domingo, 29 de novembro de 2009

Será?

Seguro minha onda no terminal rodoviário e não luto por sombra e água fresca. Perder um lugar ao sol pode me dar a sua companhia cá na terra dos homens em pé. Você não chega, entretanto. Torço, então, para que você ainda esteja a esperar seu sempre demorado ônibus no outro terminal de integração. Demorar a chegar em casa é um bom preço a pagar por esperar sua carruagem contigo. Não obstante, seu ponto está vazio de você. No caminho a minha morada, torço para que o acaso me presenteie com algum esbarrão. Distrair-me da caça de ti me oferece a surpresa do encontro. Tristemente, não vejo suas madeixas vistosas balançarem por aí. Chato, isso. O que quer que "isso" queira significar! Será? Será mesmo!? Curioso, "isso"...

domingo, 22 de novembro de 2009

Eu e o outro...

Tento, sempre que posso, falar e escrever como pessoa primeira, como “eu”, como sujeito implicado, só utilizando a insossa linguagem impessoal dos eruditos como possível recurso retórico. E, já que o “eu” se pronunciou, invoco o discurso cartesiano para fundar nossa discussão. Mas deixo claro que não pretendo atribuir a Descartes a criação do sujeito privado, da individualidade moderna ou do liberalismo. O francês apenas se nos afigura como um representante histórico, um resultante duma rede de tendências, como a alta da razão no Renascimento, o surgimento da imprensa e da leitura privada e os movimentos reformistas e contra-reformistas a valorizarem a interioridade individual.

No Discurso do Método, lemos o registro dum homem renascentista que, submetido a uma profusão de idéias e ideais a brotarem, prefere desacreditar a todas. Cético ao extremo, põe entre parênteses até mesmo a dúvida enquanto método – dúvida sobre a dúvida – dadas a falibilidade dos órgãos dos sentidos, a mutabilidade dos sentimentos ou, até mesmo, a suposta existência duma deidade maligna a nos enganar em todos os nossos juízos. Quando o pirronismo parece colocar Descartes numa seara insuperável, este encontra um fundamento para o conhecimento. Enquanto duvidava, existia ao menos o ato de duvidar e, para esta ação, supôs como necessária a existência dum sujeito pensante. Cogito, ergo sum!

Mudarei um pouco a trajetória, visando uma melhor colocação de nosso problema. Se pensarmos o comércio em termos de troca comunitária, podemos facilmente encontrar em todo agregado social alguma atividade comercial. É por demais comum o excedente de uma família ou clã ser trocado, eventualmente, pelo produzido por outros grupos, seja no medievo, numa aldeia indígena ou em cidades no interior de nosso Brasil.

Esta situação se altera, entretanto, quando a produção não mais intenciona o abastecimento dos feudos, voltando-se não à subsistência mas ao comércio mesmo. Já teríamos, aqui, um fundamento sólido o suficiente para sustentar o cogito cartesiano, visto que cada um procura identificar sua “especialidade” e nela aprofundar-se. Identifica-se com ela! Mas não paremos por aqui. O próprio mercado, enquanto lugar de compra e venda, cria a barganha, na qual o lucro dum torna-se o prejuízo doutro, e cada mercador deve defender seu próprio interesse. Quando todas as relações entre os homens se processam por meio da compra e da venda dum bem ou signo elaborado por particulares, quando – melhor dizendo! – o modelo do mercado é ampliado às demais esferas do relacionamento humano e o modelo do mercador torna-se experiência universal, naturaliza-se uma lógica egotista e individual na qual os interesses de cada um são mais importantes que os interesses do todo!

O homem – no agora! – se fez indivíduo. Livre para defender seu interesse. A sanha do mercador contaminou a relação entre os saberes do mundo, a relação entre este mundo e o homem e o modo como este homem cria laços com outros homens. O Ser humano torna-se sujeito puro e, ao crer-se como unidade, pouco liga ou se liga aos movimentos do socius. Os poucos homens implicados são tomados por arrogantes – metidos e intrometidos – isto quando não recebem a epítome de desajustados e subversivos, de acordo com um vocabulário psicológico tecnicista, experimental e positivo, reedição da verdade neutra e objetiva das revelações. Homens que se constroem fora da pólis, do público e do mundo, entorpecidos por uma interioridade subjetiva e privada que, mesmo sendo a maior riqueza do homem moderno, pouco dá de si para o bem do outro...

