sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Matemáticos, Engenheiros e Técnicos

A produção de conhecimento é atravessada por processos e intensidades em muito semelhantes à produção de um bem de consumo qualquer. A galera da mão-de-obra, o cara com os meios de produção, a economia simbólica. Toda uma discussão sobre signos, conceitos e valores que não nos interessa em profundidade, aqui, neste post. Só pretendo, agora, falar sobre as três lidas para com o conhecimento.
Por conhecimento, entenderemos - e será nestes termos que usarei a palavra e seus símiles! - um saber válido. Mais importante, reconhecidamente válido! Os rituais e cânones, os métodos e procedimentos, as escalas e matizes. Conhecer é produzir e inventar, tomar posse e interpretar, ex-pôr e im-pôr. A Matemática. A Engenharia. A Técnica.
A Técnica é filha da Inteligência. Resolver problemas é sua função. Descobre a cura de cânceres, compôe canções de sucesso, agencia campanhas contra a fome, constrói bases espaciais, eleva arquiteturas monumentais, mobiliza pastorais na comunidade. O técnico re-produz e re-presenta uma lógica dada, linear e fechada. É Aristóteles, é Ingênuo, é cientista. Sabe que está no caminho correto. Sabe que sabe! O inteligente é mantenedor da civilização, da sociedade e da cultura. Benditos sejam os técnicos, a nos agraciarem com seus inventos!
A Matemática, por sua vez, é filha da Intuição (sendo esta irmã gêmea da Inteligência...). Problematizar é a sua messe. Dança num espaço-tempo de 4 dimensões, canta o dodecafonismo, brinca de metafísica, desenha com as estrelas, constrói castelos de areia, dialoga com seus rivais. O matemático produz lógicas, rompe destinos, abre possibilidades. É Sócrates, é Irônico, é filósofo. Sabe que o caminho sempre pode mudar. Sabe que nada sabe! O intuitivo é o crítico, o místico, o vanguardista. Louvados sejam os matemáticos, pela invenção nossa de cada dia!
Técnica e Matemática. Inteligência e Intuição. Cientistas e Filósofos. Ingênuos e Irônicos. Inventos e Invenções. Não sei se já comentei, mas adoro dualismos! O outro lado da moeda, a outra face do dado, o canto escuro do quarto. Partilho tal gosto pelo duplo com Bergson, que poderia ser creditado pelas idéias que expus até então. No entanto, tendemos sempre a contrapôr - como adversários na eternidade - as extremidades do rio, por temer enfrentar a forte correnteza que separa as suas margens. É aí que surge a necessidade de uma ponte sólida para que possamos seguramente transitar as partes. Que entre em cena, destarte, o Engenheiro.
Entre a matemática inútil do filósofo e a técnica reprodutiva do cientista, colocamos a engenharia sofística do retórico. Em algum lugar entre Sócrates e Aristóteles, esconde-se Platão. Projetista de repúblicas, mentiroso político, matemático das almas. Tão sôfrego quanto inventar é convencer! Convencer que a novidade é necessária, que o inútil é preciso, que a diferença é requisitada. E Platão nos simboliza um equilíbrio molar, uma catálise molecular, uma estequiometria dos reagentes. É o resultante da acidez corruptora do Irônico com a base solidificadora do Ingênuo.
Platão é dual, assim como todo Engenheiro do conhecimento o é. Tem os pés fincados no chão e a cabeça rodeada por nuvens. Gigante! Faço não uma apologia ao pai das Idéias, em específico, ou aos Engenheiros, em geral. Tampouco pretendi fazer crachás tipológicos dos empregados na empresa do saber. A Matemática-Intuição é transcendência de nós, é o sair-de-si, o mundo das Idéias; a Técnica-Inteligência é imanência em nós, é a re-petição, o mundo dos Ídolos; a Engenharia é ponte, é barquinho, é a criação do mundo Ideal.
O engenheiro erige templos, religiões e comandamentos; funda estéticas, escolas e estilos; delineia métodos, sistemas e teorias. Ele pega a água com as mãos, deixa-a escorrer entre seus dedos, e a coloca em recipientes geométricos e coloridos; água vermelha e quadrada, água verde e cilíndrica, água azul e cônica. Transforma a potência em cinemática, o mar em ondas, o invisível essencial em visível existencial. Mas sabe - sabe com ironia - que o barquinho não deve ser carregado cá e lá, pois isto nos impede de bem vislumbrar o outro lado. Ponte! Possibilita um agenciamento às inutilidades do matemático mas, ao mesmo tempo, mostra ao técnico que suas extensas fórmulas prontas são intensos cristais de planos e lógicas. Seu dedo aponta - inflexível - à lua, mas ele está mais preocupado na constelação que descansa por detrás dela...

