-se conhecer a velocidade de tais eventos; mas para medir a velocidade de tais eventos, deve-se constatar a simultaneidade dos acontecimentos. A solução, proposta pelo próprio Einstein: a simultaneidade não pode ser verificada mas, tão somente, definida!
O princípio da incerteza é a constatação de que não se pode reduzir os erros de aferição da velocidade sem aumentar os erros de medição da posição duma dada partícula, e vice-versa. Heisenberg demonstra, assim, que é impossível medir, ou mesmo observar, um objeto sem nele interferir, alterando-o.
Einstein na macrofísica, Heisenberg na microfísica. Ambos nos lançam a idéia de que o que conhecemos da natureza é só o que nela introduzimos! Não havendo simultaneidade ou medidas universais, o absolutismo espaço-temporal newtoniano perde sentido. A própria distinção natureza-homem – objeto e sujeito – abala-se em sua frágil dicotomia, tomando forma de continuum.
Já Godel apresenta e representa uma terceira condição na crise do paradigma dominante. Se as leis das ciências duras fundamentam seu rigor na matemática formal, o teorema da incompletude e os teoremas sobre a impossibilidade nos mostram que o próprio rigor da matemática carece de consistência!
Os avanços na microfísica, na química e na biologia dos últimos vinte anos figuram como quarta condição teórica. Haken, Eigen, Maturana e Varela, Thom, Jantsch, Bohm, Chew. Nomes e mais nomes, pesquisas e mais pesquisas das quais escolheremos Ilya Prigogine a título de exemplo. A teoria das estruturas dissipativas, de Prigogine, estabelece que, em sistemas abertos, a evolução explica-se por flutuações de energia – imprevisíveis – que pressionam o sistema para além de seu limite máximo de instabilidade, conduzindo-o a um novo estado macroscópico, irreversível. Troca-se a estabilidade, o determinismo e a ordem pela história, pela imprevisibilidade e pela criação. Prigogine, sem querer, traz de volta conceitos aristotélicos como potência e virtualidade, excluídos do pensamento pela Revolução Científica do século XVI, ávida por simplicidade e generalização.
A formulação de leis para a natureza baseia-se na idéia de que os fenômenos só dependem dum dado conjunto de condições, prontas para observação e medida. Esta simplificação legal acarreta uma simplificação da própria realidade, impedindo-nos de vislumbrar conhecimentos outros para além dos limites arbitrários fixados. Uma tal reflexão vai além da epistemologia tradicional, abarcando condições sociais, contextos culturais e instituições. A própria idéia de causalidade fica abalada, sendo substituída por modelos outros, como sistemas, estruturas ou processos. A relação causa-efeito só funciona num conhecimento que busca, unicamente, manipular! Medindo, inclusive, o seu êxito por esta intervenção mesma! Causa é, simplesmente, tudo aquilo que podemos controlar!
Por fim, vale cutucar a idéia de autonomia, neutralidade e desinteresse do e no conhecimento científico. A ciência causalista, moderna, tornou-se indústria, comprometendo-se com o poderio econômico, social e político, delineadores decisivos das prioridades científicas.
Tais condições – teóricas e sociais – referentes à ciência moderna não nos obrigam a abandonar o racionalismo nem nos condenam ao ceticismo desolador. Surge em nós, isso sim, a necessidade em abandonar os lugares estabelecidos de outrora, os sistemas, teorias e métodos epistêmicos que não mais satisfazem, em busca de – porque não? – paragens mais aprazíveis e aventuras mais encantadoras...
SANTOS, Boaventura de Sousa; Um discurso sobre as Ciências; 3ª edição; São Paulo; Cortez Editora; 2005; pp. 40-59.

