sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Simplesmente Amor...

Assisti, hoje, Love Actually. Uma narrativa que em muito me lembra outros filmes rizomáticos como Babel ou Crash. Movimentos, forças e intensidades atravessando corpos mil, configurando e desconfigurando histórias, relações, afetos, idéias. Corpos cruzados, descruzados, entrecruzados; corpos que se confundem, que se conflitam, que se constroem e se destroem, uns aos outros, outros ao Um.

O filme não se confunde às tradicionais tramas-rede, que parecem sentir um certo prazer na desilusão, no desmonte, na descrença. Love Actually é comédia romântica, por mais contra-aditório que uma tal classificação possa ser, soar e ressoar. A frugalidade da risada, o momento da piada, o instante da brincadeira, andando lado a lado à eternidade dum beijo. Chronos e Kairós andando de mãos dadas, andando em Largo e Presto, Scherzo e Cantabile, di molto ma non troppo. A comédia romântica é um de meus gêneros favoritos, justamente por ser processual, passagem, ponte. Para-doxa é a comédia romântica; vai além de seus personagens, de suas sagas, de seu desfecho. Sai de si e vem para nós. Encanta, ilude, inspira. Cria a ilusão mais real, o mito mais bem montado, a fé mais verdadeira. Para-doxo é o produto da comédia romântica. Minhas damas, meus cavalheiros, apresento-lhes o amor...

Pais e filhos. Maridos e esposas. Pais de família e amantes. Astros de rock e agentes publicitários. Primeiro-ministros e suas secretárias de Estado. Irmã e irmão. O menino tímido e a menina popular. Patrão e empregada. O solteirão e a mulher do seu melhor amigo. O desprezado sem-noção e seu Accent of Gentleman. Tanto amor, tanto afeto, tanta... Tanta coisa que nenhum grego, nenhum kantiano, nenhum moderno ousaria classificar esses entrelaçamentos. Relações demais para se discutir. Só nos basta vivê-las, por mais piegas, moralista ou puritana que toda esta pretensa lição possa parecer e aparecer. Interpretar demais a vida (principalmente as de outrem...) nos toma o tempo para saboreá-las, para sabê-las, para sê-las. E deixar de viver vidas, afetos e amores é disciplina na qual sou especialista...

Confesso sentir alguma dificuldade em encerrar este assunto. Iniciar amores é complicado mas - vocês devem saber - terminá-los é que dói de verdade. Dói porque desilude, desmonta, desconstrói. É triste. Ironicamente triste. Coloca-nos diante de um nada existencial, diante de nossas antigas ruinas para que, diante delas, choremos! E rimos de tanto chorar, pois tudo isso é contraditório e paradoxal. É nesse riso, nessa comédia, que construimos uma outra vida qualquer, um novo amor, uma nova rede, atada e já pronta para ser desatada... Sabem, parece exagero falar tudo isso de um filme; de uma ficção, olhem só! Mas falar de amor, sem exagerar, não é falar de amor. Ou então é melhor calar. O amor é, simplesmente, amor...

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Sistemas Teóricos e Políticas Cognitivas (ou o porquê da minha não-filiação a nenhuma teoria psicológica...)