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Do Ciúme

Muitos personagens já me convenceram das benéfices da paixão: Platão e Nietzsche, Kierkegaard e Heidegger, Goethe e Vinícius de Moraes. É na paixão que o ego-ente-coração constata sua finitude. Seus limites e de-limites! Percebe-se grão, gota, ponto. E é um outro alguém - um certo alguém! - que lhe passa isto na cara! Tapa!!! É este outro em específico que mostra nossas potências adormecidas, ilumina nossos cômodos desconhecidos e catalisa nossas reações de individuação. O Outro já chega "chegando", impondo presença nos nossos domínios e alargando um pouquinho mais de nossos territórios existenciais. Saimos de nós e vamos para uma lógica outra, um mundo outro, um amor outro, que não é só amor-de-si, mas um amor-para-si, amor-para-além-de-si. Com o Outro, pelo Outro, no Outro!
Nem sempre - e isto nos é por demais sôfrego - somos o Outro do Outro! Nem sempre causamos a trans-formação naqueles que tanto nos trans-formaram. Nem sempre há co-relação na relação. É a cena do cavalheiro distinto que dá tudo do mundo e - mais importante - de si para a realização do Outro; o cavalheiro, no entanto, percebe - ao deixar sozinha sua dama enquanto lhe prepara uma bebida - que ela continua bela, altiva e sorridente mesmo em sua ausência, que seus decotes, caras e bocas continuam a massagear a retina de outrem, que não ele. O cavalheiro percebe - oh, drama dantesco! - que a dama pode ser feliz sem ele. Ela, ao contrário dele, existe sem sua contraparte, e isto lhe dói! Dói uma vez, pois o cavalheiro re-sente seus in-cômodos; dói uma segunda vez, pois percebe que a dama não se sente muito in-comodada com a sua presença ou ausência; dói, ainda, uma terceira vez, pois - mesmo sendo mentira - ele não pode mais viver sem ela. E, mesmo que pudesse, não quereria!... Não quereria!...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Terceira Carta a Behbeit el-Hagar

Capoeira me mandou
Dizer que já chegou
Chegou para lutar
Berimbau me confirmou
Vai ter briga de amor
Tristeza camará...