I. O Paradigma Dominante

Copérnico e a sua teoria heliocêntrica. Kepler e suas leis sobre as órbitas dos planetas. Galileu e seus estudos sobre a queda dos corpos. Newton e sua grande ordem cósmica. Bacon e seu empirismo. Descartes e o Cogito. Todos cientes de que o que os separava do saber aristotélico dominante não era, tão somente, uma melhor visão do real, mas uma nova visão de mundo. Combatentes apaixonados da Revolução Científica do século XVI, lutavam contra o saber autoritário e dogmático do medievo.
Esta ruptura aponta para uma forma de conhecimento embasada no espanto do sujeito perante suas próprias descobertas, fundando um modelo de racionalidade desenvolvido, inicialmente, no domínio das ciências naturais. Entretanto, tal racionalidade científica, por pretender-se universal, é uma racionalidade totalitária, visto que nega o caráter de conhecimento verdadeiro a todos os saberes que não se pautam pelos seus métodos epistêmicos. Falamos não só de senso comum: a história, a filologia, a teoria do direito, a literatura, a filosofia, a teologia e todas as demais humanidades em voga.
Esse novo modo de encarar a vida, não obstante, lega-nos duas implicações fundamentais: primeira, a de que existem conhecimentos válidos (ou científicos) e conhecimentos vulgares (todos os demais); segundo, a suposição dum mundo dado passível de ser apreendido por um sujeito do conhecimento puro, o que implica uma separação entre a natureza e o próprio homem.
Personagem fundamental deste paradigma racionalista é a matemática, que representa, à ciência moderna, não tão somente um instrumento de análise. É, isso sim, a própria lógica de investigação da ciência, e ainda o seu modelo de representação da natureza. Conhecer, assim, torna-se quantificar, sendo o rigor científico aferido pelo rigor das medições! O que não é quantificável é cientificamente irrelevante, acarretando uma “desqualificação” das qualidades do objeto, uma redução da complexidade do mundo!
Estabelecem-se aspectos relevantes dos fatos a serem observados, retirando as complicações e acidentes dos mesmos, em busca duma simplificação dos fatos e duma regularidade dos fenômenos, tornando-os passíveis de medição rigorosa. A seleção do que deve ser ou não relevado nada tem de “natural”, sendo até mesmo arbitrária. É, justamente, nesta arbitrariedade que está erigida toda a nossa ciência moderna. As leis desta ciência são causas deterministas e mecanicistas, causas formais e pragmáticas que não pretendem compreender o real mas, simplesmente, dominá-lo! Quando perguntada sobre os fundamentos de seu rigor e de sua veracidade, argumenta demonstrando os seus êxitos manipulatórios.
O racionalismo cartesiano, o empirismo baconiano e as demais consciências filosóficas que embasam a ciência moderna condensam-se, no século XIX, no positivismo. O espírito científico, então, abre possibilidade para o surgimento das ciências sociais, nas quais distinguimos duas vertentes: uma que procura aplicar ao estudo da sociedade as leis das ciências duras e outra que busca uma metodologia própria ao estudo das humanidades.
A primeira vertente – física social – pressupõe que a ciência natural é um modelo de conhecimento válido, senão o único! Destarte, procura estudar os fatos sociais como fenômenos naturais, reduzindo-os às suas características observáveis e, principalmente, mensuráveis, tal qual Durkheim, que pesquisou a causa de suicídios não em motivações pessoais, deixadas nas costumeiras cartas de despedida, mas em regularidades, tais como o sexo, o estado civil e a religião.
A segunda variante assume-se como ciência subjetiva. Compreende os fenômenos sociais a partir do sentido que os atores conferem às suas ações, tornando necessária a utilização duma metodologia de investigação outra que não a das ciências da natureza. Saber intersubjetivo pelo conhecimento objetivo, descrição pela explicação, qualidade pela quantidade.
Esta última concepção de ciência social – embora antipositivista e fenomenológica – revela-se igualmente adepta ao modelo de racionalismo das ciências naturais, partilhando com estas a distinção natureza-homem e, como conseqüência, apresenta uma visão mecanicista de seu objeto de estudo, a saber, o ser humano. Ambas as concepções situam-se, ainda, no plano da ciência moderna, embora o segundo modelo apresentado represente, de certa forma, um sinal de crise no paradigma presente e – deveras – se nos revele como transição a algum paradigma vindouro...
SANTOS, Boaventura de Sousa; Um discurso sobre as Ciências; 3ª edição; São Paulo; Cortez Editora; 2005, pp. 20-40.