Como estudante de Psicologia, sou freqüentemente inquerido - por colegas ou não - sobre que abordagem metodológica eu pretendo utilizar ou que temáticas eu gostaria de abordar. "Você, que gosta de viajar, vai ser fenomenólogo, né!? Existencialista, talvez! Se bem que já te peguei lendo uns livros de Bergon e Deleuze pra sua pesquisa... Falando nisso, sua pesquisa é sobre idosos, acertei!? Pretende continuar abordando essa temática? Já sei, vai virar Junguiano!!! Eu lembro como você só falava de Jung no primeiro período. Além disso..." E a lalação continua ad infinitum, até que a pessoa se canse de cavar uma terra sem os tesouros que ela procura ou até que eu lhe devolva uma retórica qualquer, mesmo que desprovida de sentido para ela. É engraçado como as pessoas se encantam com os malabares da palavra, com os jogos da retórica, com a ciranda dos signos. E eu, confesso, encabeço esta lista de pessoas engraçadas. Comecemos, assim, falando da palavra...
Mudando de ares, viajemos à Grécia. Visitaremos os Helenos clássicos, para precisar nossa coordenada espaço-temporal. Na Grécia pré-socrática, conceitos como Verdade e argumentação lógica estavam reduzidos ao discurso e à beleza retórica. Falo "reduzidos" - deixo claro! - sem a intenção dum juízo de valor qualquer. Bebendo da genealogia nietzscheana [vide post anterior], vemos que a própria noção de Aletheia, verdade ideal, imortal, imutável, pode ter nascido com Platão e sua visão matemática do real. Foi a Dialética Platônica (que difere, em muito, da Ironia Socrática, mas esta é uma outra história...) que trouxe a idéia de Episteme, de essência, de transcendência. Antes do surgimento da Filosofia como heroína do conhecimento, dissipadora do erro e esclarecedora da verdade, tinhamos, tão somente, uma tal retórica filosofante, um convencimento pelo encanto, uma realidade poética. Eis o movimento sofístico, que tem Górgias como seu maior representante.
Os sofistas, em geral, e Górgias, mais especificamente, eram receosos em aceitar valores absolutos dado seus contatos com culturas outras, etiquetas outras, deuses outros. Todas estas representações não passavam, para ele, de construções lingüísticas, de jogos de palavras, de ficções, cuja razão-de-ser não estava, simplesmente, na representação das coisas, mas na própria criação delas! É neste sentido que, para Górgias a palavra é poética (do grego poyesis, criação). Nada há sob o véu das palavras. Não há o ser-em-si por detrás de nossos fenômenos. É na palavra, na poesia, na retórica, que o mundo se cria e recria para nós.
Adotando tal perspectiva do conhecimento, é inviável aceitar a existência duma realidade pura e bela para além de nossa percepção, mas não é por causa disso que caímos num relativismo exagerado, num oba-oba conceitual, no qual a verdade só depende dum discurso bonitinho e bem musicado. Tal visão de mundo em muito se assemelha à intencionalidade fenomenológica, à biologia cognitiva, à cartografia sentimental e a outras conceitualizações contemporâneas, mas não pretendo entrar nestes termos, ao menos neste post. Para Górgias, o bom discurso é aquele que almeja - para além de convencer multidões - o bem da pólis e, tão somente, o bem da pólis.
Tomemos, rapidamente, alguns sistemas da psicologia. O Gestaltismo e suas leis da boa forma. O Behaviorismo e suas regras de condicionamento e reforço. A Psicanálise e o seu inconsciente. A Epistemologia Genética e a sua equilibração. Todos, para Górgias, seriam simples jogos retóricos. Ao discutirmos os termos desta ou daquela teoria, não estaríamos falando de pessoas e suas experiências singulares. Estaríamos, isso sim, brincando com a própria palavra, com o próprio conceito, com uma categoria ideal longínqua e independente do humano. Toda teoria, todo sistema, todo método, pressupõe o transcendentalismo. No caso da Psicologia, busca-se sempre os invariantes da cognição. Cria-se um humano ideal, imutável, essencial e anseia-se presentificá-lo vezes várias e várias, visando não o humano singular, frágil e choroso, mas sua versão imortal, como arquitetura psíquica. Substitui-se a presença pela re-presentação, a liberdade pelo in-cômodo, a vida verde da imanência pela pós-vida branca da transcendência.
Utilizar uma abordagem teórica ou temática não se resume a adotar uma perspectiva de um humano numinoso, natural, dado à observação. Ser psicanalista não é apontar recalques, resistências ou outras instâncias psíquicas. É criar o próprio inconsciente no homem e jogar com suas próprias regras! Regras estas, claro, com fundamento in re. Um dado que não é dado, mas produzido! Assim, justifico a minha falta de opção teórica, mesmo amando-as todas, mesmo assumindo sua funcionalidade. Criar um determinado humano é abertura à possibilidade de previsão e controle deste mesmo humano. Mas é, igualmente, fechar-se à criação, à invenção, ao não pre-visto. Tratar a cognição, a mente, a alma, através duma teoria sistêmica só se justificaria se a cognição mesma fosse igualmente fechada num sistema. E o homem - Oh, bicho complexo! - tem sempre a mania de diferir de si mesmo...

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Nietzsche, a Genealogia e a História