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Big Fish

Acabei de pescar um peixe grande. Daqueles que devolvemos à água, dada tamanha a beleza da criatura e, depois, passamos por mentirosos, quando o descrevemos para os homens de pouca fé. Enquanto procuro algumas fotografias do filme Big Fish, esbarro-me com uma e outra sinopse do mesmo, odiando-as todas! Uma sinopse é - eu diria - a linearização de pontos isolados da trama complexa para a criação duma configuração estrutural específica. Já suscitamos, no blog, algumas problemáticas semelhantes sobre biografias, apelidos e sistematizações, que muito viriam a calhar neste artigo. Mas, justamente por já terem sido expostas anteriormente, não irei re-argumentá-las. Só para bem-colocar o post, afirmo que toda sinopse fecha a possibilidade da história poder vir a ser qualquer outra coisa para o homem que a lê. A sinopse, sendo imagética, limita a complexidade criadora e, em se tratando de Big Fish, destrói a mais sublime de suas poesias e intuições: a imaginação!
Peixe Grande deve sua existência à imaginação. Não a imaginação de Edward Bloom e suas miríficas histórias, mas a potência mesma do imaginar, a função psíquica primordial, o poder para diferir de si mesmo! A imaginação é sempre maravilhosa, fantástica, incrível. Filha e mãe das maravilhas, autora e personagem das fantasias, espectadora e menestrel do inacreditável. Nosso Ed é figura por demais carismática e cativante, pois a imaginação - igualmente - torna cativos àqueles de quem se apossa. Todos o amam! Todos a amam! Menos Will...
Filho único de Ed, tudo o que Will gostaria é que o pai lhe contasse uma história factualmente verídica de sua própria vida. Injuriado, afirma só conhecer o pai em suas andanças com gigantes, mares de narcísos, bruxas, guerras mundiais, cidades perdidas e demais devaneios. Will quer os fatos e, tão somente, os fatos! Ed, no entanto, se atem aos valores.
Sabem quando chamamos nossos amigos mais chegados de Miseráveis!? E quando gritamos "Cara-de-pau!" para uma pessoa que amamos!? Ou então, lembram quando juraram em falso para preservar uma festa-surpresa!? Temos, aí, três factualidades que nada significam diante das valorações que carregam. O adjetivo, o insulto e a mentira não são o que aparentam ser. O "Miserável" é o "Querido Amigo", o "Cara-de-pau" proclama "Amo-te, mas finjo estar aborrecido contigo", e o perjúrio, ora bolas, nada mais é que o remédio ruim, o prelúdio largo da prestíssima sinfonia.
O nascimento de Will, narrado por seu pai, torna-se um evento miraculoso, onde espíritos antigos, feras marinhas e uma aliança de casamento se unem para contracenar um drama nunca antes contado. Em verdade, William teve um nascimento normal, chato e cinza, idêntico a trocentas outras gêneses. Mas, para Ed - creio - o nascimento de seu primeiro filho foi caleidoscopicamente mágico, nada condizente com os fatos. Logo, Ed re-valora tudo! E por re-valorar tudo, re-valora a todos! Produz o passado e o entrega como um dado a quem o quiser. Homem de poder!
Edward não cabe em si. Gera e exagera a todo momento. Não mente, mas sempre inventa. Não suja, mas sempre borra, cá ou lá. Peixe Grande é imaginação! Seja a do Ed, como rio criador, seja a nossa, como peixinhos a nadar no fluxo d´água. Água sem cor, cheiro, sabor. Água sem forma! Ed é peixe, é água, é a imaginação! É o homem que viu a sua morte no olho-de-vidro da bruxa velha e, mesmo morto, continua vivo! Vivo naqueles que se deixam igualmente imaginar, diferir, transcender. Deveras! A imaginação nunca morre...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Segunda Carta a Behbeit el-Hagar

O homem que diz "dou"
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz "vou"
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz "sou"
Não é!
Porque quem é mesmo é
"Não sou!"
O homem que diz "tô"
Não tá!
Porque ninguém tá
Quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor...
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!...
Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não! Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...
Amigo sinhô
Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha
Não vá!
Que muito vai se arrepender
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer...
Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...
Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não! Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...
Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Carta a Behbeit el-Hagar

ignorar. [Do lat. ignorare]

1. Não ter conhecimento de; não saber; desconhecer
2. Ser incapaz de; não usar de; não praticar
3. Reparar em; estranhar; censurar; criticar
4. Desconhecer-se a si mesmo

...

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Le Fabuleux Destin d´Amélie Poulain