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Intuição como Método

Lembro duma agonia que me trespassava o espírito - sim, era mais inquietante do que consigo relatar, mas menos dramática do que estão a imaginar - durante os períodos iniciais do curso de psi. Estudava práticas experimentais e estatística, naquele momento. Daí, encontro o mesmo pensamento, dia desses, ressoando nos versos iniciais duma poesia do Bergson. O menino, inclusive, tomou conta de meu vocabulário, tal qual aquele amigo com quem trocamos trovas, provas e prosas diárias. Canta o filósofo que nossas reflexões brincam com termos e conceitos que não correspondem às articulações do real. Sujeitamo-nos a problemas tais como são formulados pela linguagem. Corolário: dentro da própria pergunta que - previamente - formulamos, já se encontram as possíveis respostas que podem saná-la, respostas coexistentes ao problema colocado. Seja na filosofia especulativa, seja na ciência empírica, sejam em nossas práticas do cotidiano, trata-se mais de encontrar um verdadeiro problema que de resolvê-lo. O conjunto-solução é irmão gêmeo da função-problema e encontra-se coberto, em toda a sua simplicidade, pela complexidade de termos e conceitos da questão. Trocadilha o menino, então, que - posto o problema - resta des-cobrir a resposta.
Coisa bonita de se ver na obra de Bergson é a sua crítica aos falsos problemas. Lembrem de nossa conversa sobre o Zenão. Mudança, movimento e tempo postos em termos de imutabilidade, imobilidade e espacialidade. Zenão põe problemas que emperram, travam, dão bug. Melodia que cai no ritornelo, igual àquelas sonatas do Beethoven "executadas" num celular. Problemas que não levam à lugar algum, visto estarem bem fixados em espaços mal definidos. Igualmente mal colocado é o problema da origem do Ser. Quer o chamemos de matéria original, de razão espiritual, de princípio motor, de Deus ou de qualquer outra palavreta, caímos numa mesma querela. Para esta causa primeira, deve - seguindo a mesma lógica que rege seus consequentes - ter havido uma causa a lhe servir de antecedente. E uma causa da causa. E uma causa da causa da causa. E assim vamos desenrolando o novelho, como um gatinho brincante, até ficarmos totalmente paralisados numa rede caótica de pontos a nos emaranhar. Implícito a este problema está a seguinte crença: o Ser veio preencher um vazio, um nada que preexistia à existência deste Ser mesmo. Antes do Ser, não tinha nada. Ou, dito doutra maneira, antes do ser não tinha "coisa alguma"; ou, refinando ainda mais nosso pensamento, tinha o Nada!
O Nada, neste esquema, preexistia ao Ser como que de direito, sem exigir explicação. A superioridade de Bergson não está na sua inteligência. Ele não resolve o problema! Mas - garoto esperto - ele não o coloca. Sabe que quando se fala em Nada, caminhamos no terreno da pura especulação; lidamos, assim, com uma idéia pura feita para fazer funcionar o problema anteriormente posto. O Nada é só uma miragem, uma idéia, uma palavra. Pensar nestes termos vazios, nos quais o Ser brinda o Nada com a sua chegada seria - usando uma metáfora do próprio - supor que há mais numa garrafa bebida pela metade que numa garrafa cheia, pois nesta última há apenas vinho e, na primeira, vinho e vazio! Outra querela muito semelhante - e igualmente falsa - é a batalha dialógica em cima da Ordem universal e do Caos que o precede. A mesmíssima peça que, embora contracenada com atores outros, mantém os mesmos personagens.
Ambas as ilusões - tanto o Nada quanto o Caos - velam um mesmo erro. O erro de que há menos no vazio e na desordem que no Ser e na Ordem. Se forçarmos a vista só um pouquinho, veremos que há mais "idéias" no vazio que no Ser, na desordem que na Ordem, quando os primeiros representam algum conteúdo intelectual. Dois exemplos podem elucidar tal assertiva: um clássico, do Bergson; e outro meu, vividamente meu. Primeiro, o do menino. Se eu levo um brother para um cômodo de minha casa que ainda não mobiliei, direi a ele que no quarto não tem nada, mesmo sabendo que o ambiente está cheio de ar. E de poeira. E de teias de aranha. E de micróbios. Mas como