sábado, 28 de março de 2009

Um Discurso sobre as Ciências - Prefácio

Podemos dizer que, em termos científicos, pertencemos muito mais ao rigor do século XIX que às potencialidades do século XXI. Se, por um lado, temos tecnologias e conhecimentos capazes de suprir as carências do hoje, os perigos da catástrofe ecológica, da guerra nuclear e inseguranças outras nos mostram os desolamentos do amanhã. Pergunta Rousseau: “o progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou para corromper os nossos costumes?”. Uma pergunta básica – simples, mas essencial – que pode e deve ser ressuscitada e desvelada em diversas outras interrogações. Que motivos temos para substituir nosso saber vulgar e ordinário (que partilhamos com todos os homens e mulheres) pela ciência (produzida e apropriada por poucos)? Poderá tal ciência diminuir o abismo entre nossos discursos teóricos e nossas práticas reais? Todo esse saber acumulado pode – falando diretamente! – contribuir para a nossa felicidade?
A teoria representacional da verdade. A primazia da causalidade. O paradigma dominante. Boaventura - em Um Discurso sobre as Ciências - põe tais arquiteturas em xeque ao defender o conhecimento como uma construção social, ao caracterizar o rigor científico como um limite epistêmico e ao apontar a pretensa objetividade do saber-ciência como uma falsa e aparente neutralidade. Descrevendo os fazeres e saberes atuais, o autor identifica – nestes – uma crise, atribuindo às ciências sociais anti-positivistas um papel central na construção de uma lógica paradigmática outra, restabelecendo à ciência seus vínculos com o senso comum.
Quero apresentar - aos meus diletos amigos - uma resenha do livro cujo título encabeça nossa discussão. Pretendo, no entanto, separá-la em três partes, para melhor delinear seu sentido e, principalmente, trans-formar o que seria uma interessante mas exaustiva postagem, num escrito mais gostoso e - por isso mesmo - mais fácil de ser apropriado pelos senhores! Eis nossas fatias:
I. O Paradigma Dominante
II. A Crise do Paradigma Dominante
III. O Paradigma Emergente
Comecemos...

Saint Jean-Baptiste

- O senhor já examinou com atenção, nas fotografias instantâneas, os homens andando... Pois bem! O que o senhor reparou?
- Que eles nunca parecem estar se deslocando. Em geral, eles parecem estar imóveis sobre uma única perna ou saltando em um só pé.
- Exatamente! E veja, por exemplo, meu Saint Jean: é representado com os dois pés no chão, mas é provável que uma fotografia instantânea de um modelo que executasse o mesmo movimento mostrasse o pé de trás já elevado e se elevando para o lado do outro. Ou ainda, ao contrário, o pé à frente ainda não teria chegado ao chão se a perna de trás ocupasse na fotografia a mesma posição do que na estátua. Ora, é exatamente por este motivo que o modelo fotografado teria o aspecto bizarro de um homem subitamente atingido por uma paralisia. E isto confirma o que acabei de lhe dizer sobre o movimento da arte. Se nas fotografias, os personagens flagrados em movimento realmente parecem paralisados no ar, é porque todas as partes de seu corpo estão reproduzidas exatamente no mesmo vigésimo ou quadragésimo de segundo. Não há aí, como na arte, desenvolvimento progressivo do gesto.
Aí Gsell rebate:
- Pois bem! Quando, na interpretação do movimento, a arte se encontra em desacordo completo com a fotografia, que é uma testemunha mecânica irrecusável, ela evidentemente altera a verdade.
- Não – responde Rodin – O artista é que é verídico e a fotografia mentirosa, pois na realidade o tempo não se detém jamais e, se o artista consegue produzir a impressão de um gesto que se executa em diversos instantes, sua obra é certamente bem menos convencional do que a imagem científica onde o tempo é bruscamente suspenso...
Transcrição de Paul Virílio duma célebre entrevista feita por Paul Gsell com o escultor Auguste Rodin, a propósito de suas obras Age d´Airan e Saint Jean-Baptiste. In VIRILIO, Paul. A máquina da visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, pp. 14-15.

segunda-feira, 16 de março de 2009

O Cínico

Este post deve ser lido - recomendo! - como uma continuação de Matemáticos, Engenheiros e Técnicos. Este último, inclusive, é um des-envolvimento de Ingênuos e Irônicos, expresso e impresso num tempo de outrora, mas um tempo que ainda dura em mim...