Dia desses, conheci Amélie. Francesinha. Sorriso sincero. Olhos de jabuticaba. E uma alma do tamanho do mundo! Não deu outra. Apaixonei-me! E tão difícil quanto re-presentar a Amélie é re-presentar a sua película: Cinco indicações ao Oscar, uma indicação ao Globo de Ouro, dois prêmios no BAFTA - British Academy of Film and Television Arts - treze indicações no César, além de outras formalidades em festivais de cinema, como os de Toronto e Edinburgo. Tais premiações, no entanto, pouco ou nada significam diante da menina Poulain e das personagens outras que atravessam a sua história.
Chega a ser pecaminoso delinear o filme. Dar-lhe uma continuidade, um sentido, uma sinopse. Faço a biografia de Amélie Poulain, no entanto, como um peccatum verum necessarium, para que possamos bem-colocar alguns problemas. Seu pai, médico-militar-aposentado-insensível, nunca manifestava afetos e fatos corolários para com a menina. Esta - durante os exames médicos mensais que seu pai lhes realizava - ruborizava a face, ofegava o respirar, acelerava suas síncopes cardíacas, dada tão rara e preciosa troca de tato com seu progenitor. Este - devido ao comportamento inadequado da fisiologia de sua descendente - julgava que a mesma possuia alguma anomalia cardíaca. A menina Poulain, assim sendo, cresceu isolada das outras crianças, tendo sua mãe-professora-neurastênica como tutora. Tal detalhe - singelo - é essencial para a im-compreensão do pensar nonsense de nossa protagonista. Privada do contato com outros infantes, mas ainda pequena para escalar a árvore da adultescência, vivia em seu cenário particular, com personagens particulares e suas tramas ainda mais particulares. Sozinha!
Quando grande - embora ainda pequena! - encontra, em seu lar, uma caixinha de adereços do antigo dono do local. Figurinhas e fotos, carrinhos e bonecos, lembranças e esperanças. Amélie resolve, então, encontrar o antigo morador do aposento, para devolver-lhe os pertençes. Durante a sua curiosa empreitada para encontrar o antigo inquilino - Dominique Bretodeau - Amélie se perguntava sobre como o homem re-agiria quando tivesse em mãos seus tesouros infantis. Vítima do curioso estratagema de Amélie, o Sr. Bretodeau encontra a caixa, sendo tomado por uma tormenta de experiências e sabores de outrora - vigor do ter sido! - que o impulsionam à decidir alguns aspectos de seu porvir, como fazer as pazes com a filha e conhecer o neto.
Amélie Poulain, presenciando seu milagre, é tomada por um sentimento ingênuo, porém sincero, de ajudar toda a humanidade. E assim prossegue o filme! Ela não só ajuda o cego a atravessar avenidas, mas lhe descreve toda a paisagem e suas matizes enquanto isto. Não só faz o ex-namorado-mal-encarado de sua amiga parar de perseguí-la, como também arruma uma pretendente para ele, sua amiga-outra-hipocondríaca-encalhada. Não só consola sua vizinha abandonada, mas... Não, esta eu deixo para os que assistiram! Amélie sente-se em débito com o mundo, mas sempre paga a mais do que deveria. É a artista humilde que, após terminado o espetáculo, desaparece antes das palmas e ovações!
Para aqueles que se esbarraram com o post anterior, peço que a comparem com o Irônico! E não levem muito a sério tal comparação, eu vos digo. O Irônico verdadeiramente Irônico nunca leva as coisas muito a sério. Não digo, claro, que a Amélie saia pelas ruelas e subúrbios franceses valorando e impondo bem-aventuranças. Longe disso. Muito longe disso! Mas o nosso anjinho - mulher cheia de estratagemas - nos mostra uma boa maneira de agenciar nossas ironias, além de nos esclarecer algumas possíveis conseqüências do ser Irônico.
Pensava em listar alguns pontos para nossa discussão, mas listas me passam - de certa forma - a noção de obrigatoriedade, imperatividade e inevitabilidade! Esqueçamo-las, então! Ao menos, neste agora. Vamos fazer saltar, apenas, três pontinhos da película que nos serão importantes: a união de Joseph e Georgette, a radiante transformação de Madeleine e a menina-do-copo-d´água na pintura do velho Dufayel, agenciamentos da jovem Poulain. E o que saboreamos disto tudo!? Talvez que nem sempre nossos estratagemas dão certo, nem sempre podemos fazer o correto da maneira correta e nem sempre devemos ser Irônicos. Ao menos, aquele Irônico da acidez, da destruição e da solidão puras.
Amélie sempre foi solitária, imaginativa e criadora. Culpa de seu pai? De sua mãe? De seu peixinho suicída ou de sua polaróide dos desastres? Quem sabe!? Mas o filme só termina - e sua vida só começa - quando a heroína se esbarra com seu próprio problema, com seu próprio princípio motor, com sua própria condição de Irônica: Amélie resolve sua solidão, problema-de-si, e se une a um outro alguém. Um outro Irônico, solitário e desejoso de companhia! O Irônico afeta o mundo - sim! - mas também está disposto a ser afetado por ele. Lida com o mundo como uma criança ao brincar, coisa séria só até a hora do jantar! Para depois afastar-se - mais uma vez - de sua casa e ir ao encontro de seus amiginhos, um ou dois, mas escolhidos a dedo...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ingênuos e Irônicos