“A genealogia não se opõe à história como a visão ativa e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem” (Foucault).
Sim, uma resenha, ora bolas! O primeiro post - pois introitos não contam - será uma resenha de um texto do Foucault que, grosseiramente falando, é uma resenha do Genealogia da Moral, de Nietzsche. Resenha de uma resenha, vejam só! Mas aqui, aproveito pra escrever coisas da academia com o meu jeitinho peculiar de imprimir-exprimir idéias. Deixo registrado: cinco professores meus já falaram que minha linguagem é por demais poética, cadenciada, dramática!... Enfim, muita retórica e pouca objetividade! Afinal, é pecado deixar-se transparecer em um escrito científico. Nada de sentimentos em relatórios experimentais, nada de intuições em metodologias específicas, nada de mim para o outro. Sem mais filigramáticas, comecemos...
Ursprung. Encontramos, em Nietzsche, dois usos do termo. Um, enquanto busca do “aquilo mesmo”, origo da moral e da culpa, da lógica e do conhecimento. Outro, coloca a origem como invenção, artifício, fabricação. Tal distinção torna-se necessária para entendermos o porquê da recusa de Nietzsche à Ursprung, à pesquisa de origem.
O genealogista – com os pés na história e repudiando a metafísica – aprende que, por detrás do véu das coisas não há nenhuma realidade numinosa. Não há nenhuma veritas aeterna, nenhuma essência absoluta, nenhum segredo a ser velado ou desvelado. Melhor dizendo, encara que sua essência foi – tão somente – construída por figuras, forças e atravessamentos outros que nada tem de ver com uma identidade pura a ser encontrada no gênese. Se na teleologia metafísica encontramos – no começo das coisas – a preciosa perfeição duma essência pura e luminosa, na genealogia histórica destrinchamos uma verdade da ordem do discurso.
Fazer genealogia, assim, não é aventurar-se rumo aos tesouros ideais da origem. Ao contrário, é abandonar as formas da metafísica e deter-se no singular, no acidente, no acaso. É demolir os castelos da teleologia e dirigir-se aos bairros mais baixos. É referir-se aos episódios mais simplórios e, sem pudor, apontar as personas envolvidas. Destarte, termos outros – como Herkunft e Entestehung – traduzem muito melhor a atividade genealógica do que a ambivalente Ursprung.
Entendemos Herkunft como a “proveniência”. Não a já gasta pertença ao grupo, ao sangue, à tradição. Não falamos, aqui, de reencontrar nos indivíduos, em suas idéias ou em seus ideais traços duma categoria maior que permita classificá-lo junto a outros, mas sim numa desconstrução de si, no desembaraçamento da rede de marcas que se nos entrecruzam. A Herkunft não funda conhecimentos. A proposta da pesquisa da proveniência é – justamente – agitar, fragmentar, mostrar a diferença no que se julgava uniforme. Verdadeira análise da articulação corpo-história, visto que é no corpo que se dão os desejos e as quedas, os movimentos e os desfalecimentos. Corpo atado e desatado, marcado e arruinado de história.
Entestehung, designamos como “emergência”. Ponto de surgimento. A metafísica acredita numa destinação escatológica que busca, desde a origem dos tempos, desde o surgimento das coisas, vir à tona. Na genealogia, entretanto, trazemos à luz os sistemas de submissão, o jogo das dominações, o lugar de afrontamento. Conceitos como liberdade, diferença de valores, lógica ou mesmo a Verdade tiveram o seu nascimento na história. História, esta, de homens contra homens, classes contra classes, dominantes contra dominados. É da guerra, do conflito, do combate que nascem as regras do jogo, que vêm para fundar – e não findar! – a violência. O grande jogo da história é, vemos aqui, aprender tais regras e utilizá-las contra aqueles que as tinham imposto. Interpretar deixa de ser buscar a realidade oculta da origem e passa a ser apoderar-se das regras do jogo – que, vale lembrar, não possuem significação em si – e moldá-las numa nova regra, num novo jogo.
A história teleológica – história atemporal – a tudo julga com uma pretensa objetividade, rumo à verdade eterna, à alma imortal, à consciência imutável. O genealogista escapa desta seara, visto que seu trabalho não se funda sob um céu absoluto. Saber, poder, conhecer – genealogicamente – não é reencontrar nem, tampouco, nos reencontrar. É construir e desconstruir, continuação e descontinuação de nosso ser sem Ser. Não se dissolve as singularidades em categorizações ideais, mas recria-se e faz-se ressurgir a “coisa” no que ela tem de única. Sem princípios originais. Sem destinações últimas. Apenas o acaso e a necessidade. Sem mais. Longe das formas elevadas, dos tipos nobres e das idéias puras, encontramos o corpo, visceral, cru, vivo. Assumindo-se perspectiva, a genealogia também se assume como uma pesquisa de baixa extração. A tudo aceita. A nada diferencia. Da plebe para a plebe.
A genealogia, enquanto sentido histórico, é assumidamente antiplatônica. É – primeiramente – paródica, carnavalesca, criadora e destruidora da realidade, opondo-se à história-reminiscência. Em segundo, é dissociativa e – novamente – destruidora da identidade, visto que não pretende encontrar as origens de um Eu qualquer, mas fazer aparecer as forças que nos atravessam, proibindo-nos toda máscara, toda tradição, todo essencialismo. Por fim, genealogia é destruição – mais uma vez, destruição! – do próprio sujeito epistêmico, do próprio eu-que-conhece, visto que todo saber é fundado em tal perspectiva do conhecimento.
Retornamos, assim, à recusa inicial do Nietzsche genealogista à pesquisa de origem. Abomina-se a Ursprung, mas não a pesquisa-proveniência ou a pesquisa-emergência. Seja Herkunft ou Entestehung, “a veneração dos monumentos torna-se paródia; o respeito às antigas continuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica das injustiças do passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição do sujeito do conhecimento pela injustiça própria da vontade de saber” (Foucault, p.37).

FOUCAULT, Michel; Nietzsche, a Genealogia e a História; In Microfísica do Poder; org. e trad. Roberto Machado; Rio de Janeiro, Editora Graal, 1979, PP.15-37