não é sobre nada disso que sentamos nem é nenhuma dessas coisas que estamos a esperar ou precisar, nada disso conta. Tanto pra ele, quanto pra mim. Agora o meu exemplo, o qual já vivenciei pelos seus dois gumes. O professor que formula uma questão para seus alunos! Ao colocar um problema a ser resolvido pela classe, o docente espera uma determinada solução, aguardando que determinados pontos sejam cobertos pela escrita do alunado. Caso um respondente entenda a pergunta duma maneira inesperada ao professor, sua resposta será totalmente vazia de sentido a este. Será o mesmo que Nada! E é aí que caímos num outro termo mal-analisado: o possível. Com o desenrolar imprevisível da realidade, tendemos a projetar para o passado - retrospectivamente - aspectos que consideramos no presente. O possível é a miragem do presente no passado!
As questões, para Bergson, devem - antes de qualquer coisa - ser postas em termos temporais, não espaciais. Os conceitos e termos devem colar no objeto, respeitando a sua duração mesma. No entanto, se quisermos analisar a duração, seremos obrigados a entrar no jogo programático da inteligência e a seguir sua natureza. Devemos tentar recompo-la numa multiplicidade de estados de consciência sucessivos. Infelizmente! Sucedâneo de instantes, assim como a flecha de Zenão! Esta sequência de pontos - tão numerosos quanto mais obsessivo for nosso esforço intelectual - forma uma trajetória unitária. É o colar de contas bergsoniano! Essa multiplicidade abstrata e essa unidade abstrata, combinadas, não devem pretender sintetizar a duração num conceito, mas sim nos causar uma tensão bem determinada, nos instalar no ponto exato onde uma intuição pode ser apreendida. Intuição, esta, que é o "de-fora" da inteligência, visão sintética que, para ser objetivada, deve passar pelas analíticas conceituais - ponto por ponto - da linguagem intelectiva.
Se a linguagem, típica da inteligência, reúne todas as diversidades num único pacote conceitual pelas suas similitudes, a intuição tem, como objeto, a diferença. E aqui utilizo - Oh, menino que gosta duma poesia! - mais uma metáfora do Bergson (que ele pede emprestada de Ravaisson, na verdade) para nos indicar a clareira desta floresta negra. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira - inteligente - é dizer que todas são cores! Laranja, amarelo, verde, azul, anil. Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que representa o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda - intuitiva - lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm! Enquanto o primeiro pensa "o que é isto?", o segundo se questiona "o que faz com que isto seja isto e não aquilo?", "de onde provém isto?", "que se faz disto?" ou "como isto é possível?". Bergson, figurado como anti-intelectualista, não nos convida a abandonar nossas razões, mas a abrir os nossos olhos para uma casualidade para além do causal, do fixo e do determinado. Um convite que, embora ainda receoso e deslocado, eu já aceitei. Grita o menino em meus ouvidos: menos conceitos e mais vida!...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Psicologia Social

Trabalho em grupo. Desde o início, já desgostei da idéia de compartilhar a minha política da escrita com outras mãos que não as minhas. Meu par de mãos reflete muitas cabeças. Conciliá-las com as cabeças outras refletidas noutros pares de mãos é por demais trabalhoso a mim. Sociabilidade cansa! Mas, ainda assim, encaro a demanda. Visito o campo de pesquisa, escrevo diários de bordo, leio um texto sobre práticas metodológicas, resenho um outro sobre genealogia e práticas psi, releio os diários escritos, faço articulações entre a teoria especulativa e a experiência do campo, escrevo tudo em formato de crônica e - voilà! - consigo produzir cinco laudas de rica retórica. Hora de comparar o meu escrito com o de meus convivas: três ou quatro parágrafos preguiçosamente escritos, conceitos bem delimitados erroneamente colocados, comentários de superfície acerca da bibliografia, má apropriação da experiência de campo. Ao final do banquete, eu é que pago a conta com meu crachá de arrogante. Só rindo, mesmo...