Depois de muito praticar a arte da procrastinação, resolvo - finalmente! - escrever sobre o Ingênuo e o Irônico; não tão somente um novo dualismo categórico, mas duas maneiras de se re-lacionar, de re-presentar, de in-comodar e ser in-comodado. Não duas tipologias psicológicas, mas duas atitudes frente à veritas e suas cristalizações.
Comecemos pelo Ingênuo, do latim ingenuu. Natural, simples, inocente. Em vernáculo clássico, o ingênuo é um sujeito puro, sem mistura de sangue plebeu. Já aqui, nas terras brasis, o indivíduo ingênuo é o filho de escrava, mas nascido depois da emancipação áurea. Já o Eironikós, grego, nunca - NUNCA! - é conterrâneo do Ingênuo. É este seu prolegômeno existencial, seu pré-requisito de aparição, sua razão-de-ser. Sarcástico, zombeteiro, interrogador. Diz sempre o contrário do que realmente pensa! O Irônico só existe em oposição - em necessária oposição - aos Ingênuos. Retomando o Ingênuo...
O seu mundo é justo, lógico e contínuo. Confia - verdadeiramente - na ordem dada. Aceita - inocentemente - a naturalidade do estabelecido. O Ingênuo acredita em sua pureza de sangue. Acredita-se, puramente, isto ou aquilo; acredita-se, puramente, fora ou dentro; acredita-se em si! O Ingênuo é sempre Católico, Barroco, Aristotélico, Budista, Romântico, Hegeliano, Ateu, Clássico, Kantiano, Taoísta, Pop, Platônico, ou qualquer outra conceituação fechada em si mesma. É através de tais lugares de estabelecimento que o Ingênuo soluciona as éticas e problemáticas do cotidiano. Matar é errado, pois assim impera a lei mosaica do Gênese. A música erudita é superior à popular pois foi isto que afirmaram os grandes corifeus. Os gordos e magros, altos e baixos, peludos e carecas, são feios e estranhos aos nossos olhos, pois - anotem! - assim eles o são aos olhos "de todo o mundo". O Ingênuo não intelige, apenas reflete os comandamentos de suas categorias conceituais, ainda que floreados de retóricas e argumentações plausíveis. Destarte, o Ingênuo nunca está só! Ele é sempre um método ciêntífico, um estilo musical, uma seita religiosa, um lifestile. O Ingênuo é sempre muitos. Mas nunca é por-si ou para-além-de-si. A beleza do mundo ingênuo encontra-se na causalidade, na linha simples, na vida sistêmica e no tempo circular. O dia santo, o final de semana, o décimo-terceiro. O mundo do Ingênuo, assim como o mesmo, é facilmente previsível e controlável...
Já o mundo do Irônico é trágico, espantoso e ruptural. O Irônico não confia em Papai-do-céu, mas é o seu Profeta-na-Terra. Não aceita as verdades reveladas, mas as inventa, descobre e cria para trazer o Paraíso aos homens de boa vontade. O Irônico não é puro - tampouco beato! - mas é sanctus [do latim, separado]. Um santo alheio aos seus, visto que é sempre marginal, excêntrico e apóstata. Enquanto os Ingênuos são os trabalhadores da grande messe, o Irônico é o demolidor dos templos antigos, combatente dos ídolos, in-cômodo criador de valores. O Irônico adora aloprar! Escreve seu próprio cânon sagrado, lista suas próprias leis e impõe sua própria verdade aos pobres de espírito. O Irônico pensa, e pensa por si! Não re-presenta istos e aquilos, mas é a própria presença-de-si-mesmo! Sui Generis! Seu mundo opera com regras únicas - não planejadamente suas - mas ainda suas! É sempre solitário, mas um solitário-solidário! Descobriu-se um Ser, mas um Ser-para-os-Outros! A beleza do mundo irônico é a casualidade, o emaranhado complexo, a vida saboreada e o tempo-momento. A chuva na praia, a festa surpresa, o beijo roubado. O mundo irônico - damas e cavalheiros - é o mundo mágico de Oz, o País das Maravilhas, O Jardim do Éden...
Vamos aos exemplos, sempre poucos em se tratando de ironia. Krishna, in-comodando Arjuna à recuperação de seu reino e trono; Moisés, in-comodando os judeus para o êxodo e o monoteísmo; Sócrates, in-comodando os atenienses no tocante às suas crenças infundadas; Sidarta, in-comodando toda a sua casta sacerdotal com uma vida de ascese; Jesus, in-comodando o farisaísmo judeu e a literalização religiosa... Pensei em mais alguns Irônicos ilustrativos, como Lao-Tsé, Orfeu e Pitágoras ou ainda os seguidores mais imediatos dos homens acima citados, como Josué, sucessor de Moisés, Platão, discipulo de Sócrates e Paulo de Tarso, apóstolo de Jesus. Todos homens-de-idéias, que se tornaram homens-de-ideais e, ulteriormente, homens-ídolos! Vejamos algumas sentenças:
"Eu vos dei leite a beber, e não alimento sólido que ainda não podíeis suportar. Nem ainda agora o podeís, porque ainda sois carnais." (Paulo de Tarso, em sua segunda carta à comunidade cristã de Coríntios)...
"O Tao que se pode sondar não é o verdadeiro Tao." (Lao-Tsé, no primeiro verso do primeiro poema do Tao Te Ching)...
"Embora falemos de Sua forma, o Buda Eterno não tem forma fixa, podendo manifestar-se em qualquer forma. Ainda que descrevamos Seus atributos, o Buda Eterno não tem atributos fixos, mas pode manifestar-se em todos e quaisquer primorosos atributos." (palavras de Sidarta Gautama)...
Acho que estas três são bem re-presentativas do que quero ex-pôr e im-pôr. Homens-bomba que explodem o que era dado, consolidado e estabelecido. Homens sinceros consigo mesmos, mas irônicos para com os demais. Homens que dão leitinho para os pequenos, pois, embora saibam da verdade amorfa, dão-lhe delineamento. Sabem que o Tao é indizível, sabem que o terceiro céu é inalcançável, sabem que a experiência é inenarrável. Mas mentem! Mentem pois os Ingênuos não sabem estar sozinhos, não sabem pensar sozinhos, não sabem agir sozinhos. Então o Irônico pensa, intelige e cria a realidade para eles. O faz para o bem-do-outro, pois ele também já foi Ingênuo. Assim o faz para guiar a massa burra e, ao mesmo tempo, abrir possibilidades de emerção aos tolinhos do mundo ingênuo. Não estou falando - tão somente - de Cristos e Budas, de Iluminados e Profetas, mas de homens que expiram, cospem, vomitam, sangram. Beethoven ironizou a métrica clássica. Einstein ironizou a mecânica newtoniana. Gandhi ironizou o Hinduísmo. E eu!? E tu!? E ele!? Que faremos de nós!?...