Espero ter deixado claro - ou, ao menos em implícito - que nenhum dos personagens conceituais apresentados re-presentam categorias puras e tipológicas, nas quais podemos colocar os sujeitos e rotulá-los para toda uma eternidade. Eu quis presentificar, isto sim, a capacidade inventiva, motor das revoluções, e a tendência repetitiva, estratificadora da sociedade, ambas imanentes a todo humano. É inegável que existem homens, tais e quais, mais ácidos ou básicos, demolidores ou construtores, excêntricos ou centrais. Isto não o nego. Sou contrário, apenas, a uma condenação perpétua sobre serem os homens isto ou aquilo!
A proposta desta pequenina discussão é pensar o Irônico, o Matemático, o Socrático levado a seu extremo. Como funcionaria este agente do caos, este homem-devir, este puro fluido? Como re-presentar um homem que é pura presença!? Peço que entre em nosso palco - em nossa arena - mais uma figurinha helena: chamo Diógenes, o homem do barril, o cão! Diógenes é considerado "fundador" da "escola" Cínica, em filosofia, influenciado pelas idéias de Antístenes, Xenofonte e, principalmente, Sócrates, nosso irônico-imagem. Para uma boa compreensão de nosso novo personagem, cínico-imagem, contarei uma anedota.
Imaginem que um homem rico, muito rico, convida-nos, juntamente com Sócrates e Diógenes, para visitar a sua casa. Dentro da mansão, ficamos abismados com tamanho luxo, mas o que mais nos espanta é o trato do homem para com seus tesouros. Diz que não podemos tocar aqui, mexer ali, encostar acolá. Afinal, mui caras são suas posses. Sócrates, armado de ironia, tentaria travar um combate dialético com o aristocrata, para lhe mostrar a desimportância do ouro sobre os valores da alma, e coisa e tal, e blá-blá-blá... Já Diógenes daria uma gostosa cusparada na face do anfitrião, sob a justificativa de que aquele era o lugar mais sujo que teria encontrado na casa!!! E sairia do aposento como se nada tivesse acontecido!
Aprendemos, com Diógenes, que nem todos estão pré-dispostos ao diálogo. A ironia socrática, a retórica platônica, o moralismo aristotélico. Nada disto funciona diante dum humano sem Ser, dum homem-cristal, dum sistema fechado. O Cínico prefere cusparadas a palavras! O cínico é ainda mais destruidor que o irônico, posto que é brusco, violento e imprevisível por demais. Não é homem de idéias, palavras ou filosofias. Na verdade, o é! Mas ele transborda suas opiniões em forma de ação! Já que é para gastar saliva - diria o Cínico - que a gastemos da melhor maneira possível...

segunda-feira, 9 de março de 2009

A Cor do Paraíso

Passados 10 minutos de filme, comecei a chorar! Chorava, embora nada - em objetivo - pudesse ser eleito como causa deste meu transbordamento. A cena inicial nos chega angustiante, desoladora, sufocante. Cega-nos a falta de luz dos primeiros momentos e, quando abrem-se nossos olhos, ficamos desesperados! Descobrimos a realidade por detrás do nevoeiro. Uma realidade que não gostaríamos de vivenciar, uma coisa que não quereríamos experimentar, um algo que não desejaríamos possuir. Nosso protagonista é cego. E tão belo quanto contemplarmos a cosmovisão de outrem é destruir nossos próprios olhos no processo. A gritante piedade que sentimos pela condição de Mohammad vai, no decorrer da trama, dando lugar a uma certa inveja pela sua capacidade de ver o invisível. Mohammad toca, sente, vislumbra o mundo como nenhum outro visionário poderia fazer. Manipula a sua limitação e faz dela força. Cria um mundo independente da luz, fazendo de si mesmo sua própria luz. Lê o mundo pelos dedos, pelas mãos, pelo corpo. Mohammad é corpo!!! Vê o que não enxergamos, saboreia o que não sentimos, cria o que não percebemos. As pedras à beira do lago, os filetes de trigo na plantação, os passarinhos caídos do ninho. Todos os demais personagens, por mais simbólicos e essenciais ao enredo que sejam, não seram re-tratados, aqui. Não é preciso. Mohammad basta-se a si, pois é sozinho em seu mundo. Suas cores são outras, suas formas são outras, seu mundo é outro. O menino cego sabe que o verdadeiro sabor não é apreendido por olhares e, assim sendo, sabe saborear o cosmos como ninguém...