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Porque os Pais In-comodam os Filhos...

"Eu acho que tenho certeza daquilo que eu quero agora
daquilo que mando embora
daquilo que me demora
eu acho que tenho certeza daquilo que me conforma
daquilo que quero entender
e não acomodar com o que incomoda..."
O Teatro Mágico - Criado-mudo
Conversas no Messenger são produtivas! Ao menos, em se tratando de posts, blogs e inutilidades afins [ainda pretendo escrever algo sobre a importância da inutilidade... podem cobrar...]. Assim sendo - novamente! - eu adio a grafia do texto sobre Ingênuos e Irônicos [e este podem me cobrar, mais severamente ainda!...]. A pessoa outra com quem eu conversava fez-me - mais uma vez! - ceder-me em inspirações e, assim sendo, resolvi escrever algo do algo que me arrebatou...
Como o tempo já está por demais avançado e ainda insiste em não durar, farei um esforço hercúleo para ser breve e objetivo, ao menos desta vez. Imaginemos aquela pessoa por quem nutrimos paixões. Sim! Esta mesma! Perdemo-nos em seus olhos, enrubescemos com seus sorrisos, sonhamos desejosos de seu hálito. Mesmo que, num momento de fria e neutra decisão, escolhamos ignorá-la ou - algo menos severo - tratá-la de maneira diferente da usual. Neste encontro - choque, atrito, esbarrão - não conseguimos agir. Apenas re-agimos! Somos in-comodados! In-cômodo enquanto arquitetura psíquica, modelo dado e invariante do pensar, re-presentação formal de uma existência singular. São in-cômodos os sistemas filosóficos, os métodos científicos, a religião cristalizada, a arte-técnica. In-cômodos, posto que são lugares-prisões, lugares-estabelecimento. In-comodar é, destarte, valorar! Tornar real o factum. É construir os demais a partir de meus próprios cômodos internos e - sabemos - pôr cômodos pra fora é sempre mais fácil que ser in-comodado. E é isso que os pais - Senhores da Tradição, Prezadores da Disciplina, Paladinos da Ordem - fazem! Eles nos criam, formam, modelam. In-comodam! E muito!!! E, além disso... Vejam só, escrever sobre tal conceito me causa prazer por demais, só que - pena - o horário não permite uma discussão mais acalourada. Que fiquem sozinhos com seus in-cômodos, agora! Examinem os quartos, arrastem os móveis, mudem de casa! Mas - ao menos - tomem uma posição quanto à isso... E in-comodem-se!...